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Crítica

Tempos gritantes

1.9.2017  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Bob Sousa

Certos espetáculos permitem exercitar a livre associação com obras de outros tempos, mesmo se não as presenciamos. Sutil violento, da Companhia de Teatro Heliópolis (SP), por exemplo, reverbera inversamente Um grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri, encenada pela primeira vez em 1973, por Fernando Peixoto.

Naquela época, a imagem do grito abafado engendrava a realidade da ditadura civil-militar. Guarnieri lançava mão da metáfora e da metalinguagem para driblar a censura operada por agentes que, perdidos em seu labirinto, não sempre constatavam o óbvio. Já boa parte do público e de quem estava envolvido com arte e cultura andava com os sentidos depurados em pleno olho do furacão no regime de exceção. Subtextos diziam muito.

A ação de Um grito parado no ar circunscreve o ensaio de um grupo. Cinco atores e um diretor estão a dez dias da estreia de um espetáculo cujo título jamais se saberá. Durante improvisação na cena de um interrogatório, o personagem Justino é bombardeado com perguntas e agredido fisicamente. Prática recorrente no meio teatral, o laboratório de criação explicitava aqui o método de coerção.

O traço do improviso vem combinado à precisão gestual de quem arma uma ratoeira, ou dezenas delas, prendendo a respiração do público que se vê capturado pelo artifício. Não pela armadilha em si, mas por causa da percepção sensorial que o espetáculo estimula

Em paralelo, os artistas desse grupo ficcional em Um grito parado no ar também sentem a pressão do mundo real quanto às condições objetivas para produzir o espetáculo em questão. Equipamentos de som e de luz são subtraídos por credores que batem à porta e tentam bloquear a criação a qualquer custo. No teatro dentro do teatro, os endividados resistem aos absurdos por meio da arte.

Quarenta e quatro anos após a estreia da obra de Guarnieri, Sutil violento (2017) apresenta seis intérpretes atravessando outros níveis de insuficiência. Em seu trabalho mais recente, a Companhia de Teatro Heliópolis, de São Paulo, demonstra forte convicção diante da intolerância ampliada em nome do lema e da mentalidade “ordem e progresso” que assolam o momento brasileiro.

Acostumada a jogar a partir da noção da falta – premissa existencial de quem vive na periferia sul da cidade –, a companhia se fia na materialidade dos corpos que vibram e vagam. A atualização das formas de tortura não é sádica, mas tampouco alivia a face contundente dessa experiência que repercute desde a epiderme da alma do ser urbano até o coração em disparada nessa hora da nação.

“Que Estado é esse?”, lança um dos artistas-cidadãos. Estado ou estados performativos, passa pela cabeça de quem faz parte de uma das plateias frontais, à margem do tablado tingido de vermelho no espaço teatral erguido no fundo do quintal da Casa de Teatro Mariajosé de Carvalho, sede do grupo no bairro vizinho do Ipiranga. Cor de sangue inerente aos signos da vida e da morte, sendo esta marcada pelo cerceamento da justiça e da cidadania,  tema norteador da montagem.

O recurso da ratoeira é vital na encenação de ‘Sutil violento’, da Heliópolis

Estados performativos para estados de emergência, parece sinalizar a dramaturgia em colaboração assinada por Evill Rebouças. Blocos narrativos aparentemente aleatórios caminham para a condição de pertencimento ao todo, adensando o pensamento em cena.

Caminhar é verbo efetivamente motriz em Sutil violento. Anda-se, cruza-se, marcha-se, desequilibra-se, estatela-se. Depois da queda, o rastejar. A cada sequência no acossamento a mulheres, homens ou minorias (indígenas, negros, homossexuais, etc.), os atores recobram a dignidade na fisionomia ao erguer-se, fixar o olhar no interlocutor – que pode ser o público – e ir adiante.

De atitudes cotidianas nascem imagens gritantes em suas corporeidades, plasticidades e musicalidades conexas. Alinhados, em ziguezague ou autônomos, os artistas sugerem uma coreografia da própria marcha cênica de não trair a esperança por meio da capacidade de invenção e tirocínio crítico evidentes nessa altura dos 17 anos da Heliópolis, que tem entre migrantes nordestinos os seus fundadores, o diretor Miguel Rocha e a atriz Dalma Régia, ambos piauienses.

A rigor, uma companhia imbuída da mesma fé cênica que fez com que Guarnieri elegesse por mote o trabalho processual do teatro anterior a sua materialização em cena. Para a nova geração, não há atenuantes. A ocasião é de indignar-se poeticamente, bordejando o som e fúria.

O ímpeto transformador é evidenciado pelo modo como o caldeirão temático – os preconceitos de gênero, de raça, de credo, de orientação sexual e de ideologia, para ficar nessa paleta – é posto em contraste na criteriosa encenação de Sutil violento.

Há uma amplificação do poder do gesto, da microdança pessoal dos atuantes, contrastados na arquitetura do teatro de pé-direito alto e sua vidraça inteiriça que incorpora o jardim externo ao ponto de vista do espectador – não é difícil identificar certa semelhança com os janelões do Teatro Oficina.

Enquanto cocriadores, os jovens da Heliópolis convertem a memória em sensor de seu presente de urgências, como nos traumas de formação relatados à maneira de prólogo. O sexteto abre caminho na dramaturgia na qual as escalas do indivíduo ou do coletivo se articulam.

Há coação – no sentido do constrangimento – na orientação sexual do adolescente que dança no grupo amador da igreja vetado a meninos. Na mulher que tem seu corpo aprisionado por elásticos a homens animalizados pela sua carne. No corpo desfalecido na rua e vitimado em dobro pela indiferença dos passantes. Na manifestação popular que cruza pensamentos progressistas e conservadores ungidos pelo luto da bandeira nacional desprovida das cores originais.

Sutil violento explode em manifesto nesses e noutros quadros, a maioria tensionada pela música executada ao vivo por três instrumentistas, sob direção do músico e antropólogo Meno Del Picchia. Guitarra, violino e percussão constroem uma paisagem jazzística. O traço do improviso vem combinado à precisão gestual de quem arma uma ratoeira, ou dezenas delas, prendendo a respiração do público que se vê capturado pelo artifício. Não pela armadilha em si, mas por causa da percepção sensorial que o espetáculo estimula em seu conjunto de elementos.

Os artistas compensam as limitações da enunciação com a poética do corpo. Entregam-se à composição do conjunto refletida na direção de movimento e preparação corporal de Lúcia Kakazu. Dalma Régia tatua em sua presença o amadurecimento do projeto estético da companhia, força expressiva genuína em sua dor e lirismo (ini)contidos.

Miguel Rocha avança na capacidade de interface com múltiplas linguagens e colaboradores sem dissolver a voz autoral. Numa ou noutra passagem, ele ainda desequilibra a edição do ponto de síntese das formas que elabora. Dois exemplos: ao esticar construções imagéticas que já comunicaram na essência ou reiterar a voz off do poema Eu sei, mas não devia, de Marina Colasanti. Nada disso o impede, a ele e aos pares, de alcançar um resultado incomum.

Volta à memória a frase grafitada no muro do quintal do teatro: “Quando o homem aprender a ser livre de verdade, ele não criará nada que o prenda”. Até lá, a Companhia de Teatro Heliópolis age.

.:. Veja imagens de Sutil violento por Bob Sousa, em Galeria.

Equipe de criação

Encenação: Miguel Rocha

Texto: Evill Rebouças (criação em processo colaborativo com a Companhia de Teatro Heliópolis)

Com: Alex Mendes, Arthur Antonio, Dalma Régia, David Guimarães, Klaviany Costa e Walmir Bess

Direção de movimento e preparação corporal: Lúcia Kakazu

Oficinas de dança: Nina Giovelli e Camila Bronizeski

Direção musical e preparação vocal: Meno Del Picchia

Oficinas de voz e canto: Olga Fernandez, Sofia Vila Boas e Lu Horta

Músicos: Giovani Bressanin (guitarra), Peri Pane (violoncelo) e Luciano Mendes de Jesus (percussão)

Sonoplastia: Giovani Bressanin

Provocação teórica e prática: Maria Fernanda Vomero

Provocação / teatro épico: Alexandre Mate

Provocação / teatro performático: Marcelo Denny

Mesas de debates: Marcia Tiburi, Leonardo Sakamoto, Bruno Paes Manso e Zilda Iokoi

Mediadora/debates: Maria Fernanda Vomero

Organização de textos do programa: Maria Fernanda Vomero

Cenografia/instalação: Marcelo Denny

Assistente de cenografia: Denise Fujimoto

Figurinos: Samara Costa

Iluminação: Toninho Rodrigues e Miguel Rocha

Assistente de iluminação: Raphael Grem

Operação de luz: Gabriel Igor

Direção de produção: Dalma Régia

Produção executiva: Janete Menezes e Mayuri Tavares

Designer gráfico: Camila Teixeira0

Fotos: Geovanna Gellan

Assessoria de imprensa: Eliane Verbena

Realização: Companhia de Teatro Heliópolis

Apoio: 28ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, AGC Vidros, Schioppa, Arno e Tonlight

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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