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Artigo

Sob os prismas de Joelma e Jacy

27.5.2016  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Alessandra Nohvais

Que flecha é aquela no calcanhar daquilo?

Leminski, no Catatau

 

Almas femininas mediadas pela arte do teatro, Joelma e Jacy plantaram suas histórias na Bahia e no Rio Grande do Norte. Cirandaram por outras terras, mas foi nas respectivas cidades em que foram literalmente criadas, Ipiaú, no sul baiano, e Natal, a capital, que cumpriram o eterno retorno. Joelma é transexual, adjetivo e substantivo de dois gêneros. Jacy é a mulher. Joelma pressupõe ficção e pende ao documentário. Jacy flerta com o documental e tem um pé na ficção.

Jacy, o espetáculo virginiano, nasceu a 25 de agosto de 2013, na Casa da Ribeira, no centro potiguar, pelas mãos do Grupo Carmin. Joelma, o espetáculo libriano, a 28 de setembro do mesmo ano, no Instituto Cultural Brasil Alemanha, o ICBA, em Salvador, do ventre do grupo Território Sirius Teatro.

Trançar pontos de afeição e fricção entre as duas obras é o que desejamos neste artigo. Recorremos ao documentarista Eduardo Coutinho (1933-2014), para quem só se pode subverter o real, no cinema ou alhures, se se aceitar, antes, “todo o existente, pelo simples fato de existir”:

“Toda montagem supõe uma narrativa, todo filme sendo uma narrativa pressupõe um elemento forte de ficção, e isso também acontece na História, o que não quer dizer que a História seja uma ficção e nem que o documentário seja uma ficção. Eles são um tipo, se quiserem, um tipo diferente de ficção, e o que eu tento na montagem da estrutura é preservar a verdade da filmagem, que às vezes pode ser indicada pela informação da situação da filmagem, da data de filmagem, por elementos bem concretos”[1].

Coutinho tornou-se referência em sua arte impregnando-a de oralidade. É por meio da conversação, de estalos lapidares ou precários, que seus filmes vão ao outro como trampolim de associações e estruturas. O olhar e a escuta endereçados ao outro social, cultural. Nesse sentido, tanto a equipe de Joelma como a de Jacy empreenderam apurada interlocução com suas fontes primárias e secundárias. Ambas as vidas são matriciais de tudo que se vê em cena. Sem que os criadores ambicionem a presunção da objetividade biográfica. Sublima-se simplesmente a liberdade de reinvenção com a saudável promiscuidade de linguagens, cabendo ao audiovisual uma derivação comum.

Antes de solo teatral, porém, Joelma se fez recriar no cinema com o curta-metragem homônimo, vindo à luz em 2011. A obra do diretor e roteirista Edson Bastos e protagonizada por Fabio Vidal venceu o prêmio do público de melhor curta nacional no 19º Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual, em São Paulo. Como a dupla de criadores é a mesma a encabeçar a montagem, eles, de fato, tiveram que pelejar para obter a confiança de sua personagem.

Fábio Vidal na interposição de teatro e audiovisual em 'Joelma'Alessandra Nohvais

Fabio Vidal na interposição de teatro e audiovisual em ‘Joelma’

Nascida Joel Patrício Novais, Joelma aprendeu a se esgrimir de abordagens abusivas desde a adolescência, quando não se percebia no corpo do sexo masculino e não demorou a sofrer preconceito e violência dentro de casa ou na rua, até ser expulsa do mesmo teto familiar e humilde, na década de 1960. Partiu para São Paulo, onde casou com um mesmo homem por vinte e dois anos. Ele a convenceu a fazer a cirurgia de mudança de sexo, na década seguinte. Ela diz ter trabalhado como garçonete na Estação da Luz e como dançarina na antiga TV Record. Também dublou em shows de boate em que saudava Dolores Duran, Ângela Maria, Lady Zu, entre outras vozes inspiradoras. Até retornar à cidade de origem, bem casada e vivendo num sítio de Ipiaú. E então surgiram novos desafios a superar: ela foi enredada num crime elaborado pelo roteiro como passional: seu marido matou o homem que abusou dela, tendo o próprio também morrido no conflito.

O parágrafo anterior tentou dar conta de um resumo biográfico “baseado em fatos reais”, mas também recontado ficcionalmente a partir do convívio de Bastos e de Vidal com ser humano tão multifacetado. Esses artistas viviam e ainda vivem em Salvador e realizaram pesquisas de campo na cidade-berço dessa história. Joelma ergueu em seu quintal aquela que chamou de Igreja das Treze Almas, “benditas, sabidas e entendidas e das almas dos vaqueiros e dos reis da boiada e do Bom Jesus da Lapa e de Todos os Santos”. Essa manifestação de fé alude, ainda, à lenda de 13 pessoas que teriam ficado presas num elevador durante incêndio do Edifício Joelma, na região central de São Paulo, em 1974, e transformadas em espíritos de luz – o que remeteria, por sua vez, ao Livro de São Cipriano, recorrente entre seguidores de religiões afro-brasileiras.

A transexual e a mulher testemunharam um tempo mau que os artistas minimamente conhecedores de seus pedaços ousaram revisitar ao abrir janelas do passado, do presente e do que há por vir em nome da tolerância. Não fizeram pouco

Nos créditos iniciais de Joelma, o curta de ficção se permite lançar a voz gravada da mulher controversa em alguns aspectos, ainda devota ao catolicismo, a despeito das transgressões de toda ordem em sua trajetória pessoal. Ouvimos, em sua estrutura de fala deslizante, como a antecipar a fragmentação narrativa na tela, à maneira de um Qorpo-Santo de saias: “Logicamente, há o momento, eu vou referir, ao dizer algumas palavras, que este filme será, é uma coisa alevantada, um filme alevantado, uma obra pelo meu sofrimento e a minha vida do mundo, que eu passei e tô vivendo, agradecendo a Deus por isso”.

Pois a partir deste ponto do artigo, deixemos a película um tanto de lado para pensar a presença cênica de Joelma no solo de Vidal, coautor, deveras permeada pelo imaginário mediado pelo filme. A impregnação cinemática transcorre em algumas cenas, como na fusão do passeio de bicicleta captado nas ruas de paralelepípedos de Ipiaú, belamente estendida ao espaço cênico quando o atuador adentra pedalando sua magrela. O olhar do dramaturgo e codiretor Edson Bastos se deixa conduzir bastante pelo enquadramento da câmara nas ideias da encenação, como no recurso da tela de projeção, as cortinas brancas ao fundo, em algumas passagens. Ou na bem-bolada solução para o final, arrematando síntese teatro-cinema raramente alcançável na ponte entre o edifício e a rua, fabulação e realidade.

O certo é que Joelma, o solo, sustenta o campo autônomo graças à força performativa de Fabio Vidal, reconhecido pela pesquisa artística continuada refletida com devidas gradações em trabalhos como Seu Bonfim (2000) e Sebastião (2010). Sua expressão corporal denota o distanciamento obtido em relação ao filme – lembrando que, naquele, a mimesis tampouco era uma condição, possibilitando margem de liberdade na interpretação e no roteiro em particular.

Dirigido por Bastos, Vidal vive travesti baianaAlessandra Nohvais

Dirigido por Bastos, Vidal vive a transexual baiana Joelma

Vidal apropria-se física, poética e musicalmente da figura e da personalidade da cidadã com quem conviveu o suficiente, no sentido laboratorial e artístico, e não sem rusgas – Joelma sempre riscou o chão, arisca, até que o respeito mútuo se instalasse – para assimilar trejeitos, oralidade e, em especial, o pensamento espiralado que abarca sincretismos de crença e convicções no exercício pleno da sexualidade sem prejuízo da freqüência às missas da Igreja Matriz, uma das instituições mais influentes da cidade.

O espaço da cena é circundado por objetos, imagens e adereços correspondentes ao universo transcendental da figura evocada. Camadas da narradora e da cantora não se descolam no dirigir-se diretamente ao público. A locução do rádio, a maquiagem no camarim, a brincadeira de boneca e a dublagem na pele e no playback de Gal Costa cantando Tigresa, do álbum Caras & bocas, enquanto a flor vermelha no cabelo armado guarda referência com a capa do disco Tropical – ambos lançados nos anos 1970 –, tudo isso se processa com sinergia.

Tanto o curta-metragem como a peça resultaram habilidosos na dimensão ética de não expor a Joelma da vida como ela é, em suas filigranas, idiossincrasias e alteridades. O espectador do cinema ou do teatro tem subsídios para chegar às próprias conclusões no liame do que é invenção e do que é verdade. De como ela sublimou na espiritualidade, por exemplo, toda forma de opressão, ciente de que a solidão pode inspirar ou aspirar um estado de vigília existencial, mesmo no contexto da vida a dois. Edson Bastos, Fabio Vidal e equipe foram sutis sem abdicar das dores e das delícias em habitar o mundo refratário em vários aspectos, a começar pelo machismo, sem recuar da determinação de ser feliz, amar e ser amada.

Outra perspectiva evidente é a do papel da sociedade, a hipocrisia de “atores” fundamentais numa cidade interiorana, como a igreja, a família, a imprensa e a polícia. Em Bastos sendo ipiauiense, o curta e o solo ressignificaram aquela comunidade em suas fissuras. Foi emblemático projetar o filme no plenário da Câmara de Vereadores, a 2 de dezembro de 2011, bem como apresentar a peça no salão da Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB), a 18 de outubro de 2013. Da plateia, observado a representação/reinvenção artística de sua história, Joelma dava mais um salto sobre obstáculos nas questões de gênero e diversidade. Exercia seu lugar de direito em meio ao público reunido naquelas noites em que a arte e a cidadania se contaminaram pós-modernas.

Quitéria Kelly em cena de 'Jacy' no Trema! Festival do RecifeLucas Emanuel

Quitéria Kelly em cena de ‘Jacy’ no Trema! Festival do Recife

O princípio da urbanidade surge, igualmente, como traço definidor da experiência do Grupo Carmin em Jacy. O público acompanha relatos e breves diálogos entrecortados sobre o ir e vir de uma mulher comum, anônima entre as centenas de milhares de habitantes de Natal, de onde ela saiu para passar décadas no Rio de Janeiro e finalmente retornar ao litoral onde foi criada e se deu por gente. A dramaturgia redimensiona sua existência, um arco de 90 anos, e a coloca no patamar extraordinário, ainda que póstumo, por conta, risco e sorte dos criadores que a abraçaram.

A atriz Quitéria Kelly, cofundadora do Carmin com Titina Medeiros, em 2007, e o ator e diretor Henrique Fontes, que já a dirigira em outra peça, entabulavam as primeiras conversas, estudos e dinâmicas com vistas a um novo trabalho. Davam os primeiros passos na cogitação de tema, texto, conceitos. Certo dia, andando pelas calçadas da cidade, Fontes deparou com uma frasqueira contrastante em meio aos sacos de lixo que moradores de uma casa organizaram para o caminhão da coleta que passaria dali a pouco. Ele enxergou no objeto vintage reciclagem para uma função mais óbvia: adereço em futura montagem, quem sabe a próxima. Levou o achado para o encontro seguinte com Quitéria. Pois documentos e papeis encontrados no interior da pequena bolsa excitaram a dupla a pesquisar sobre quem teria sido a mulher que legou, indiretamente, uma narrativa empírica, potente e reveladora da condição humana em seus afetos e isolamentos.

O resultado foi um intricado quebra-cabeça disposto a partir da investigação em campo. Da papelada, fez-se um mapeamento de contatos como a cuidadora, o taxista, o rapaz do supermercado e assim por diante, interlocutores involuntários da até então incógnita dona da frasqueira. Cada informação fornecida ou negada, principalmente por parte da família influente no cenário político-econômico local contribuiu para compor uma tangencial plausível aos fatos e à ficção. Os filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo foram convidados a conceber o texto tomando-se por base esses retalhos.

O ator Henrique Fontes ainda dirige e coescreve a peça potiguarLucas Emanuel

O ator Henrique Fontes ainda dirige e coescreve a peça potiguar

Coube a Capistrano e Fontes consolidar essa dramaturgia à qual incorporaram a relação com o irmão que serviu as forças armadas e trocava cartas com a protagonista quando esta morava no Rio. O entrecho amoroso ficou com o namoro de Jacy com um soldado norte-americano integrado à plataforma naval instalada na cidade durante a Segunda Guerra Mundial. A metamorfose não ocorreu apenas na fisionomia e no espírito dos moradores de uma então pacata Natal, mas na visão de mundo da mulher que não se contentava com o horizonte do mar e ambicionava ir mais longe. Uma vez morando no Rio, agora sob o período da ditadura, ela reencontrou o militar dos EUA que lhe vendera um reencontro romântico, como concedeu o tratamento ficcional. Na verdade, o sujeito voltara ao país em missão: ensinar aos pares brasileiros técnicas de manutenção de regimes autoritários, leia-se tortura.

Essas informações são dispostas em cena com agilidade e sutileza para que o espectador pondere, se verdadeiras ou factuais. No território desse “entre” o jogo é expandido na própria materialidade da cena. Os atores Quitéria Kelly e Henrique Fontes oscilam relato e suas próprias presenças, como se chamassem o espectador de canto, piscasse o que está nas entrelinhas ao transbordar o percurso solitário de Jacy para as relações operadas no subterrâneo do fisiologismo e dos interesses imorais que movem as facções políticas e financeiras no âmbito nordestino e universal. Os tons ora documental ora publicitário das imagens interagidas por meio de retroprojetor, sob manipulação de Pedro Fiúza, permitiam outras leituras críticas ao material cênico.

É desse mix que se compõe uma linha do tempo possível para a vida de Jacy revisitada pelo teatro. Da mesma forma que Joelma o foi por meio do cinema e do teatro. Elas testemunharam um tempo mau que os artistas minimamente conhecedores de seus pedaços ousaram revisitar ao abrir janelas do passado, do presente e do que há por vir em nome da tolerância. Não fizeram pouco. As duas obras aqui sobrevoadas equivalem a documentos vivos que jamais serão apagados da memória daqueles que, agora, também fazemos parte deles.

[1] OHATA, Milton (org.). Eduardo Coutinho. São Paulo: Edições Sesc e Cosac Naify, 2013, p. 26.

.:. Publicado originalmente em Trema! Revista de Teatro, #edição do festival, de número 6, lançada este mês no 4º Trema! Festival de Teatro, no Recife.

Serviço:
Onde: Caixa Cultural São Paulo (Praça da Sé, 111, Centro, São Paulo, tel. 11 3321-4400)
Quando: Sexta a domingo, às 19h15. Até 29/5
Quanto: grátis
Duração: 80 minutos
Exibição do curta-metragem Joelma e bate-papo com o diretor: sexta, 27/5, às 15h
Workshop sobre técnicas de produção audiovisual: sábado, 28/5, das 14h às 18h

Ficha técnica:
Joelma
Autoria, direção e atuação: Fabio Vidal
Autoria e direção: Edson Bastos
Assistência de direção: Aétio Filho
Cenário: Luís Parras
Assistente de cenografia: Daiane Sarno
Iluminação: Pedro Dultra
Operação de luz : Tuca Gomes
Figurinos: Maurício Martins
Costureira: Francisca Duarte
Maquiagem: Marie Thauront
Cabelos: Alê Estrela
Trilha sonora: Luciano Simas e Ronei Jorge
Consultoria de projeção: Davi Cavalcanti
Registro audiovisual e produção de VTs: Henrique Filho
Assessoria de imprensa e redes sociais: Monica Santana e Nilton Lopes
Designer: Kaula Cordier (Designer)
Fotografia: Alê Novhais
Produção executiva: Viviane Jacó
Realização: Território Sirius e Voo Audiovisual

Ficha técnica:
Jacy
Textos: Pablo Capistrano e Iracema Macedo
Dramaturgia: Henrique Fontes e Pablo Capistrano
Direção: Henrique Fontes
Atuadores: Quitéria Kelly e Henrique Fontes
Manipulador de imagens e interação de audiovisual: Pedro Fiúza
Assistente de direção: Lenilton Teixeira
Design de luz: Ronaldo Costa
Cenografia: Mathieu Duvignaud
Trilha sonora original: Luiz Gadelha e Simona Talma
Coordenação de produção: Quitéria Kelly
Assistente de produção: Daniel Torres
Designer gráfico: Vitor Bezerra
Fotógrafo: Vlademir Alexandre
Assessor de imprensa: Pedro Andrade
Gerenciadora de mídias virtuais: Danina Fromer

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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