Encontro com Espectadores
A dramaturgia contemporânea brasileira foi objeto de debate no 2º Encontro com o Espectador que reuniu, no Ágora Teatro, na noite de 25 de julho de 2016, Cláudia Barral, autora da peça Hotel Jasmim, Paulo Santoro, autor de O teste de Turing e Kil Abreu, curador do projeto Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, realização do Centro Cultural São Paulo, que premia peças teatrais com montagem e publicação de texto.
Mais uma vez havia a escolha dos convidados não se deu ao acaso. O projeto articulava o trio. Barral e Santoro estavam entre os selecionados na segunda edição do projeto, e naquele mesmo período fizeram temporada no CCSP, no âmbito da II Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos. Foi uma noite de casa lotada no Ágora e participação intensa dos espectadores.
Desde o encontro inaugural adotamos a prática de recolher endereços de e-mails dos participantes com o intuito de abrir um canal de diálogo, que vem sendo efetivamente mantido. Esse mailing, ampliado a cada nova edição, permite afirmar que havia 38 novos participantes no segundo encontro, para além dos que já tinham estado na noite inaugural e voltaram ao Ágora naquele 25 de julho.
A experiência do encontro com o público é sempre rica. É oportunidade de ouvir e de aprender sobre questões que o texto suscita e que, muitas vezes, escapam ao dramaturgo, aos atores, ao encenador (Cláudia Barral)
Tal aderência e ainda a intensa participação dos presentes naquela noite são fatores que concorrem para que lamentemos profundamente o problema técnico que levou à perda da gravação em áudio desse 2º Encontro com o Espectador. Perda que, em parte, explica a demora desta publicação. O desejo de editar o registro dos encontros na mesma ordem de seu acontecimento aliado às tentativas de recuperação do áudio, o que ao fim se revelou impossível, provocaram essa distância temporal.
Sabemos que a experiência de participação não é recuperável, mas ainda assim consideramos relevante o registro dos diálogos realizados na triangulação entre artistas, críticos e espectadores nesses encontros com o espectador.
Na tentativa de resgatar, de alguma forma e ao menos parte, as vozes daquela noite, pedimos aos convidados a imensa gentileza de escrever um texto sobre o objeto de debate. De nossa parte, os editores do site, tentamos igualmente relembrar um pouco do que foi dito na abertura sobre a ação do Teatrojornal – Leituras de Cena, uma vez que nossos pontos de vista sobre os espetáculos, expostos naquela noite, podem ser conferidos nas respectivas críticas (links ao final deste artigo).
Assim, em vez da transcrição do áudio do encontro, publicamos aqui os textos de Kil Abreu e Cláudia Barral escritos a nosso pedido. Infelizmente Paulo Santoro não pode fazê-lo, o que compreendemos inteiramente (essa produção foi dirigida por Eric Lenate e teve atuações de Maria Manoella, Rodrigo Fregnan, Jorge Emil e Felipe Ramos).
Agradecemos mais uma vez a participação do trio de convidados e de todos os presentes, em especial aos que entraram em diálogo ativamente, como os diretores Lenate, de O teste de Turing, e Denise Weinberg e Alexandre Tenório, de Hotel Jasmim, os produtores Bira Saide e Valdir Archanjo, entre outros.
No encontro seguimos um rito que consiste na apresentação dos participantes realizada por Valmir Santos, uma curta fala de abertura de Beth Néspoli sobre os objetivos do encontro. Em seguida, vieram as falas sobre os espetáculos (Néspoli sobre Hotel Jasmim e Santos sobre O teste de Turing, ideias que agora podem ser conferidas nas respectivas críticas) e, depois, as falas do trio de participantes, antes da abertura para a plateia.
Beth Néspoli
Opto por reproduzir parte do texto enviado aos participantes logo após o encontro de julho, uma vez que o objetivo da mensagem era justamente fazer uma espécie de balanço do debate travado coletivamente. Salvo engano, o fragmento abaixo recupera um pouco da fala de abertura na qual eu retomei a fonte de inspiração, a Escuela de Espectadores criada em Buenos Aires, em 2001, pelo crítico e teórico teatral Jorge Dubatti. O modelo portenho foi retomado, desta vez, para melhor marcar a diferença.
No modelo de Buenos Aires, o objetivo é contratualmente formativo. O espectador se inscreve, paga para participar durante um período determinado e ganha um certificado ao final. Ao ingressar ele assume a tarefa de acompanhar um número determinado de espetáculos previamente escolhidos a serem debatidos publicamente por críticos e criadores na presença dos espectadores. Evidentemente as longas temporadas e o vasto panorama teatral portenho facilitam o planejamento de longo prazo, algo que se dá de modo muito diferente no Brasil.
Nossa ação, assim, é distinta da portenha, ainda que o modo de trabalho, como dissemos no primeiro encontro, não esteja fechado e irá se ajustando no processo. Mas se por um lado evitamos copiar o modelo, por outro não queremos perder de vista alguns aspectos por nós considerados importantes.
Um deles é que a reflexão crítica recaia sobre um objeto pré-determinado, seja espetáculo teatral ou projeto. Que a gente possa se exercitar no debate público sobre um objeto artístico é o que propõe essa ação. Não é preciso intervir diretamente para ter uma participação definida como ativa. A conversa informal, no momento do brinde final – um rito que vamos tentar manter na medida do possível – com pessoas que permaneceram em silêncio na plateia demonstrou que o grau de interesse e processamento das ideias em pauta foi intenso. A escuta também é parte da arte de pensar criticamente.
Que possamos pensar sobre os princípios e contextos que norteiam a produção e a recepção das obras com o necessário rigor, mas em encontros afetivos e com horizontalidade nas relações. Essa é a busca que nos move nesses encontros.
Cláudia Barral
Hotel Jasmim é um texto finalizado em 2015, que pôde vir à cena, em São Paulo, graças ao II Edital de Pequenos Formatos Cênicos do CCSP. Antes, o texto já havia ficado com o terceiro lugar no Concurso Feminina Dramaturgia – Prêmio Heleny Guariba. O texto teatral também foi adaptado, resultando no curta metragem Hotel Jasmim, de 2015, que contou com a minha direção, junto com Marcos Barbosa. No teatro, a peça estreia com direção de Denise Weinberg e Alexandre Tenório, com os atores Daniel Farias e Eduardo Pelizzari, que também fizeram o curta.
O encontro desses atores foi, para mim, uma grande felicidade. Em ambos os processos eles se permitiram tocar e emocionar pela história, que personificaram muito bem. Daniel Farias, baiano, cheio de brilho no olhar, vigoroso, veio de peito aberto encontrar Eduardo Pellizari, paulistano, inteligente, talentoso. Na história feliz dos encontros, a direção de Denise e de Alexandre fez surgir mina de água fresca do texto, num processo que, acredito, alimentou a todos nós. Por fim, a montagem resultou de um diálogo profundo e tranquilo entre todos os elementos que compõe a cena, como luz, figurino, música, produção, cenografia.
A questão das megalópoles, o surgimento e a arquitetura das cidades, bem como suas soluções diante dos impasses de um crescimento quase sempre movido pelo massacre da força de trabalho e de sonhos humanos sempre foram temas que captaram a minha atenção. Hotel Jasmim surge, também, do meu desejo de vir habitar São Paulo, o “sonho feliz de cidade”.
Hotel Jasmim é um texto de viés realista, que tem, dentre as referências que o norteiam, a dramaturgia de Plínio Marcos, mais precisamente a peça Dois perdidos numa noite suja. Me interessava, na peça de Plínio, a atmosfera masculina e claustrofóbica, criada pelo encurralamento de dois homens num quarto.
Jorge Washington é um rapaz que vem do Nordeste para São Paulo, para trabalhar como garçom, na vaga que foi de seu pai, recentemente baleado num assalto. Reto em seus valores morais e temente a Deus, Jorge chega com a incumbência de ser o novo mantenedor da família, que ficou para trás, e tem o sonho de, um dia, trazer a noiva para perto de si. As circunstâncias, no entanto, o obrigam a ficar hospedado no mesmo quarto que Fernando, um michê de intenções suspeitas, que vai radicalizar a experiência de estrangeirismo de Jorge. Confrontado com o diferente, Jorge se adapta, mas também reconhece, ou delimita, o seu espaço. Juntos, os rapazes crescem, mudam e inventam cada um uma nova vida, uma nova identidade.
O motor dramático de Hotel Jasmim alimenta-se de uma situação dramática específica, que me ocorreu já de partida, enquanto eu concebia a peça: Fernando rouba dinheiro de Jorge e, em seguida, movido por alguma dose de arrependimento, resolve “emprestar” parte desse dinheiro de volta. Ocorre que a letra da mãe de Jorge, registrada em uma oração manuscrita na cédula que saiu das mãos de Fernando, denuncia o crime. Na forma como vejo a situação, para além de sua materialidade nua e crua, a mãe estaria protegendo o filho, mesmo sem saber. A presença da mãe (e de todos os valores morais e afetivos que a presença dela na fala de Jorge evoca) é a flor do feminino (que os homens experimentam), é o jasmim do título, é a fé na possibilidade de uma relação. É também através da mãe de Jorge que a questão da fé entra na peça. A fé, instrumento tão caro para Jorge mas, tantas vezes, combustível para a ganância de líderes espirituais pouco escrupulosos. A meu ver, o feminino também se anuncia como viés possível de construção de relações mais humanas na cidade, na cena em que uma vizinha espancada pede por socorro. Nessa cena, o caráter das personagens é convocado, é posto a teste, e ambos os rapazes precisam decidir qual o melhor caminho na cena: estender a mão ou recolhê-la, ouvir o apelo do outro ou fingir-se de morto, o que pode custar a vida, de fato.
A peça trata da possibilidade de tangenciamento de universos distintos, de possibilidades de convivência numa megalópole, como São Paulo, onde, como em qualquer espaço urbano, é necessário enxergar o diferente como possibilidade de alargamento de horizontes, não como obstáculo.
A experiência do encontro com o público é sempre rica. É oportunidade de ouvir e de aprender sobre questões que o texto suscita e que, muitas vezes, escapam ao dramaturgo, aos atores, ao encenador. O projeto do Encontro com o Espectador, nesse sentido, é riquíssimo e me sinto privilegiada de ter podido participar. Levar o texto à cena e, depois, poder ouvir impressões da plateia e ver o que cada um faz com o que lhe foi apresentado é uma das muitas riquezas do teatro.
Kil Abreu
O projeto da Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo nasceu de uma contingência e de uma necessidade. A pergunta feita pelo curador de teatro, há cerca de quatro anos, era: “O que se pode fazer de melhor com pouco dinheiro?”. O pouco dinheiro, como sabemos, é por conta das circunstâncias do serviço público. O CCSP, apesar de ser um dos órgãos culturais centrais entre os da Prefeitura de São Paulo, segue na mesma condição de grande parte dos equipamentos públicos de cultura, Brasil afora, em qualquer época e sob qualquer gestão. Então era preciso fazer uso da verba modesta de maneira a não diluí-la em apoios pontuais aos contratos de programação. Nas palavras de Peter Brook, era preciso pensar sobre o que seria “o essencial do teatro em certas condições dadas”. E sobre o que fazer de melhor nestas condições. Porque também podemos fazer coisas irrelevantes com muito dinheiro também.
Foi esta contingência que nos levou a uma outra pergunta: diante dos meios de produção existentes no panorama teatral de São Paulo, o que poderia ser útil? O que poderia ser relevante em uma cidade cujo teatro é já mais que razoavelmente subvencionado? Olhando os editais públicos existentes, de aporte direto, e os instrumentos de patrocínio via renúncia fiscal, percebemos que nenhum deles cumpria um percurso que vai da dramaturgia original escrita por autor brasileiro ao espetáculo montado. Os prêmios para autores em geral chegam no máximo a publicar os textos, deixando-os ainda na condição de literatura dramática. Os editais de montagem não têm necessariamente compromisso com o autor. A autoria dramatúrgica original é um acidente, pode estar como não estar, dependendo do projeto. Então nos ocorreu um prêmio para os autores de teatro, que fosse adiante da publicação, que tivesse como ponto de chegada a montagem e temporada do espetáculo, cumprindo o ciclo inteiro da vocação de todo texto teatral: a subida à cena e o encontro com o público. Tínhamos um excelente espaço (o próprio CCSP), boas salas, a infraestrutura técnica. E uma gráfica! Onde se poderia imprimir as brochuras das peças, que são distribuídas à plateia durante as apresentações. Uma tentativa de tornar mais íntima e quem sabe um pouco mais duradoura a experiência fugidia do espectador com o fenômeno teatral.
E assim foi. Mas, novamente: como fazê-lo com pouco dinheiro, sem que os recursos limitados acabassem se transformando em um problema intransponível para as produções dos espetáculos e a realização de uma ideia que nos parecia boa? Era preciso criar uma mediação que desse conta de sinalizar aos interessados que a grana pouca não deveria significar um problema, mas uma condição, a pedir resposta não só no plano da produção como também no plano estético propriamente dito. E assim nasceu o conceito de “pequenos formatos cênicos”.
A ideia de pequenos formatos não é novidade. Nas artes visuais há mostras de pequenos formatos. No cinema, os chamados filmes de baixo orçamento. E nestas duas áreas a expectativa é a de que o “pequeno”, o “baixo” não sejam indicadores de obras artísticas de má qualidade. Ao contrário, são condições a partir das quais a própria linguagem se articula. No caso do teatro é ideia que pressupõe dramaturgias sintéticas no seu plano formal. Quem sabe com poucos personagens e em situações concentradas (se for este o caso, o de um teatro de personagem e situação, é só um exemplo). Ou que se inventem com recursos que, senão estes, estão preocupados com a concisão poética. Nos pareceu que isso seria, além de tudo, um bom contradispositivo no mundo da mercadoria, da mercantilização e espetacularização da arte. Então o pequeno formato já não será uma contingência e sim um campo de provocações, de fomento criativo. Uma “economia criativa” no sentido rigoroso da expressão e na contramão do sentido com que ela vem sendo empregada.
E assim tem sido. Nos dois primeiros editais tivemos cerca de 200 textos inscritos (por edição). No terceiro o número subiu. Destes, selecionamos três textos por ano, que foram montados e ganharam a cena durante as mostras. Na primeira os escolhidos foram Claudia Schapira (Memórias impressas), René Piazentini (O taxidermista) e Silvia Gomez (Mantenha fora do alcance do bebê). Na segunda, foram premiados Claudia Barral (Hotel Jasmim), Paulo Santoro (O teste de Turing) e Vinícius Calderoni (Os arqueólogos). Para a terceira, cujos espetáculos estão em montagem, foram escolhidos Carla Kinzo (A mulher que digita), Carlos Canhameiro (AntiDeus) e Ricardo Inhan (Boi ronceiro).
A repercussão pública do projeto tem sido uma alegria. As mostras têm acontecido com boas plateias. Os autores, sobretudo os mais jovens, têm se mobilizado para enviar seus textos. E o reconhecimento institucional também veio. O Centro Cultural São Paulo está indicado neste momento ao Prêmio Shell de Teatro, na categoria Inovação, “pelo estímulo à experimentação de novas formas cênicas, dramatúrgicas e de produção”.
.:. Leia as críticas a Hotel Jasmim e O teste de Turing.
.:. Leia a íntegra de outras edições do Encontro com o Espectador, desde junho de 2016