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Encontro com Espectadores

Cacá Carvalho e o futuro que aí está

20.1.2018  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Wanderley Costa Lima

Acompanhe o diálogo editado da 7ª edição do Encontro com o Espectador ocorrida em 30 de janeiro de 2017, no Ágora Teatro, em São Paulo, com o ator Cacá Carvalho e o cenógrafo, figurinista e aqui coordenador artístico Márcio Medina. Eles conversaram com o público e os críticos Welington Andrade, da revista Cult, e Valmir Santos, deste Teatrojornal, em torno do solo A próxima estação – um espetáculo para ler, que cumpriu temporada no Sesc Pinheiros de 10 de novembro a 17 de dezembro de 2016. 

A peça parte de uma ideia dos artistas italianos Luca Dini e Michele Santeramo, este que chegou a atuar no próprio texto, em seu país, e assina a direção da montagem brasileira.

Carvalho narra meio século da relação do casal Violeta e Massimo. O curso de suas vidas compreende seis estações. Intervalos de uma década, entre 2015 e 2065, perpassam os pequenos e grandes embates. A voz do ator e os desenhos criados pela artista plástica e performer italiana Cristina Gardumi projetam no imaginário “as modificações de seus desejos, a expressão da ternura, a maneira como eles se divertem, a inata delicadeza e as adaptações que terão de enfrentar impostas pelo novo modo de vida de um futuro fictício, no qual pulsações profundas, desejos e paixões se deslocam no tempo”, conforme o material distribuído à imprensa.

Valmir Santos
Boa noite a todos. Estamos iniciando o 7º Encontro com o Espectador, uma ação do site Teatrojornal – Leituras de Cena, iniciada em junho de 2016, e realizada em parceria com o Ágora Teatro; o Celso [Freteschi] e a Sylvia [Moreira] acolheram a proposta e, desde então, vem acontecendo nesse espaço. E a gente fala de uma ideia de triangulação, de vontade de encontros: público, artista e o crítico – o trabalho da crítica como um desejo de potência, de aproximação, relativização desses lugares muito fixos, rígidos, e a ideia de celebrar o encontro sem aquela intenção de valoração do espetáculo ou de decupar exatamente como foi a obra. Enfim, encontrar outras frestas e, sobretudo, a vontade de se encontrar, que é o que desejávamos para esse início de ano, esse janeiro, estamos experimentando esses formatos e tentando entender.

Somos os editores do site: eu, Beth Néspoli e a Maria Eugênia [de Menezes], que é colaboradora do site também e assim estamos tentando encontrar outras possibilidades da ação da crítica, do encontro com os artistas, basicamente esse é o nosso desejo. A cada encontro a gente elege um espetáculo, um objetivo de análise, da temporada e trazemos para a roda. Nós vimos o trabalho de vocês na temporada do Sesc Pinheiros, em novembro e dezembro [de 2016, ou seja, o espetáculo não estava em cartaz no mês do encontro no Ágora] e, mesmo assim, a gente insistiu, e acha que é interessante trazer para o encontro por essa oportunidade de tê-los aqui, o Cacá Carvalho e o Márcio Medina. O Cacá é um artista radicado em São Paulo, é de Belém do Pará, e em 2018 faz 40 anos do Macunaíma. É um artista referencial no trabalho de ator, naquela obra dirigida pelo Antunes Filho e depois também pela continuidade de colaboração com o Roberto Bacci, na Itália, já são 28 anos de parceria, da mesma forma com o Márcio Medina, um trabalho continuado na arte, na vida. O Márcio Medina é cenógrafo, figurinista, nascido aqui em São Paulo, da Mooca, com formação e atuação desde 1976.

Se você proclama um futuro, você pode resistir a ele, então vamos trabalhar agora para evitar que o futuro chegue dessa maneira. (…) Tomara que aquela distopia não se concretize porque eu vou lutar contra ela, mas aí eu sou surpreendido e penso: isso já aconteceu, a gente já está dando o sangue, vendendo o sangue, precarizando a vida por nada (Welington Andrade)

Márcio Medina
Eu fiz Macunaíma com o Cacá, a assistência para o Naum [Alves de Souza, 1942-2016]. O Antunes estava havia quase 15 dias procurado o [ator para o personagem] Macunaíma e a gente soube depois que o Cacá estava para ir embora de São Paulo porque ele veio para estudar, mas não acontecia nada com ele e a gente tinha uma amiga que era a Maria da Paixão, uma cantora negra, enorme, e ela pediu para o Cacá fazer réplica para ela no teste. E quando ele fez o Antunes começou a gritar: “Achei meu Macunaíma”. E ela não entrou e ele entrou. E ela não fala com a gente até hoje. Então é desde 1978 que a gente trabalha junto.

Valmir Santos
O Medina também é parceiro recorrente de alguns núcleos de teatro da cidade, alguns encenadores como Luiz Roberto Galizia, Paulo Yutaka, Marcio Aurelio, Francisco Medeiros, Maria Thaís, José Possi Neto e assim sucessivamente. Inclusive, Medina participou de um dos últimos trabalhos que a gente trouxe para a roda desse Encontro, o Cabras – cabeças que voam, cabeças que rolam, da Cia. Balagan e direção da Maria Thaís.

Eu tentei falar do Cacá muito brevemente, mas tenho que lembrar também de um projeto que ele idealizou em 2004, a Casa Laboratório para as Artes do Teatro. Foram 10 anos de trabalho continuado, uma experiência de formação de grupo na cidade de São Paulo e que, de alguma forma, você ainda carrega como uma casa de produção. E também trabalhos na televisão, no cinema. Uma trajetória via de regra associada ao do teatro de texto, de corpo, da palavra, multiplicidade evidenciada lá em Macunaíma e, depois, com a experiência de trabalhos dirigidos pelo italiano Roberto Bacci [do Centro per la Sperimentazione e la Ricerca Teatrale, hoje Fondazione Pontedera Teatro], como na marcante trilogia do Pirandello – O homem com a flor na boca, A poltrona escura e umnenhumcemmil em anos intervalares.

E temos essa noite a presença muito significativa do Welington Andrade, que é um dos cúmplices, entusiastas dessa ação desde junho do ano passado [2016], dessa vocação para o encontro, para o debate público, para a desmistificação do fazer da crítica. Ele tem formação em artes Cênicas, em letras, fez doutorado e mestrado na USP, é professor da Cásper Líbero desde 1997 e também é crítico da revista Cult desde 2013.

A dinâmica desse Encontro é que Welington e eu façamos um apontamento, um olhar sobre o espetáculo, algumas impressões nossas e também os colegas críticos presentes que quiserem apontar algum aspecto em relação à obra. E depois passamos a palavra a vocês, tanto Cacá quanto Márcio, e também ao público que nos acompanha. A gente vai fazer desse pequeno comitê uma dinâmica de forma que aproveitemos essa presença mais diminuta, um coro menor de pessoas, quem sabe pode ser muito rico o debate, com intervenções livres, soltas, desimpedidas, como vocês acabaram de fazer sobre os bastidores de Macunaíma, muito interessantes.

Antes, temos um recado do Teatrojornal que é: fizemos uma minirreforma no site para acolher, a partir de dia 1º de fevereiro, a transcrição dos encontros, com os textos na íntegra dos diálogos que fizemos aqui. Na quarta foi editado o primeiro e será assim sucessivamente, talvez quinzenalmente ou mensalmente. Já temos transcritos seis deles. Colocaremos aos pouquinhos para dar o tempo de leitura.

O espetáculo em pauta é A próxima estação – um espetáculo para ler, que surgiu a partir de uma ideia do Luca Dini e do Michele Santeramo, ambos italianos. A criação estreou em 2015, na Itália. O Santeramo é um colaborador recorrente também da Fondazione Pontedera, justamente quem dirige o espetáculo solo do Cacá Carvalho. O Roberto Bacci é um dos colaboradores na criação do trabalho, o Márcio Medina é o coordenador artístico, que é uma função que a gente gostaria que você falasse mais adiante em contraste ou complemento àquelas mais fixas, de cenografia e figurinos, talvez permita uma visão mais global da obra. Como vemos, esse é um trabalho solo do Cacá, com texto do Santeramo, e assim como ele fez na sua versão italiana, uma das características desse trabalho é a interação com as imagens, os desenhos da artista plástica e performer italiana Cristina Gardumi. Basicamente, é a história contada por um narrador. Mesmo àqueles que não assistiram ao espetáculo, na hora da fala do Cacá e do Márcio, ou mesmo na minha e na do Welington, a gente vai passar um pouco pelo enredo e situar um pouco a história. Aliás, estamos torcendo muito para que haja uma segunda temporada. O nosso teto de diálogo aqui é até às 22h30. Então, passamos a palavra ao Welington.

Lenise Pinheiro

Carvalho rege ‘A próxima estação – um espetáculo para ler’

Welington Andrade
Queria dizer que é um prazer enorme estar com o Márcio e o Cacá, que eu conheço há muito tempo, desde o Sesc Pompeia. A gente se conheceu em 1987, num encontrão no Ipiranga, nos 20 anos da Tropicália. Queria levantar algumas questões que me chamaram a atenção. Eu queria muito escrever sobre o espetáculo quando fui ver, mas achei que precisava assistir a uma segunda vez. Achei que uma única vez seria pouco pela quantidade de coisas que consegui apreender lá. Achei que fosse só um espetáculo, mas é uma experiência teatral, uma experiência artística, que você sai totalmente tocado com aquilo, apesar de poucos recursos ali sendo manipulados, a quantidade de efeitos emocionais que suscitam a plateia é impressionante. Fui ver com a minha amiga Cláudia [Ortiz] e no final ela teve uma crise de choro. Então, primeiramente, eu queria situar o espetáculo nessa zona entre um espetáculo formalmente, artisticamente acabado, elaborado, mas também que carreia para uma outra coisa chamada experiência teatral. O que me chama atenção nessa experiência é que é um espetáculo que vai desautorizando tudo que a gente convencionou esperar de um espetáculo, em relação a ator e plateia, a ator e texto, dos criadores do espetáculo com os elementos técnicos em cena. Tudo aquilo é muito diferente do que a gente está acostumado a ouvir, tem um apelo à técnica, sobretudo pela exposição dos desenhos, mas em nenhum momento parece tecnológico ou tecnocrático; tem um apelo à música, mas em nenhum momento parece que a música vem somente para pontuar como efeito no próprio espetáculo; e tem aquilo que eu fiquei impressionado, por isso eu precisava ver de novo, que é a sua capacidade de manter um texto de maneira orgânica e que ao mesmo tempo tem um padrão que você não precisa repetir, não precisa executar numa performance de ritmo e de tempo que para mim foi impressionante. A gente falou disso no dia e eu queria que você falasse de novo. O espetáculo é muito – uma palavra que está um pouco desgastada, mas vou usar – singular, muito especial, ele trabalha no ritmo da delicadeza. E comecei a pensar o que me chamou atenção e que eu pudesse desenvolver um texto e me sentir desafiado a escrever sobre isso, primeiro que é um espetáculo que trabalha com confusão de tempo: aquele casal se encontra agora, no tempo presente e vai até 50 anos, 2065, e você pretensamente se coloca numa posição de esperar, talvez prever um futuro, que é um futuro distópico porque as coisas vão acontecer cada vez de maneira precária, a vida humana vai sendo precarizada. A leitura que eu faço é de que aquele casal vai resistindo pela via do amor, pela via do afeto, do entendimento um do outro. Então, apesar dos pesares de tudo que aconteça lá, mesmo o sangue do lado [o texto projeta uma sociedade em que tudo será pago com o sangue humano], eles continuam ali mantendo uma relação, uma ligação, então isso é bonito. Na chave mais de autoajuda seria: o amor vai sobreviver. Mas na chave da leitura poética é que as relações afetivas vão lutar insistentemente contra a precarização da vida e essa é a grande revelação que o espetáculo faz do ponto de vista talvez poético e até filosófico.

Eu até conversei com a Beth [Néspoli] quando saí de lá sobre a impressão que tive de que era um engano eu acreditar que aquele tempo ainda não chegou, porque para mim aquele tempo já chegou. E aí o espetáculo não falava do futuro, ele falava de agora, talvez fosse dos últimos 50 anos em que, de fato, a tecnocracia vai imperando, imperando, até que a gente vai chegando esgarçado, esmigalhado em 2015. E aí me deu uma angústia porque talvez seja essa a função do espetáculo, não sei. Porque se você proclama um futuro, você pode resistir a ele, então vamos trabalhar agora para evitar que o futuro chegue dessa maneira. O alemão Hans Jonas [1903-1993] fala da “ética da precaução”, de um futuro que eu não vou colher, mas que ficará para meus filhos, meus netos. Então pensei nisso, tomara que aquela distopia não se concretize porque eu vou lutar contra ela, mas aí eu sou surpreendido e penso: isso já aconteceu, a gente já está dando o sangue, vendendo o sangue, a gente já está precarizando a vida por nada.

Hoje entrei em três sites italianos para ver resenhas sobre o espetáculo e teve uma coisa linda lá que eu peguei de um festival de teatro que o autor participou [Michele Santeramo], que o sujeito diz assim: “O espetáculo não pode ser o ator, não pode representar os personagens porque o futuro não é representável”. Isso é lindo, porque o futuro tem que ser construído à base da imaginação. A minha questão é a seguinte: tem uma coisa que é fala, então tem um texto construído, o texto parece muito hábil porque é de uma capacidade criativa, apesar das falas serem curtas, muitas intenções ali sobrepostas. Eu fiz doutorado em dramaturgia brasileira na USP, e a gente sempre entende um texto como sendo uma coisa elaborada, palavrosa, com frases geniais, depois entram livros de citação e ali, não, tem uma coloquialidade e, ao mesmo tempo, você vai sendo surpreendido com a capacidade que ele tem de criar todas essas situações poéticas. E isso eu achei muito comovente. Agora tem uma coisa que é você dar vida a essas palavras, você personifica essas palavras sem representar essas palavras, só que a sua sensibilidade e o seu lirismo ali não seria o objetivo se você entrasse no registro da interpretação, não precisa. Por outro lado, a sua voz está absolutamente energizada para que a gente entenda aquele lido como lido e vivido. Lido e vivido. É complexo. Tem o ator que não interpreta, só lê; tem um texto que a princípio é simples, mas ao mesmo tempo é complexo; e tem um desenho lindo que tem a mesma sutileza e beleza de interpretação que se fundem num todo harmonioso. Estou pensando em termos semióticos, porque cada vez mais o meu tesão com o teatro é percepção. O teatro é intelectual, você sai de lá cheio de ideias e tal. Mas como é que essas ideias chegam até você? Pelo corpo seu e do ator, pelo signo que é visual, que é sinestésico, que é corporal, que é auditivo. A música também é uma coisa…

Márcio Medina
A música foi composta especialmente para o trabalho [composições originais de Músicas Originais: Sergio Altamura, Giorgio Vendola e Marcello Zinn]

Welington Andrade
E chega uma hora que você é tangido por aquilo. Você sai feliz de assistir a um ator com suas habilidades e recursos todos e, ao mesmo tempo, tem alguma coisa que está acontecendo nesse espetáculo e que aponta para alguma coisa nova no teatro, que eu não sei o que é. Sabe, alguma coisa segue seu curso. Enquanto a gente está ali tem alguma coisa tocando todo mundo, as pessoas têm uma relação de comunhão no final, como uma espécie de ritual. As pessoas passam por você, te cumprimentam, tem uma emoção sutil ali que está sendo delineada e que eu não saberia dizer como foi construída, mas sei que ela está ali totalmente e me parece de uma ética política, que o teatro está cada vez mais reenergizando a gente. Você sai muitas vezes de alguns espetáculos e você tem uma emoção que é ética. Você sai dali gostando de ser cidadão, gostando de pessoas com você e lutando contra esse futuro que não há de chegar. Ele não vai chegar porque ele já está aí.

A neutralidade desse corpo, o Cacá Carvalho enfático na cena segundo nosso imaginário de espectador, migra para as pinturas e faz essa corporeidade estar posta ali nessa voz e naqueles desenhos, naquelas figuras felinas. E elas são graciosas, por vezes tristes, mexendo com o aspecto lúdico e fazendo com que esse casal também tenha seus corpos transformados (Valmir Santos)

Valmir Santos
Como espectador dos trabalhos anteriores, entrar no teatro e ver a disposição dum púlpito e o Cacá naquele figurino de um sujeito civil, vamos dizer assim, mais formal e aquela tela onde são projetados concomitantemente esses desenhos, essas pinturas, a sensação é da implausibilidade: como vai se dar o espetáculo ali, de onde que vem essa sensação de catarse que eu tenho como experiência dos trabalhos anteriores em que essa palavra tem peso fortíssimo e esse corpo, sobretudo, se impõe? O que eu queria trazer aqui é a sensação de que eu, sujeito, convivendo com a Violeta e o Máximo, que são os dois que formam o casal do espetáculo que vai perpassando por estações da vida deles ao longo dessas cinco décadas é a sensação de me remeter a uma criança interior, essa criança no sentido livre do imaginário, diante de uma contação, uma narração de história.

A sensação é que essa experiência, sobretudo dos desenhos, inspira um estado lúdico, pelo que acessa daquelas figuras humanas, com traços felinos, traços animalizados. Há um jogo de superposição entre o que o narrador traz e essa forma de diálogo que o ator também processa. Essas três vozes, do narrador, do homem e da mulher, compõem com aquelas imagens e me transportam ou criam um ambiente que apesar de ser a experiência toda dirigida e endereçada a um futuro, como o Welington colocou, ao mesmo tempo sinto uma questão de retroagir. Como uma experiência de um espaço de intimidade que é da vida daquele casal, mas que diz respeito ao meu universo íntimo, pois inevitavelmente retroajo para olhar para minha vida. Creio que isso é a afetação. Como se a implausibilidade fosse desmontada diante da formalidade dessa conferência, fazendo com que com o espectador se coloque talvez num lugar mais primitivo, dele mesmo, e se deixando levar pela musicalidade dessa palavra, dessa fala, por sensações e sentidos desse homem e dessa mulher.

É um espetáculo que fala da experiência de um casal e do amor, mas ele não tem nenhum apelo do amor romântico, não é piegas na sua estrutura, nessa abordagem da condição de viver a dois, da intimidade a dois e dos desafios que se colocam, das lacunas, das covardias, das lutas. Ao mesmo tempo, não há um campo idealizado desse amor romântico à maneira hollywoodiana que povoa o imaginário, não se diz eu te amo. A gente vê muita aspereza entre os dois. Violeta e Máximo também transparecem suas falências, a inércia, a impossibilidade de se fazer a revolução, como eles colocam lá no final. Eles olham para trás e veem como eles e nós fomos incapaz de reagir, de se mobilizar para uma questão do campo pessoal. Mas a história deles ao mesmo tempo está falando do mundo ao redor, da condição absurda a que eles chegam, do sangue como a moeda no caixa de supermercado, no final.

Talvez essa secura, esse desencanto pode nos trazer uma ideia de mais objetividade em relação às maneiras de se relacionar e agir no mundo de hoje, em que a saturação é muito grande. Ao falar da afetividade do casal o espetáculo nos faz olhar para as nossas relações, com a gente mesmo e com o mundo.

Lembro de uma experiência que acessava o imaginário infantil mas era um espetáculo adulto, evidentemente, da companhia italiana Socìetas Raffaello Sanzio, dos irmãos Castelucci. Se chamava Buchettino, devo ter assistido em meados dos anos 1990. A experiência não era por meio da imagem, a experiência era sonora. O público habita um espaço cênico com camas pequenas, cobertores e travesseiros, e você fica num contexto da infância na hora em que alguém te põe para dormir. Nesse ambiente escuro com clima de soninho tudo é narrado através da paisagem sonora, do som ao redor. A próxima estação… me remeteu também a essa experiência, só que ali tudo está exposto e os elementos artísticos estão bem delineados, a luz, o som, a palavra, a presença do ator e narrador.

Outro aspecto que considero interessante é que a neutralidade desse corpo, o Cacá Carvalho enfático na cena segundo nosso imaginário de espectador, migra para as pinturas e faz essa corporeidade estar posta ali nessa voz e naquelas imagens, naqueles desenhos, naquelas figuras felinas. E elas são graciosas, por vezes tristes, mexendo com o aspecto lúdico e fazendo com que esse casal também tenha seus corpos transformados. Enfim, só para dizer que essa representação, essa neutralidade do corpo do Cacá está posta ou está subvertida nessas imagens e nessas sensações corpóreas.

Beth Néspoli
Eu fiz um curso com o Stephan Baumgärtel, lembro que ele falou pra gente fazer um exercício que era escrever uma cena dramática e depois uma cena pós-dramática, e a maioria pegou essa cena dramática e fez uma confusão com ela, como um quebra-cabeça, mudou as coisas de lugar e ele falou que pós-dramático não era ficar caótico não, isso é um entendimento errado. Essa ideia de você não investir na história, nos personagens e investir mais no extra cênico, como é que você trabalha essa narrativa aqui com esses materiais para não pensar ela lá longe e pensar aqui na cena… E é só para dizer que nesse espetáculo é exatamente assim que vocês trabalham, a gente está ali diante de uma manifestação artística o tempo todo. A forma como vocês fazem não dá pra gente deixar de ver que estamos diante de uma obra de arte, diante do teatro, a gente não mergulha, não imerge naquela história daqueles dois, a gente está diante tela, diante dessa construção. Eu me lembro de pensar: nossa, é simples e é tão complexo. E quando acabou o espetáculo, o Cacá foi me explicando como era a partitura dele, aí você entende a complexidade que na hora você não decodifica, mas você entende.

É brechtiano isso também, de você o tempo todo estar diante do teatro. E aí quando você não faz esse mergulho dramático naquelas pequenas relações entre eles, mas você traz isso para frente, ali, para a cena e a gente está o tempo todo diante dessa cena, isso te remete para cá, ao invés de jogar você lá para o fundo da historinha; te remete para cá, para você mesmo e paro o mundo. Então essa história aqui não vai para a coxia, ela vai paro mundo, ela está aqui fora. Vejo que essa pessoa está construindo isso, não é historinha, é teatro na sua complexidade. É muito claramente estar diante de uma manifestação artística. Isso aqui está acontecendo como uma construção minuciosa, artística, para eu ter esse deleite, que é o deleite da obra de arte e a partir dela eu penso o mundo. É misturado: a partir dela, junto com ela, você se emociona, raciocina, faz tudo ao mesmo tempo nesse espetáculo, mas sobretudo é a construção muito clara sem ser vaidosa, e isso é incrível, é uma construção, mas ela não é vaidosa, ela é toda integrada, junta tudo e dá certo e acontece.                                                          

Welington Andrade
Você usou muito a expressão: “me parece um teatro de superfície”. A superfície, de fato, porque ele é de cá pra cá. A superfície tem as suas profundidades. É superficial e profundo ao mesmo tempo.

Márcio Medina
Quando vi esse trabalho na Itália, o Cacá estava ensaiando Dostoiévski em cima [do teatro] e, embaixo, o Santeramo também ensaiava esse trabalho. Eu vi aquilo e pirei porque para mim é meio George Orwell, tem uma coisa sobre o futuro que não é futuro, essa moeda que é sangue porque é democrático, todo mundo tem sangue, então paga-se com sangue… Essas coisas eu tenho a sensação de que elas já acontecem de certa forma. Eu fiquei impressionadíssimo com essa força do espetáculo e com a força poética, porque os desenhos têm uma força poética. Eu sou cenógrafo, então imagem para mim é uma coisa muito forte, para mim é uma poesia visual. Nesse final de semana eu estava lendo um artigo na Folha de S.Paulo, e por isso eu não acho que isso é muito futuro, que dizia sobre o tomate estar sendo transformado, estar sem sabor, e daí vai ser criado um novo tomate. Eu achei que estava muito lá e fiquei bem impressionado com isso. E tem uma frase lá assim: “Não existe mais nada natural, tudo é produzido”. Então acho que isso tem tudo a ver com o espetáculo, essa essência, essa cara.

Bom, e vendo lá esse trabalho, essas imagens, os músicos lá compondo, eu fiquei enlouquecido, mas o Santeramo faz o trabalho de uma forma muito diferente. Ele é um dramaturgo, então ele narra de um outro ponto de vista, de uma outra relação. Quando a gente começou a trabalhar, Cacá se interessou pelo texto. Era uma fronteira muito difícil porque o Cacá é um ator de inúmeros recursos, então era muito diferente do que eu tinha visto na Itália. Aqui é outro espetáculo. Pegou uma outra forma, o jeito do Cacá, e o meu trabalho ali foi muito de coordenação artística. Às vezes eu chamo também de coordenação técnica porque a técnica é terrível, tem um computador que rege tudo: a imagem, o som, a luz, um programa que a gente tem que comprar todo dia da Apple. Então, foi um trabalho com toda essa complexidade técnica para ser tudo sincronizado. A gente tem um técnico incrível que faz isso, que é o Tiago de Mello, que faz também um trabalho chamado Adeus, palhaços mortos! [da Academia de Palhaços]. Ele faz a operação e criou com a gente esse programa. É tudo sincronizado, você aperta um botão, vem tudo. Em algumas passagens do texto ele segura um pouco porque depende da reação da plateia. E pedimos dois desenhos a mais para a Cristina [Gardumi] para completar.

O espetáculo tem um limiar muito difícil porque ele não pode ser interpretado. Porque não são atores… É um ator emprestando a voz para personagens, então não pode ser excessivamente interpretado e também se for só lido fica um saco. Ele tem uma fronteira superdelicada. Lá [Itália], ele lia, mas os desenhos eram os mesmos. Parecia que o desenho vinha para ilustrar o que ele estava falando, tenho essa sensação. Era mais ilustrativo do que plasmado.

A gente tentou também fazer o Cacá narrar essa história para o público direto, mas aí a gente fica olhando para ele, perde o desenho, perde o que tem que ler… Tem que achar uma relação de triangulação ali, eu até entortei a tela aqui: ele está em [posição] perpendicular, não é exatamente frontal.

Wanderley Costa Lima

Cacá e Medina se dizem desafiados em termos de linguagem

Cacá Carvalho
Eu queria falar uma coisa. Queria agradecer muito. Comecei aqui a segurar um choro violento porque vocês são pessoas muito sabidas, como se dizia na minha época, muito inteligentes e que viram no trabalho da gente coisas que eu não sabia que emitiam esses sinais. Vocês são muito inteligentes e me fazem ficar melhor na minha ignorância. É muito bonito o que vocês notaram no trabalho da gente e na hora me deu um desespero porque eu queria um papel para anotar, porque realmente são coisas muito generosas sobre um trabalho muito simples. Ele tem toda uma complexidade e às vezes eu fico até envergonhado de dizer como é complicado. “Ah, mas ele lê…”. E quando eu vejo que vocês detectaram tantos sinais e têm essa capacidade de ver o que está atrás do que está atrás, por conta do trabalho de vocês, eu fico pensando “que gente inteligente”.

É um trabalho muito diferente para mim e ele vem num momento muito diferente. Durante 20 e tantos anos eu fiz uns trabalhos sobre um modo de pensar as máscaras do homem e as relações familiares e sociais que Pirandello joga de um modo tão, tão… E eu penso muito a cada vez que toco nisso e como sair – ou melhor, não se sai nunca –, mas tocar num outro tipo de discurso sobre o homem para cair em Dostoiévski… Foi uma coisa que me enlouqueceu, mexeu com o meu corpo. A ponto de engordar demais para fazer e botar para fora todo um corpo, essa coisa de ficar cada vez mais presente, um corpo que fala. Eu também nunca tinha feito aquilo porque é uma exposição estranha e fantástica. A gente não sabia para onde ir. O que fazer?

Claro, existe esse interesse meu de sair pouco a pouco desse negócio de fazer teatro, esse é o propósito. Como sair disso? Não posso ser condenado a ficar nisso até o fim. Então, um modo de sair é ir tirando coisas pouco a pouco, e isso foi uma chave que eu demorei a entender e me serviu de modelo. De que outras fontes pode vir… Um modo de eu não estar, talvez, com o corpo, só a voz. Não é parar de fazer, mas parar de procurar “o que”. Isso é uma coisa que me preocupa já faz um tempo. Acordar e falar: “Tudo de novo”. Mas isso é uma preocupação artística também, porque quando você opta por fazer por contingências, a aventura de se escrever para teatro e se aprender com ele, é muito difícil de manter o caminho. Infelizmente não encontro um viabilizador. Eu tenho 63 anos, não sou mais uma pessoa para ser fomentada segundo o que é analisado num mercado de teatro hoje. Já fomentei o que tinha que ser fomentado para ser fomentado e agora tenho que conseguir como for. É muito difícil, e eu reconheço e acho que está correto. Então tenho que viabilizar um “como”, tenho que viabilizar viver, não tenho outra fonte de nada. E cada vez mais topo outros convites para outras aventuras.

Quando o “o que fazer” entrou nessa grande crise, eu estava fazendo uma adaptação para eu apresentar ao dramaturgo, o Stefan [Geraci, artista italiano de parcerias com a Fondazione Pontedera Teatro], de um Hamlet que não morreu, que está quase com mal de Alzheimer. É um trabalho que já existe enquanto texto, consegui fazer com a coordenação do Roberto [Bacci]. E a gente ia levar isso adiante quando aconteceu de nós estarmos fazendo o espetáculo lá em cima e o [Michele] Santeramo apresentando o dele embaixo. E tanto o Roberto como o Michele disseram, a respeito de A próxima estação…: “É seu, faça”. Mas eu não achei que aquilo era meu. Eu gosto de clássico, ele é moderno, escreve como fala. Era minha grande briga, não queria fazer, soava ruim tudo que eu lia. Não tem nada atrás, não conseguia entender, e isso levou muito tempo, pelo menos uns quatro meses. E aí um dia tive uma conversa com o Michele, sendo que já havia falado pela manhã com o Marcinho, e diria: “Não vou [fazer], muito obrigado”. E o Márcio disse que ia fazer. Liguei para o Michele e disse que ia desistir. “Desculpa, mas é raso”. Isso era umas 10h, às 17h a gente parou de conversar pelo Skype…

Eu lembro que não dormi, lia esse negócio e não conseguia parar de chorar. E aí vi o quão difícil seria fazer e percebi que eu estava na profissão errada. Lembro que disse: “Desculpa, não é ofensa”. Eu nunca serei uma Gloria Pires que sabe atender ao telefone como ninguém. Porque pra mim tinha que ser natural. Ela atende ao telefone e você jura que tem gente respondendo. Eu não sei fazer isso. Eu sou uma pessoa muito construída. As pessoas com as quais eu trabalhei me ajudaram a ser um ator que constrói, que pensa coisa, é complicado… Foi difícil. Em junho tínhamos uma coisa que não gostávamos. Em agosto, antes de o Marcinho viajar para a Romênia, já tínhamos uma estrutura, mas eu não consegui o Sesc, então levou quase um ano. Aí a gente começou a fazer para produzir, para montar. Fomos assistir Adeus, palhaços mortos! e falei: Marcinho, é esse o homem. Aí o maestro Tiago Mello começou a ver [o processo de criação] comigo, não entendo nada daquilo, para fazer essa orquestração das imagens com a palavra e com a música.

A chave de tudo foi no dia em que o Marcinho falou que são cinco estações: eles [os personagens] se conhecem jovens e terminam muito velhos, sendo que cada estação tem um corpo e um modo de falar. Quando apareceu isso, dito assim, me estourou uma coisa por dentro, falei: “Claro!” Tem que ter uma estrutura de fala. E aí começa essa coisa de achar como é uma fala de quem tem 30 anos, até eles chegarem aos 80. É a energia deles que faz com que falem assim e depois a energia vai mudando. E começou a criar um sistema de pensar as décadas e um sistema de expressar as décadas. E aí eu me vi num outro erro, logo que ele [Márcio] voltou da Romênia, de fazer a vozinha dela e a vozinha dele. E ficou horrível. Quando eu fiquei sem a referência e comecei a trabalhar sozinho, era uma desgraça, não conseguia ficar sem uma pessoa me olhando. E aí entra uma outra referência, que é fundamental: conheci um homem importantíssimo na minha vida, chamado Theophilo Mayer. Este homem é velhinho hoje em dia, alemão, veio ao Brasil e foi fundamental num trabalho que se fez de um espetáculo chamado Meu tio, o Iauaretê [1986]. Não viu nenhum ensaio, não viu o espetáculo, mas nessa época eu fiz uma oficina com ele e trabalhei junto ao Sesc Anchieta sobre galáxias, do Haroldo de Campos [Sonatas galáxias, 2004], ele estava trabalhando com os irmãos quando fiz uma oficina com ele. Aí seu Haroldo, que já tinha assistido a Macunaíma, disse: “Assuma isso”. E seu Haroldo foi fundamental para o espetáculo do Meu tio, o Iauaretê por me chegar com mais material, porque eu tinha que apresentar trabalho para o Roberto Lage. E o Theophilo faz música fonética com poesia dadaísta, e foi a chave para aquilo lá. E ele é um homem que me persegue, é uma referência de trabalho para mim. Depois eu conheci na Itália uma outra referência, um homem chamado Carmelo Bene [ator e dramaturgo]. Diante desse, o meu coração para. É uma coisa do tipo: “Nunca chegarei a isso”.

Márcio Medina
Ele tinha um trabalho muito forte de voz, com a sonoridade e com a técnica que envolve isso. Um domínio técnico incrível de microfonias. A voz dele amplificava e ia para todos os lugares.

Cacá Carvalho
E falando do ponto de vista da apresentação, mas um ponto de vista mais interessante que isso, é todo o pensamento filosófico, a transgressividade dele enquanto artista. Só tive a oportunidade de encontrá-lo umas cinco vezes, eu me desarticulava. Esse homem é outra referência pra mim. Esses dois [Carmelo e Theophilo] não estão nesse trabalho, mas sinto que eles percebem isso. Até porque se eles estiverem nesse trabalho, o protagonista do trabalho é o corpo da palavra. E, para mim, são os desenhos os verdadeiros protagonistas do espetáculo. Eles tomam, então eu tenho que fazer com que o espectador transite entre essa palavra que vira imagem e que soma com aquela imagem. Acho que esse triângulo, dentre tudo que a gente trabalhou, é a grande chave. Se eu ficar mexendo demais, e foi isso que eu aprendi a fazer… Quanto menos vir a palavra aqui, ela vira sentido chamando aquilo ali, que tiraria o brilho de ver aquela coisa se mexer que é a imagem parada. O desafio é até onde ir respeitando essas cinco dinâmicas.

A primeira dinâmica a que chegamos [quanto à trajetória dos personagens] é a das pessoas quando se encontram. Elas estão com tesão, elas não têm pausa. Depois elas se afastam fisicamente, quando ele vai pra África e ela fica em casa sem ritmo, e ele noutro ritmo. Quando ele volta, como será que está o ritmo dela e como está o meu? E ali eles começam a ter um confronto. Ele está reconhecendo uma casa que ela alterou e que ele só vai entender depois porque ela fez isso. Teve uma outra visita, um outro visitante. E como fazer a tradução das tonalidades, que é aí onde eu estava caindo: como é o ritmo em que eu percebo esse confronto que os desenhos já dão. Essa é uma parte difícil. E aí ela confessa que botou uma pessoa na casa, porque tem uma máquina que não te deixa mentir, o capacete. E aí a verdade começa a alterar os ritmos. Só que muda o corpo. Eles engordam, então não conseguem mais transportar um corpo, transportar a história. Então, a voz é outra. Começa a entrar uma série de respirações que sugerirão para o espectador não o peso, mas só vamos perceber depois.

A moça da produção, a Géssica [Arjona, da Condomínio Cultural], disse que estava nascendo uns espaços entre eles, que era o tempo, a gordura: estou cansado de transportar isso, e não só isso. E aí começou a aparecer um tipo de nuance e eu comecei a me divertir com a necessidade de construir ritmos vocais. E nasceram silêncios também. Eu nunca tinha me preocupado em construir silêncio. E a última parte é praticamente o protagonista silêncio. O tempo do silêncio. Coisa que na primeira etapa eles não tinham pausa. Parece que foi juntando umas coisas assim no painel, juro que não houve uma elaboração, não havia essa inteligência. Havia essa coisa que de fato eu nunca tinha feito. Aí eles começam a emagrecer, que foi outro desespero. Eles já estavam magros na frente do espectador. Por que eu tinha que fazer a voz do magro? Como é que eu traduzo isso? Mas eles já estavam com total desentendimento do mundo e de si porque já não tinham mais o sangue, a comida era barrinha de cereal: nós não fizemos nada para nos salvar, não fizemos a revolução. Eram cheios de uma indignação que a inevitabilidade da perda aplacou e vai entrando um outro tipo de ar nessa penúltima parte do trabalho. Começa a última parte e ele fala assim: “Quanto tempo falta?”.

A construção do corpo vocal para fazer aquilo se mexer, com a imagem lá parada [os desenhos projetados ao fundo da cena], os personagens são eles, eles são os protagonistas. E aí eu fui me dar conta no dia que conheci uma moça linda, grávida, a Mônica [Calmon], do Sesc [Pinheiros], ela foi assistir e ela chorava… Depois eu vi que o Sérgio [Luis Oliveira, da gerência de ação cultural do Sesc São Paulo na área de teatro] falou, no dia da estreia: “Cacá, é que eu perdi a referência de teatro”. Ele ficou um pouco sem parâmetro. E depois nós havíamos feito uma sessão para a Adriana [Monteiro], da assessoria de imprensa, e ela andava enquanto assistia porque estava dando uma certa coisa, começou a ficar um pouco angustiada. Vai dando mesmo uma certa angústia e eu só fui perceber depois, e a gente não tinha referência. Começou a ficar muito diferente do Michele. A gente tinha a referência dele, mas começou a ficar muito diferente.

Eu tenho uma amiga, parceria, atriz, chamada Silvia Pazello, irmã gêmea da ex-mulher do Roberto Bacci, que falou para o Marcinho na Romênia: “Esse espetáculo só deve ser feito pelo autor, não é para atores”, na opinião dela. Mas ele provou que estava errada. E nossa referência era nós dois. Não dava para fazer para o Roberto dar muito parecer e o Michele o máximo possível, mas não gostavam. Então a gente ficou meio sem referência. Mas quando a gente ouve esse tipo de coisa, tudo que foi escrito e vê como as pessoas saem de lá [a cada sessão]. Foi a primeira experiência, e era como uma neblina. Por que fazer diferente do que o Michele fez? Porque não cabia no Cacá.

Tive essa sensação de que você estava ali usando todos os seus recursos para conter os recursos do próprio corpo… Além da história do Máximo e da Violeta, que é linda e tocante, acho particularmente tocante ver o seu trabalho de mostrar essa orquestra sem som (Maria Eugênia de Menezes)

Agora estou vivendo um momento dificílimo: eu consegui pela primeira vez na vida – acredito que esteja saindo – um apoio que estou batalhando para fazer por cinco cidades o 2 x 2 = 5: O homem do subsolo, que poucas pessoas assistiram. Estou recuperando um Dostoiévski depois dessa experiência, que é um trabalho do corpo. Nunca pensei que essa experiência que eu não queria fazer de jeito nenhum fosse tão rica e do ponto de vista d’eu entender coisas de menos. De menos. Uma vez um senhor, que já morreu, disse que se você é uma orquestra, você tem muitos instrumentos e toca todos maravilhosamente bem. E tem que saber dizer para essa música que não vou te usar. E eu na época não tinha entendido. Acho que agora estou começando a entender. É muito complicado esse negócio.

Quando você faz um trabalho de expressividade como esse que o Roberto faz, falar com a poltrona escura: “Eu sou poltrona”, aquela maluquice toda. Vai virando uma coisa que você coloca cada vez mais instrumentos na orquestra, agora usando a imagem lá do moço. Eu expresso demais. É um defeito de fábrica ou de formação talvez. O excesso de tudo, e que eu preciso cuidar.

Com relação a tudo que vocês falaram, Michele diz uma coisa: “O espetáculo tem que olhar para o futuro”. O espectador ,você precisa fazer com que ele veja para trás. A história vai para a frente e para o espectador a história que entrar nele só tem referência para o que ele está vivendo. Você está apontando para a frente, mas eu já tenho dentro. Mas essa é uma experiência que não posso ter. O espetáculo não é feito para que se imagine o futuro. Se a pessoa imagina, ela só imagina em relação ao presente e ao passado que ela tem; cada um tem o seu. De tudo que ela tem de cultura acumulada, de percepção de mundo. Sei de uma coisa nesse trabalho, e isso para mim é um efeito estranho que acontece: eu termino esse trabalho muito mais cansado do que quando carrego aquele “poltronão” [referência ao espetáculo A poltrona escura]. É uma estrutura de uma partitura muito complicada. E aí eu não colocar aqui o nome do maestro Tiago Mello é uma grande injustiça porque ele quem fez.

Vou repetir o Michele: “Cacá, o espectador tem que ler a sua voz. Ao mesmo tempo em que lê a sua voz, ele vê a imagem. Quando ele vê a imagem, ele não está vendo, está lendo a imagem”. Difícil. São outros códigos, não tem a história do personagem, é como se eu estivesse trabalhando com outro tipo de coisa. Ele falava: “Ou ver ou ler, ouvir e criar”. Então se você der demais, se você interpretar demais, você está fechando demais a possibilidade dele fazer o movimento que ele quiser com aquilo que ele ouviu. Era assim, mas como é que eu vou colocar isso bonito da forma que vocês colocam.

Márcio Medina
A gente falou muito disso. Tem lá o texto que é lacônico, tem você que não representa, está ali presentificando, mas sem representar. Tem um desenho que é muito sugerido, é bonito, é visível e tal, mas tem um quarto elemento que eu acho ser uma referência significativa: a imaginação do público. Tem uma crítica que disse que o protagonista é o público.

Cacá Carvalho
Por isso falo que o protagonista é o desenho, é com quem eu dialogo. Inventei que aquilo ali é o personagem para eu me agarrar a alguma coisa. Depois tem uma frase do texto do Roberto Bacci, que é o tal do entre: “O que é um livro? Um livro não existe. Dom Quixote não existe. Pirandello não existe. Livro é um objeto. Dom Quixote está no intervalo entre aquilo que está escrito e aquilo que acontece aqui. É nesse intervalo que existe. O espetáculo existe no intervalo”. E quando ele falou isso dessa vez era para entender que o espetáculo existe entre o espectador e a imagem, e entra aqui. Agora existe essa estrutura, quando o maestro falou são 67 minutos e fecha em 67. São 454 imagens. Não parece que tem tudo isso. São 454 movimentos que acontecem no espetáculo.

Maria Eugênia de Menezes
Tenho a sensação que seu cansaço não seja tanto pela partitura, porque isso você domina com muita precisão, mas pelo esforço de conter esse corpo. Você falou que é para as pessoas verem as imagens. Eu via as imagens e realmente é um trabalho muito bonito, mas o que me pareceu mais bonito foi ver você em cena. Quando você falou dessa imagem da orquestra, de ter todos os instrumentos e saber qual tocar, é como se você tivesse uma orquestra no palco e como se fosse uma exposição. “Tenho todos os instrumentos, mas não vou tocar nenhuma para vocês”. Como uma grande dançarina que ficasse parada em cena e fazendo esforço para ficar parada… Tive essa sensação de que você estava ali usando todos os seus recursos para conter os recursos do próprio corpo… Além da história do Máximo e da Violeta, que é linda e tocante, acho particularmente tocante ver o seu trabalho de mostrar essa orquestra sem som. Parece muito natural para quem não te conhece, mas é um esforço absurdo, sem a mão, sem o movimento. O espectador precisa ver os desenhos, mas precisa ver também você. O fato de você estar de pé é essencial, por exemplo, mostrando essa contenção, essa força.

Beth Néspoli
Me parece que você tinha dito que tinha algum momento de troca de texto, de fala.

Cacá Carvalho
O Marcinho falava assim para mim: “Você não pode memorizar nada”. O Michele dizia que toda semana mandava a mesma cena com pequenas variações de textos, então fez isso em duas semanas. Quando você assistiu ao terceiro bloco, uma coisa tua já sabe que vem, você estruturou. Mas quando vem e está uma outra coisa, é como se você tivesse encontrado na estrada um obstáculo, precisa estar muito atento e isso é uma coisa fundamental. Claro que a gente continua para que essa experiência seja mais frequente porque gera uma atenção necessária, ativa uma necessidade de ficar sempre alerta. Até porque as mudanças que ele faz, se eu for me permitir fazer alguma pausa extra ou uma qualidade de leitura “x”, diferente daquela que já está sendo programada, isso altera o tempo da maquininha, e está correndo a máquina.

O programa está num HD deste tamanho [gesticula], 4 tera. Tem momentos que ele breca, porque tem risadas, principalmente quando a gente começa a ficar mais desajeitado consigo e com o mundo. Já teve plateia que falou: “Não acredito que eles vão fazer isso. Para!”. E essa experiência da mudança da palavra é fundamental. Eu não sei de cor. O texto nunca saiu da sala de trabalho. É da profissão até, ele tem que ter um frescor diferente daquele que a gente diz: “O espetáculo é um novo hoje porque…”. E, de fato, é. Mas são liberdades que eu tomo. No final, para não chorar, e eu já me vi chorando, é maluco, uma coisa técnica, tão determinada, quando ele diz para ela: “Eu também, Máximo”. Eu não conseguia, comecei a chorar e perguntei se eu podia falar assim: “Eu também, Máximo. Eu também”. Como é que pode uma coisa tão estruturada gerar uma emoção dessas, porque é muito sincopado. Os primeiros 10 anos duram 16 minutos. Se eu não fizer em 16 minutos, pula o negócio lá. Eu tenho que fazer em 16 porque é um programa.

Lenise Pinheiro

O subtítulo “um espetáculo para ler’ segundo a imagem de Carvalho

[Abre para perguntas]

Fernando Poli (ator e espectador)
A idade traz muitas coisas legais para a gente, uma delas é referência. Eu tenho muitas lembranças de grandes espetáculos de atores e atrizes muito bons e você certamente ocupa um lugar muito especial para mim porque te conheci fazendo Macunaíma, no Teatro São Pedro, vi umas quatro, cinco vezes, lembro de coisas, de falas do espetáculo. Mas esse espetáculo [A próxima estação] me levou para um outro lugar, dessa coisa do estar como espectador, mesmo com um olhar de ator. Primeiro, por tudo isso que já foi falado, por ser um percurso dentro da linguagem de uma caixa de teatro completamente diferente. Você falou da neblina e me lembra uma frase do Hermann Hesse [1877-1962]: “Estranho sentimento daquele que caminha na neblina”. Porque é uma coisa muito interessante. De certa forma, o início da pesquisa sempre leva para essa sensação. Você falou da orquestra, dos instrumentos, e eu tive uma percepção similar à sua, mas eu via ao contrário. Eu via um maestro com a batuta na mão, mas sem reger, e com a orquestra inteira na frente dele tocando. Foi a sensação que você me passou, porque você tem um vigor e estava tudo na voz, me penetrava pelos ouvidos e aquelas imagens. Eu entrei completamente na proposta. Se você quer alguém que confesse “sim, deu certo”, fui eu. Não sei se teve mais, mas comigo foi uma coisa muito forte. E essa tessitura do texto, eu me vi como Violeta, me vi como Máximo, me vi nesse cidadão que viveu esses 50 anos e veio parar aqui nesse momento, me vi emocionado de não ter feito algumas revoluções na minha vida e você criou isso, vocês criaram. Pena que eu não pude ver uma segunda vez, porque quando eu vejo um espetáculo que me pega, me agrega, mobiliza, eu vejo até quatro vezes porque é uma aula para mim. E eu espero que você possa voltar porque queria ver mais, porque é uma aula no sentido mais simples. Ver uma pessoa que consegue passar nesse moedor de carne que você deve ter passado e estar inteiro. E ainda sabendo falar, explicar, é uma coisa muito tocante, muito comovente ver um artista fazendo um trabalho desse, conjugar as pessoas, os elementos e com uma precisão e uma limpeza, porque eu ando absolutamente abusado de tecnologia, de microfones e de projeções. Você é um ator que é um dos marcos na nossa história do teatro. Você criou muitas coisas, realizou, é uma referência dentro do trabalho de ator, de uma série de coisa. Você fazer isso, aqui em São Paulo, com um espetáculo desse acho que mereceria mais tempo, deixar reverberar. É um trabalho que ao mesmo tempo que tem um virtuosismo todo, por outro lado eu sentia que era orgânico, você falava. A velocidade em que você faz as falas dos outros e essa questão dos ritmos através das cinco estações, eu sai do espetáculo e não caia a máscara de oxigênio, saí sem fôlego. Como é que ele fez isso? É um trabalho muito bem composto, como uma joia que a gente olha os detalhes. Além da apreciação, tem uma reverência minha. Sou grato pelo trabalho de vocês, pelo sacrifício. O Chico Buarque tem uma música chamada Morro dois irmãos e ele faz umas contraposições muito interessantes, como nesses versos: “… como uma música parada/ Sobre uma montanha em movimento”. Tem as duas pessoas ali, mas elas não estão. Não está sendo interpretado; elas também não estão ali porque não são fotografias, são desenhos e não são desenhos de dois humanos, são desenhos de dois seres.

Cacá Carvalho
Tem um garoto [o ator, diretor e doutorando Alberto Silva Neto] que me surpreendeu, fez um trabalho comigo em Belém do Pará, um trabalho de Nelson Rodrigues que eu dirigi, Senhora dos afogados. Esse menino não fazia teatro, ele começou a fazer e hoje ele é professor de teatro na Universidade Federal do Pará. Ele me surpreendeu há um tempo atrás dizendo que ele está fazendo a tese dele sobre o Cacá. Como assim? Eu estou cuidando para desaparecer. Esse cara é maluco. E ele tinha sido aprovado pelo orientador dele, um cara que eu respeito muito, Ernani Maletta [pesquisador, professor da UFMG e diretor musical parceiro Grupo Galpão], que mexe com voz, canto e ele queria também fazer uma abordagem. Então eu me vi falando coisas sobre esse tipo de expressão, que eu raramente falo, de trabalho, mas ele disse: “Cacá, eu quero ver esse espetáculo porque me parece que é o primeiro espetáculo que você não sabia o que é, porque é e como é”. E, por outro lado, você vai ter que descobrir um novo modo de manter o frescor. E aí o Roberto Bacci tem estratégias incríveis, a gente é de uma geração que tem cavalo de batalha, sabe. Como manter vivo? É um mecanismo maluco que tem que criar que não é fácil. E esse aqui [A próxima estação…] eu não sabia o que era o texto, porque é que eu queria fazer o texto e como vou fazer o texto. Diferente de quando a gente pega um Hamlet e sabe o que é. Eu não tinha esses dois degraus que a gente tem normalmente quando ciente de uma referência. Minha referência era o Michele, então eu surtava. E esse menino me surpreendeu com essa frase, me fez pensar muito. Disse: “Você é um ator da época do cavalo de batalha”.

Valmir Santos
Em tempo: o Michele Santeramo tem 42 anos, jovem artista italiano. Mais alguém viu o espetáculo e quer comentar?

Cacá Carvalho
Vou falar de uma outra experiência, que ia acontecer agora e é interesse, do Marcinho, que quer muito que aconteça e eu também, não sei como a gente vai conseguir. Uma das cidades onde fomos fazer 2+2=5 foi Salvador. Existe um projeto lá que faz teatro a R$1 no Teatro Castro Alves, aos domingos de manhã. E eu tive a experiência de fazer a R$ 1 real, para cerca de 1.500 pessoas. Um Dostoiévski. Mas, a menina da programação, a Rose Lima [diretora artística do TCA], disse que queria fazer A próxima estação… E aí bate porque o sonho do Marcinho é que a gente faça uma tela grande. Eu queria fazer grande, mas não vai rolar. E a gente queria fazer com muita gente. E por isso que fazer mais é importante.

Márcio Medina
A gente queria agradecer bastante a vocês. Essa iniciativa é incrível, de discutir um trabalho, a proposta de um trabalho. Agradecer ao Celso e à Sylvia. E a gente vai lutar para o trabalho voltar. Muita gente não viu e o trabalho merece continuar. E para mim é quase que eu uma pesquisa mesmo de linguagem.

Cacá Carvalho
Eu saio agradecido, muito. E tem um lado meu que gostaria de não ter ouvido nada disso, porque é perigoso, muito perigoso quando você vê tanta gente falando tanta coisa que, se você não souber que é pão, pão, queijo, queijo, eu piro. Eu fico muito preocupado com o depois. Ouvir esse monte de coisas de vocês, eu fico maravilhado porque ao mesmo tempo em que veem a história do Cacá, vocês veem coisas que o trabalho ainda não tem noção do que está gerando. E eu saio aprendendo muito, ainda vou ter muita coisa para escrever e agradecer sempre.

.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de 2×2=5 – O homem do subsolo (2015) A próxima estação – Um espetáculo para ler (2017) 

.:. Leia a íntegra de outras edições do Encontro com o Espectador, desde junho de 2016

Equipe de criação

A próxima estação – um espetáculo para ler

De uma ideia de Luca Dini e Michele Santeramo

Com: Cacá Carvalho

Texto e Direção: Michele Santeramo

Tradução: Cacá Carvalho

Ilustrações: Cristina Gardumi

Coordenação artística: Márcio Medina

Assistente de direção na Itália: Erica Artei

Colaboração artística: Roberto Bacci

Músicas originais: Sergio Altamura, Giorgio Vendola e Marcello Zinn

Sonorização e projeção: Kako Guirado e Tiago Mello

Assessoria de imprensa: Adriana Monteiro – Ofício das Letras

Fotografia: Lenise Pinheiro

Produção executiva e administração: Géssica Arjona

Parceria de produção: Condomínio Cultural e Teatro della Toscana – Itália

Produção: Casa Laboratório Para as Artes do Teatro

Agradecimento especial: Luciana Caminha – Mina Cultural, Iris Cavalcanti, Junae Andreazza e Micle Contorno

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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