Crítica
Como a atriz que alterna manifestações verbal e gestual dos personagens enfrentando o breu com luz de velas, o espectador também tenta se localizar a bordo dos primeiros minutos de La virgen triste, espetáculo que há três décadas faz parte do repertório da Compañía Galiano 108, de Cuba. A montagem de José González não dissimula ao gozar a maturidade artística da equipe, relativizando parâmetros do que é velho ou novo.
O solo prima pela economicidade formal em todos os elementos ancorados na expressiva atuação de Vivian Acosta. Ela usufrui o benefício da memória inscrita na pele, nos ossos, articulações, movimentos, jogos, objetos e outras gradações dessa aventura narrativa. O público experimenta um encontro efetivo com a despojada cultura teatral cubana e com um mito daquela literatura, a poeta e pintora Juana Borrero (1877-1896). A palavra é veículo primordial do que se comparte em sensações, imagens e ideias.
O texto de Elizabeth Mena, de 1995, interpõe aspectos biográficos e literários. A vida de Juana Borrero daria um livro, ainda que só tenha legado um, de poemas, além de farta correspondência trocada, sobretudo, com os homens que amou. Ela viveu apenas 18 anos e seus escritos vingaram a partir dos 12. A precocidade do ofício, a densidade filosófica e a recorrência ao discurso amoroso, sintonizada com os últimos sopros do romantismo no final do século 19, vieram do berço: o pai era poeta, assim como uma das irmãs.
História atemporal e emergida de uma escuridão intermitente, ‘La virgem triste’ segue servindo a diferentes leituras sobre a realidade de seu país, a República de Cuba
A paixão por dois homens, ambos poetas modernistas como ela, retroalimentou o ato da escrita. Julián del Casal (1863-1893) morreu em consequência de aneurisma, quanto ela contava apenas 16 anos. Carlos Pío Uhrbach (1863-1897) tombou no campo de batalha um ano após a morte de sua noiva, Juana, vítima de pneumonia. “Todos estamos mortos”, ouve-se a certa altura.
A morte, a sombra, o abandono, a melancolia, o sentimento de felicidade e o erotismo são algumas das características ambivalentes da dramaturgia estruturada sobre a fantasia, o onírico e a mística feminina que lembra a obra da freira mexicana Juana Inés de la Cruz no século 17.
O enredo da peça elege arquétipos. Uma Velha chega para levar Juana para o “outro lado do mundo”, mas a moça se recusa. São essas duas vozes, a da ponderação e a da exasperação e inconformismo, que exigem o desdobramento de Vivian em mutações filigranadas e súbitas.
Não há o distanciamento de um narrador ou narradora. Antes, corpo e voz são conarradores em cada contexto. Entonação, dicção e transformação física (como no andar manco da anciã) são compostos a partir de matizes afro-cubanos. As transições de uma personagem à outra, mais as figuras que elas invocam (os amores poetas à frente, além do pai e da empregada) sustentam planos metafísicos e ritualidades denotados pelo treinamento continuado de Vivian Acosta. Nela, a suposição de que um ator “encarna” tem sua razão de ser. A Velha que chega de maria-fumaça no início do solo (e assim parte igualmente ao final, feito um ciclo) é a mesma que sopra o espírito da “adolescente atormentada”, outro epíteto colado a Juana Borraro, além daquele capturado pelo título do texto e cunhado por Julían del Casal no poema Virgen triste.
A complexa e rica subjetividade da mulher que inspira a obra, sua resistência a dogmas da Igreja, do Estado e até dos pares na literatura são amparadas pela ocupação ativa que a intérprete faz do tablado. Vivian Acosta pinta e borda com as sete velas na boca de cena, um candelabro, o figurino branco esvoaçante, uma manta e as múltiplas funções que dá a uma mala – elementar em palcos e picadeiros do planeta, cabendo a poucos criadores o êxito de surpreender ao acessar esse recurso, como no caso.
História atemporal e emergida de uma escuridão intermitente – a luz de vela é o rastro de pintura no corpo e nos objetos –, La virgem triste segue servindo a diferentes leituras sobre a realidade de seu país, a República de Cuba, não importa se retratada há dez, vinte ou trinta anos. A Compañía Galiano 108 atravessou esse período dando margem cênica às entrelinhas. Na ficção forjada por Elizabeth Mena em estrito contato com o material herdado de versos, prosa e cartas, citamos o que Juana diz ao amado Carlos quando ele quer servir o exército para defender o país em guerra. “La patria es mi rival, ¿Por qué me sacrificas a ella? Nuestro amor es más grande que la patria… Yo no tengo ni amigos ni arte ni patria… Elige: tu Juana o tu patria”. Sua pátria era sua língua, antecipando percepção daquele outro poeta de quem foi um pouco contemporânea, Fernando Pessoa, distante um Atlântico (ele tinha 7 anos quando ela se foi).
Em tempo: Galiano 108 é o endereço da casa de Vivian Acosta em Havana, onde a companhia dedicada a monólogos foi fundada em 1990.
.:. Escrito no âmbito da 10ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.
Ficha técnica:
Texto: Elizabeth Mena
Direção e encenação: José González
Com: Vivian Acosta
Figurino: Raúl Martin
Realização de figurinos: Irma Comas
Desenho de luz: Carlos Repilado
Música: Juan A. Leyva
Assistente de direção: Armando Figueroa.
Direção técnica: Pedro Balmaseda
Assessoria: Olympia Gattorno
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.