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Encontro com Espectadores

Hamlet, os Guimarães e Aragão: todo ouvidos

26.1.2018  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Fiac Bahia / Leonardo Pastor

No texto que se segue, o leitor pode acompanhar o diálogo entre os críticos Valmir Santos e Beth Néspoli com o ator Emanuel Aragão sobre o solo Hamlet – Processo de revelação, espetáculo escolhido para participar do 8º Encontro com o Espectador, ação do site Teatrojornal – Leituras de Cena, realizado no Ágora Teatro, em março de 2017.

O espetáculo tem direção de Adriano e Fernando Guimarães, do Coletivo Irmãos Guimarães (Brasília). Desde 1989 essa dupla concebe trabalhos em teatro, dança, performance e artes visuais. A obra do irlandês Samuel Beckett, por exemplo, é uma evocação constante dentre as mais de 40 criações.

Valmir Santos
Boa noite. Sejam todos muito bem-vindos. Hoje é um dia muito especial pelo 27 de março, Dia Internacional do Teatro e o Dia Nacional do Circo. Nessa data emblemática, temos um contexto especial em relação ao campo das artes cênicas e da realidade enquanto política cultural na cidade de São Paulo. Houve uma manifestação bastante potente hoje, que começou às 15 horas e, parece, segue até agora, no centro da cidade, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo.

Passei lá no início da concentração e, ao vir de táxi para o Ágora [no bairro do Bixiga], ouvi uma transmissão ao vivo da Rádio CBN, em rede nacional, sobre essa manifestação. Considero muito impactante para a gente, do meio teatral, poder escutar um repórter em campo, nessa emissora que pertence ao Grupo Globo, descrevendo com muita sensibilidade o que estava acontecendo. Ele descreveu a ação desse cortejo anunciando que existia uma “narrativa” (ele usou essa expressão) e falou muito bem de como havia diferentes alas representativas.

A manifestação é contra o congelamento de mais de 40% das verbas da pasta da Cultura, uma desmontagem que vem acontecendo em níveis municipal, estadual e federal. Dessa manifestação participavam artistas das artes, da dança, do teatro, do circo e da música, e eles arquitetaram os seguintes modos cênicos de ação de cortejo: a palavra central era “Cultura”, formada pelas suas sete letras estampando as portas de geladeiras simuladas e conduzidas pelos participantes. O repórter da rádio ia narrando essa imagem icônica e dava a ver o protesto organizado contra o congelamento da cultura como naquele filme A era do rádio, do Woody Allen.

Todos os dias eu vou fazer a peça achando que ela vai dar errado, mesmo. Penso isso todos os dias, não tem segurança, mas só assim faz sentido para mim (Emanuel Aragão)

Na sequência desse percurso surgia uma ala de açougueiros com corações e pedaços de carne nas mãos, numa relação com a carne cortada e congelada. Mais atrás, havia esqueletos sob uma queda de neve. Congelamento, cortes, neve, esqueleto, morte, enfim, de uma forma muito simples ele narrou isso e falou que cultura não é mercadoria. Ele usou esse slogan, que é o slogan da ação desse cortejo agora à noite. Então, diante dessa conjunção da data e da manifestação de hoje, a gente fica muito feliz com esse quórum, que de alguma forma conseguiu atravessar aí todas as contextualizações da vida pessoal e da cidade para estar aqui no Encontro com o Espectador, que é uma iniciativa que vem acontecendo desde junho de 2016. Esta é a 8ª edição e a gente tem como princípio aproximar essas três figuras: o criador, o público e o crítico; tem como princípio a prática da crítica em um ambiente mais horizontal, mais informal, de modo que possa haver aqui um encontro que traga outras revelações, outras angulações sobre a obra a que a maioria de nós assistiu.

O espetáculo que a gente traz pra roda hoje é Hamlet – Processo de revelação, uma criação na parceria dos irmãos Guimarães com o Emanuel Aragão, que está aqui representando essa obra, essa criação. Aí, dentro de uma dramaturgia que a gente está improvisando nessa apresentação, eu passo a palavra à Beth, que vai contextualizar a ausência dos irmãos Guimarães.

Beth Néspoli
Foram muitos os percalços. Fomos ver o espetáculo juntos, eu, Valmir e Welington Andrade, crítico da revista Cult que não está aqui hoje, pela primeira vez ausente desse encontro. Discutimos juntos. Depois, a gente decidiu, eu e Valmir, que seria essa a montagem escolhida para debate nesse 8º encontro. Enfatizo a decisão porque havíamos combinado, ao criar o Encontro com o Espectador, que as escolhas recairiam preferencialmente sobre espetáculos de São Paulo, uma vez que a cidade tem muita produção cênica. O Emanuel Araújo, que é o ator do solo, é do Rio; e os diretores Adriano e Fernando são de Brasília, mas ainda assim achamos que era um espetáculo que valeria ser discutido.

A gente sai do espetáculo com um incômodo, impactado, é sempre uma sensação muito difusa, acho que é assim para todo mundo. Mas quando você senta para escrever, tem de entrar naquele embate. Foi no momento da escrita que pensei: por que aquele ponto incomoda tanto? (Beth Néspoli)

Não conhecia o Emanuel pessoalmente, para além de vê-lo no palco; já quanto ao Adriano e o Fernando, há muito acompanho o trabalho do Coletivo Guimarães e dialogamos em diversas ocasiões, o que permitiu conversar abertamente sobre o convite que era destinado, necessariamente, ao trio de criadores. Havia questões envolvendo os custos de uma estadia em São Paulo após o término da temporada, além de alteração de datas de passagens aéreas, enfim, custos não previstos pela produção da montagem e também não cobertos pela organização do Encontro com o Espectador, que é realizado sem qualquer apoio e sempre contou apenas com o desejo dos participantes. Havia ainda questões de ordem pessoal, compromissos nas cidades de origem. Diante desses obstáculos, o trio, muito generosamente, se propôs a investir pessoalmente para estar aqui hoje. Agradecemos muito por isso. Porém, fomos todos surpreendidos por um problema de saúde nesta madrugada que levou a dupla ao hospital e impediu a vinda de Adriano e Fernando. Felizmente, embora tenha sido uma emergência grave com cirurgia incluída, o risco já passou, estamos todos tranquilos agora, mas obviamente não seria possível, para eles, estar aqui com a gente hoje. Por tudo isso, agradecemos imensamente a presença do Emanuel nesta noite.

Valmir Santos
Quero reforçar a parceria com o Ágora Teatro, que abriu a casa para o Encontro com o Espectador desde a primeira edição, e hoje especialmente para receber a gente, sempre nesse ambiente cenográfico que nos aquece [referência ao cenário criado por Sylvia Moreira, uma vez que a sala que abriga o encontro é a mesma na qual Celso Frateschi vem interpretando a Trilogia Subterrânea, integrada por três textos do escritor russo Dostoiévski – O grande inquisidor, Sonho de um homem ridículo e O Subsolo]. Queria citar algumas presenças hoje: a Carolin [Overhoff Ferreira], pesquisadora e professora de teatro e de cinema, escreveu críticas para a Folha durante um tempo. Fiquei surpreso de vê-la aqui, junto com alguns alunos e alunas dela [da Unifesp]; a presença do vereador Adriano Diogo, uma vez que é muito interessante ter entre nós um representante da política [do Partido dos Trabalhadores] que historicamente contracena com o ambiente cultural da cidade; e da Pollyanna Diniz, que é crítica e jornalista, coeditora do blog de teatro Satisfeita, Yolanda?, do Recife.

Um resumo da trajetória do Coletivo Irmãos Guimarães: é formado em 1989, portanto, há 27 anos na estrada, sem abandonar a plataforma de voo que é Brasília. O Emanuel também nasceu lá, ainda que atualmente more no Rio. O Adriano e o Fernando são artistas visuais, diretores e professores imersos na relação da palavra e da imagem, no teatro, na dança, nas artes visuais e afins. Em linhas gerais, seus trabalhos têm essa ideia da interlocução com o outro, esse desconhecido, quer esse outro sendo parcerias criadoras, quer pesquisadores de distintas linguagens, quer o encontro com o público. Essa ideia de alteridade é uma constante na visão e nos trabalhos que eles criam. Em 1996, dividiram o Prêmio Shell do Rio de Janeiro na categoria direção ao realizar uma parceria com o artista e professor uruguaio Hugo Rodas, referência na cena brasiliense. Juntos, dirigiram Doroteia, de Nelson Rodrigues. O Coletivo Irmãos Guimarães e o Emanuel Aragão são parceiros recorrentes em criações, por exemplo, na experiência de Nada, em 2012, que foi um espetáculo a partir da obra de Manoel de Barros em articulação com a obra de Beckett, sendo ali a parceria entre o Coletivo Irmãos Guimarães e a Cia. das Inutilezas, formada em 2007, da qual o Emanuel é cofundador. Portanto, ele também atua nessa dimensão coletiva, um trabalho de grupo continuado.

O Emanuel é ator, diretor e dramaturgo formado pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), como ator. É bacharel em filosofia pela Universidade de Brasília (UNB) e fotografia pela Escola Brasiliense de Fotografia. Ele também é romancista, autor de Reflexão a respeito do vaso, lançado em 2011, pela Confraria dos Ventos.

Wanderley Costa Lima

A partir da esquerda, Santos, Aragão e Beth no Ágora Teatro

Beth Néspoli
Esse é um espetáculo sobre o qual muitos de nós escreveram. Eu, no Teatrojornal; Valmir, na Folha de S.Paulo; Welington, no site da Cult; Maria Eugênia, no jornal O Estado de S.Paulo [links abaixo]. Então, acho que nossa voz já está na roda. Seria legal se você pudesse dialogar um pouco com essas vozes dentro dessa ideia da triangulação. Por exemplo, quando eu falo do espetáculo, eu comento sobre duas linhas de força: a ideia de você trabalhar sobre o modo de adesão do público e sobre o você traçar uma espécie de paralelo entre as tarefas de enfrentar o monólogo do “ser ou não ser”, para o ator, e matar o tio, para o personagem. Como isso é para você, faz sentido? Também gostaria de saber se veio primeiro o desejo de trabalhar com o modo de adesão ou se primeiro surgiu o desejo de trabalhar o Hamlet porque tem a ver com sua história, com o desejo de trabalhar a relação com seu pai, a sua perda.

Mas também tem outro ponto, sobre o qual você pode falar depois se você quiser: nós três, ao sair do espetáculo, embora divergíssemos, havia um ponto de vista sobre o qual concordávamos: a gente achou ruim aquela parte que você faz a sua lista de desejos; eu trouxe para a minha crítica, chamei de “comunidade hippie”, todo mundo no palco.

Tem isso de que a gente sai do espetáculo com um incômodo, impactado, é sempre uma sensação muito difusa, acho que é assim para todo mundo. Mas quando você senta para escrever, tem de entrar naquele embate. Foi no momento da escrita que pensei por que aquele ponto incomoda tanto? Porém, nas duas vezes que eu vi o espetáculo, naquele momento da lista de desejos, embora houvesse sutis variações, tanto a ambição de fazer um Hamlet capaz de mudar a história das montagens, quanto à de colocar os travesseiros no palco para a criação daquela comunidade utópica de espectadores se mantiveram na lista de desejos, de pensamentos inconfessáveis como é dito. Então deve ter uma importância para você.

Emanuel Aragão
A gente [ele e os irmãos Adriano e Fernando Guimarães] trabalha junto desde 2012, a primeira coisa que a gente fez foi o Nada e eu fiz como dramaturgo, eu não estava em cena. Na verdade, eu trabalho muito mais como dramaturgo do que como ator. Hoje em dia, muito pouco como diretor, também fui cada vez mais me inviabilizando nesse cuidado que o diretor tem que ter. Então, a minha relação com eles era em operar as palavras. O Nada surgiu como peça, depois adaptamos para um roteiro e ele vai ser filmado agora em 2018. Vai virar um filme, depois de um ano de adaptação de roteiro, de um índice de linguagem teatral, de adaptação da literatura, de um universo sintático do Manoel de Barros para o palco e depois a gente seguiu pro cinema. Nesse meio tempo eu escrevi alguns textos de instalações deles e fiz um Beckett como ator, mas era uma experiência estranha já. Eu não aguento a coisa do ensaio do teatro, por isso eu parei de dirigir também.

Resumindo: o Adriano não sabia que eu era ator de verdade. São Adriano e Fernando, mas eles ocupam um lugar muito diferente no processo de criação. Fernando cuida muito mais da estrutura do trabalho do coletivo e o Adriano da lida diária. Aí Adriano me viu fazendo uma peça, ele morava do lado da minha casa no Rio e dei uma carona pra ele. E ele: “Ah, você é ator. Que coisa estranha. Você não quer fazer Hamlet?”. Falei: “Quero, né”, vamos. Quem não quer fazer Hamlet? Mas eu não estava entendendo muito o que ele quis dizer, o que era essa ideia. Depois a gente sentou e começou a operar isso tudo, daí que fui entender que ele estava falando de um monólogo. Aquilo me estranhou a princípio, mas ele queria tentar ver se era possível. Ele já tinha feito uma versão antes com os alunos da universidade que era só de montar as imagens das cenas sem as cenas em si, construir a cena pela imagem que resta da cena. Tem as cenas do Hamlet, mas ele operava construindo as imagens da cena, mas sem fazer a cena. Na hora em que a cena estava construída, virava resíduo dela e fotografia disso, imagem impressa de alguma coisa que tinha sido, mas ela em si não se dava. Mas isso é outro trabalho, o FotoHamlet, que não sei nem de que ano é [2005].

Ele falou que o que queria com Hamlet, porque eu sou dramaturgo, que a gente conseguisse operar os sentidos da peça ao mesmo tempo que tenta fazer. E pensei que isso eu consigo fazer. Das tantas coisas que a gente pode fazer na vida e das várias outras que a gente não pode, essa eu falei que talvez isso eu consiga fazer. A gente não tinha noção do que ia virar. E editais, editais, aquela coisa, ganhamos um certo dinheiro pra fazer, da Oi. Começamos a fazer. Quando entramos na sala de trabalho, no comecinho de 2015, a gente não tinha a menor ideia do que ia fazer e começou a imaginar peças possíveis. Como seria um Hamlet para você? E um Hamlet tem tudo ali. Livros, filmes, todas as versões que fizeram, as que você gosta, as que não gosta, e aquilo foi indo. A gente começou a tentar entender o que era Hamlet para o Adriano e para mim. Ele muito conectado às artes visuais e, para mim, uma relação com a palavra. E na minha companhia, que eu nem sei se existe ainda, mas teoricamente ainda existe [Cia. das Inutilezas], a gente sempre trabalhou com recolhimento de dramaturgias diversas, criava a partir de entrevistas, diários, colocando pessoas que não eram atores em cena, esses resquícios e a ideia de que você pode juntar a dramaturgia de vários jeitos. Então Hamlet tem um pouco isso também.

A gente discutia todos os dias e pegava o texto e tentava fazer. A ideia de ser uma conversa vinha daí: já era uma conversa, sempre foi uma conversa, então precisa continuar sendo uma conversa (Emanuel Aragão)

Mas aí então fomos operando sobre o Hamlet e tentando ver como é que ele poderia ser. Um dos acordos que a gente tinha com o Adriano era que eu não queria ensaiar a peça e ele falava que precisava ver a peça, mas eu não ensaio, não vou ensaiar. Para mim, teatro só acontece lá na hora em que acontece. A gente pode discutir aqui o quanto a gente quiser, gastar o que for, mas eu não vou ensaiar essa peça. Ele achou que eu estava de sacanagem com eles, eu acho, mas não era. E, de fato, a primeira vez que a peça foi feita foi na estreia no Cena Contemporânea em Brasília [2015]. E foi um choque porque, de repente, tinha 400 pessoas lá e eu tinha que tentar fazer aquele negócio, e não era fácil, e cada vez é mais difícil.

Mas para mim teatro tem uma ideia de inauguração mesmo, então quando eu ensaio para o diretor, ele vê aquilo já e eu faço de novo para ele, parece que eu estou mentindo porque ele já viu. A reação dele não é sobre nada inaugural, são ajustes. E para ajustar a gente quer achar algo melhor que alguma coisa. Enfim, mas isso é a minha experiência de estar em cena. Teatro pode ser feito de milhares de jeitos diferentes. Por isso não sou ator nesse sentido, porque não consigo lidar com a coisa do “faz de novo”. Mas quando tem alguém me falando que é melhor eu estar sentado do que de pé, eu falo que não posso fazer isso, porque tenho que poder escolher, acho que todo mundo tem que poder escolher.

Então o Hamlet tem isso, não tem nenhuma marca, nenhuma palavra escrita, nenhum texto, nada. Então como é que a gente faz uma peça que não tem nenhuma palavra escrita e que seja você tentando fazer o Hamlet nesse sentido, e isso foi caminhando assim. Acontece que a cada vez que a gente interrompe a peça, antes de São Paulo a gente tinha feito a última vez no Mirada e a gente ficou sem fazer, sem se falar um tempo, e quando a gente se reencontra a gente fica: “Como é que vamos fazer de novo?”. Já não lembra mais da peça, mesmo. A gente sabe algumas coisas, mas como é que se passava de uma coisa para a outra? A gente não sabe mais e passa horas tentando lembrar e pensar como é que faria sentido aquela conexão de novo, do “ser ou não ser” para ideia de resolução na vida, por exemplo, que é um conceito que está lá. E a gente tenta reconstruir, construir uma ponte que já não é mais a mesma, é uma ponte nova de significados, de sentido mesmo. E aí a gente faz uma nova versão da peça para essa nova temporada e tenta estrear.

Na estreia aqui em São Paulo eu estava muito nervoso, tremia. Não acho problema o nervoso. O nervoso é a matéria que eu tenho naquela hora. Nesse sentido, o Hamlet está conectado à performance dele naquele momento e é o que é. Não que não tenha rigor isso, tem muito rigor, mas não tem nada definido, então eu posso falar o que eu quiser falar, teoricamente. Por isso que fazer sem o Adriano é tão estranho, porque a gente tem que discutir depois. Todos os dias a gente chega horas antes no teatro, três horas, e discute tudo de novo para poder fazer e discutir tudo de novo depois. Então, não tem nada definido, mas é tudo muito neurotizado, cada escolha é uma escolha muito séria e por isso a gente passou a chamar de dramaturgia em cena o que eu faço e não de atuação. Mas também não sei se é um termo que faça tanto sentido, depende de onde você quer olhar.

Fiac Bahia / Leonardo Pastor

Emanuel Aragão durante apresentação em Salvador em 2015

Por exemplo, a história do meu pai, não era uma coisa que eu queria elaborar, mas a gente pensou que seria importante colocar o performer em situação como identificação para as pessoas, assim como Hamlet, de conectar essas duas figuras para que elas possam seguir, o Hamlet e o performer. Então como é que a gente ia colocar esse sujeito em situação de tensionamento; e daí veio a história do meu pai e a construção que a gente fez dela, porque aquilo não é uma história real. Meu pai, de fato, morreu, mas é uma construção narrativa a partir disso. Tudo aquilo é uma montagem de coisas e significados para que gere conexão. Cada pedacinho conecta a alguma coisa, cada imagem escolhida para estar junto ali. A gente vai tentando juntar para virar sensações, por exemplo aquela ideia de entrar e sentir uma coisa, e depois voltar para tentar registrar essa coisa, essa sensação de novo, é uma história do enterro do pai do Marlon Brando, não é do meu pai, mas a gente achou que fez todo o sentido para nossa peça e virou o que virou. Então a gente não está preocupado com o que é ou não é, a gente não faz realmente essa distinção do ficcional e do real, o verdadeiro, o fato alternativo. A ideia era conseguir operar o tempo todo essas figuras que são o eu, aquele sujeito na peça e o Hamlet. E, na verdade, acaba tendo três: o Hamlet, minha discussão/análise sobre o Hamlet e eu como sujeito colocado ali como questão, a minha experiência pessoal como vetores que vão se entremeando. Às vezes eles são muito separados, ali está o Hamlet ou ali está o Emanuel explicando ou falando de uma questão de dramaturgia mesmo e ali está a história dele, que é o personagem Emanuel. Às vezes elas ficam muito mais confusas, a zona cinza é muito mais penumbra e diluída, então ela varia em função de muitas coisas.

Beth Néspoli
E o público, aquela relação com o espectador, vocês estabeleceram desde o começo?

Emanuel Aragão
Eu acho que não adianta fazer uma peça que você imagina de um jeito e começa o processo de um outro jeito. Então, o procedimento dialético entre eu e Adriano gerou a peça, o diálogo e a tentativa de fazer os textos, de entrar e explicar era o processo. A gente discutia todos os dias e pegava o texto e tentava fazer. A ideia de ser uma conversa vinha daí: já era uma conversa, sempre foi uma conversa, então precisa continuar sendo uma conversa. Não faria sentido se a gente tivesse conversado tanto tempo e, de repente, parasse de conversar. E agora vou fazer a peça. A conversa tem que continuar, as pessoas podem falar, mas não é essa a questão. Tem muito esse tensionamento do que é a subjetividade, a individualidade, a exacerbação disso e o que é a tentativa de contar, a tentativa de diálogo. E será que uma coisa está impedindo a outra, porque tem muito a ver com isso, como é que a gente faz pra conversar. Talvez tenha essa ideia de que a gente precisa tentar se colocar num panorama comum para tentar conversar. Será que é assim, será que é isso? Ou se a gente for mais pormenorizado na nossa individualidade a gente talvez consiga se comunicar de uma outra maneira, mais concentrado no que é específico da gente, fazer isso tocar e tocar de volta e voltar.

E eu, uma coisa que eu fui aprendendo mesmo, de verdade, foi a ouvir as pessoas de um jeito mais razoável um pouco (Emanuel Aragão)

O momento da lista de desejos, quando eu falo que queria todo mundo junto, que dormisse junto, que morasse perto e que visse o dia nascendo, que não tivesse mais tempo, é um delírio, óbvio. E hoje eu fiquei muito pensando porque aquilo está lá. Talvez eu não tenha elaborado tão bem quanto você elaborou. E a crítica faz a gente repensar mesmo no negócio. Aquilo foi escrito em 2015, mas está pautado pela vontade de se comunicar, de se conectar, mas que é inviável porque você está o tempo todo querendo falar de si. Mas essa crise está lá, ela não se resolve. Então, aquela lista para mim é o momento mais complicado da peça. Todos os dias eu fico: como é que eu vou fazer a lista hoje? Nessa última semana ela virou uma outra coisa e a gente vai tentando todos os dias, é uma coisa maluca. Eu me sinto patético, estúpido, ingênuo, ridículo fazendo aquilo, é muito moralizante. Mas teatro é isso, eu acredito nisso de verdade, mas ao mesmo tempo eu vou lá e falo: “Eu queria que a gente pudesse se comunicar”. Então tem a ver com isso mesmo, e acho que talvez essa peça seja um exacerbação disso, que tem mesmo essa vontade de comunicação, de contato, de falar, estou falando aqui e está chegando aí. Será?

Pollyanna Diniz (crítica e jornalista, coeditora do blog de teatro Satisfeita, Yolanda?)
E as pessoas reagem como? Por que eu vi numa sessão muito especial, numa que o Antunes [Filho, diretor teatral] estava. Porque as pessoas reagiram, de fato, no momento da lista.

Emanuel Aragão
É muito comum as pessoas reagirem no momento da lista e é por isso que eu tenho medo dela, porque fico muito fragilizado ali. Mas eu fui me acostumando, acho que fiz umas 70 vezes a peça, então já tenho uma certa sobrevida àquilo, mas já foi muito agressivo, às vezes é muito ruim. Já fui xingado. Aquele dia fui muito importante para a gente, a primeira fala foi: “É muito querer que você está colocando para a gente. Eu não consigo lidar com isso. Me deixa o meu querer aqui”. Aí o Cassiano [Sydow Quilici, professor e pesquisador da Unicamp e da PUC-SP], logo na sequência, falou que estava se sentindo oprimido por mim: “Você não está me dando espaço, você está preenchendo tudo”. E ele também tinha toda razão, eu estava sentindo a mesma coisa desde o início da peça, mas eu não conseguia parar. É muito difícil porque a conexão não está estabelecida e tinha o Antunes sentado lá, isso é um problema, mesmo. Não tem como ignorar isso, pelo menos eu não consigo. E não é nem que o Antunes seja o meu ídolo na vida, mas ele é o Antunes, fez tudo que ele fez. Ele tem 87 anos e está sentado ali, você tem que considerar isso, como se considera tudo, mas isso era um fato. E ele estava sentado no lugar que o Adriano senta geralmente, então ele teve que sentar lá atrás. E foi uma situação assim, deixa ele dirigir a peça. Mas foi muito bom para mim porque quando ele foi lá, falou, interrompeu para cumprimentar, eu fiquei muito emocionado com aquilo mesmo. Ele falou: “Gente, calma aí, deixa o moleque fazer o negócio dele. Para de coisa também. Isso é só uma peça, né? É só uma versão do Hamlet, tem trocentas. Deixa ele trabalhar. Tá tudo certo”.

Pollyanna Diniz
No momento da confusão em que um falava, tinha uma mulher do lado que queria muito falar e ele, sentado atrás, já estava bem impaciente. Levantou, pediu licença e disse: “Olha, eu sou o Antunes Filho, eu já fiz muito isso aí que você está fazendo. Está muito bom, mas eu queria sair. Mas eu não queria sair sem antes lhe cumprimentar”.

Emanuel Aragão
A minha versão é mais leve do que essa. Ele foi até lá com calma, devagar. “Você me dá licença, posso ir até o palco te cumprimentar?” Eu falei: “Claro, claro”. Já fica melhor assim. Ele veio. “Olha, eu faço isso há muito tempo, já vi muitos Hamlet”. Aí ele se deu conta de que talvez as pessoas não soubessem quem ele era. Ele virou e disse: “Sou Antunes Filho. Já vi muitos Hamlet e acho que Hamlet serve para isso mesmo, cada um faz com ele o que quiser. Ele serve para você fazer o que você tem que fazer e eu entendi o que você está fazendo. Já entendi. Tá muito bem, mas eu preciso ir embora. Tenho uma coisa marcada às 23h e eu preciso ir e eu não queria ir embora sem te cumprimentar. Eu te conheci, já te conheci, foi muito bom vir aqui te conhecer e eu queria que você me desse permissão de ir embora. Você me desculpa de eu sair assim”. E eu falei: “Claro, imagina”. E aí ele virou para as pessoas e disse: “Ele está muito bem. Deixa ele fazer”. E aí a coisa seguiu e a partir daí a peça funcionou para mim. O cara disse que eu estava bem, então posso me acalmar.

Logo depois desse momento da lista vem a chegada dos atores num segundo ato ali e que vai desenrolar para Hécuba. Comecei de novo, e como eu já fiz muito, a energia volta em mim de um jeito meio automático às vezes e as pessoas não estão na mesma coisa, então tem que ter cuidado com elas, porque pode parecer agressivo. Às vezes eu estou berrando ali e as pessoas estão tipo: “O que esse cara tem, para”. Porque às vezes não conectou o sentido com o sentido do Hamlet e é só um cara berrando no palco. É complexo porque eu tenho que falar: “Calma, tá tudo bem, respira”. Quando eu comecei a falar, não sabia que o Cassiano era o Cassiano Sydow Quilici, achei que fosse só um cara que estava irritado comigo, só depois soube que ele era ele. Falei: “Desculpa, mas a medida em que eu começo a falar eu acho que estou te incomodando de novo”. E ele falou: “Não, pode seguir. Está tudo bem”. Aí me acalmei, fui indo e a peça aconteceu com mais conexão nesse sentido, porque a conexão fica truncada mesmo, às vezes, no teatro é assim, mas nessa peça me parece muito radical. Já aconteceu de as pessoas falarem: “Eu não quero que você continue. Não precisa fazer a peça. Pra mim já deu”. Expliquei: “Agora tenho que fazer a peça, porque antes de chegar à narrativa em si tem um prólogo de construção do porquê de fazer aquilo que vai me conectando de várias maneiras e em vários níveis à história do meu pai até chegar na história em si do Hamlet”.

Ontem um cara falou: “Por que você está enrolando tanto?” Eu falei: “Você tá com pressa? Porque eu posso também ser essa pessoa rápida, sagaz e agressiva, o que é muito ruim para essa peça”. Eu parei e falei: “É o meu jeito de fazer, é assim que eu consigo fazer, senão não consigo fazer”. Segurei mais um tempo e disse: “Desculpa ter falado assim com você, não é isso, está tudo certo. Mas agora a sua ansiedade vai pautar a maneira como vou fazer. Só para você saber que isso acontece e vai se dar assim”. Então a conversa gera tudo isso; às vezes não falam nada. Por que eu não sei. Eu não sei o que inaugura, às vezes eu acho que é quando uma primeira pessoa fala, quando essa substância está dada, alguém quebra e aí vai. Mas a maneira como essa quebra é feita também vai pautar as outras falas todas. Eu não sou uma pessoas mística, sou bastante cético, mas eu acho que tem níveis de coisas ali que eu não consigo acompanhar. Quase sempre, se a gente discute uma coisa antes, esse significado vai aparecer na apresentação, na fala das pessoas. Depois de um ano e meio fazendo, a gente falou do Descartes, “Penso, logo existo”, e aí a mulher sentou na frente e disse que Hamlet tinha uma conexão com Descartes. E a gente tinha acabado de falar no camarim. Nunca ninguém tinha falado e é óbvio que tem conexão. Mas a gente nunca tinha pensado, colocado em palavra e aí quando você coloca em palavra ela vai. Tem isso, da materialização das coisas, que vai acontecendo nesse trabalho.

Valmir Santos
Quando você fala da rejeição ao ensaio, fiquei pensando se o procedimento que vocês adotaram em Nada e mais agora, quando você vai para essa experiência, fiquei pensando se você não faz um ensaio enquanto gênero literário, na medida em que a primeira pessoa de alguma forma está atravessada ali e se essa falta de teatralidade explícita nos faz com que todos nos enredamos para uma experiência ensaística, de erro e tentativa, exposição.

E pensar como os Irmãos Guimarães fizeram e cumpriram essa apropriação autoral da obra de Beckett sem brandir uma coisa assim: ‘Somos os donos do Beckett no Brasil’ (Valmir Santos)

Emanuel Aragão
Eu tenho essa espécie de fé, de que quando eu estou conseguindo elaborar ali a coisa, é mais viável que as pessoas estejam elaborando comigo, ensaio nesse sentido. Não sei se isso é verdade, nem sei se é verdade, mas eu tendo a achar que tem a ver com isso. Em Nada, de 2012, tinha ensaio, cada processo é uma coisa. Mas para mim é muito angustiante a ideia de ir para a cena e já saber o que vou falar e aí começo a ouvir minha voz sendo colocada e falando a primeira frase da peça. “Um homem acorda sozinho na sua cama, abre os olhos, olha para o teto em cima da cama e ele decide que hoje é o último dia da vida dele”. Eu sei esse texto, mas a maneira como eu falo ele, ou como eu tento falar, a sequência das coisas, as palavras, eu faço um esforço enorme para que isso seja realmente uma inauguração e nesse sentido que possa ser uma inauguração para as pessoas também. E eu tenho uma espécie de fé nesse negócio, não sei se uma fé mística ou uma fé meio semiótica talvez, tem uma coisa que vai se conectando.

Para mim é muito angustiante quando eu não entendo mais porque estou indo lá fazer, só fazer uma coisa. Precisa ter um sentido sendo elaborado de novo, senão é melhor parar a peça e fazer uma outra peça quando o sentido não está mais sendo elaborado, só estou apresentando aqueles saberes, aqueles conhecimentos, aquelas experiências para as pessoas. Isso acontece comigo fazendo trabalhos e aí eles perdem o sentido pra mim. Eu me sinto como que alguém colocando uma coisa. Talvez eu seja muito egoísta nesse sentido, mas isso é a minha experiência, o meu jeito de lidar com isso e isso gera o Hamlet, que é essa peça desse jeito, que não tem texto, que lida com esse tensionamento o tempo todo das pessoas que também me colocam numa situação de não saber como vai ser. Todos os dias eu vou fazer a peça achando que ela vai dar errado, mesmo. Penso isso todos os dias, não tem segurança, mas só assim faz sentido para mim. Se eu tiver segurança de que eu consigo fazer aquilo, não preciso mais fazer, de verdade mesmo.

Ontem começou a peça e foi muito agressivo logo de cara, eu estava falando sobre as tragédias de vingança de hoje em dia e um cara falou: “A Nina, da [telenovela] Avenida Brasil, é muito mais legal que o Hamlet”. Ferrou, é hoje que vai dar errado essa porcaria. Se a pessoa pode achar que a Nina é mais legal o Hamlet eu estou perdido, se isso pautar a lógica do espetáculo, eu estou ferrado. Aí você tem que se acalmar muito e vai elaborando a ideia de errado e certo mesmo, mas não tem como dar errado, nada tem como dar errado na vida, só se a gente morrer, mas até lá alguma experiência vai ser, por mais estranha que ela seja.

Wanderley Costa Lima

Público presente na análise da criação do Coletivo Irmãos Guimarães

Beth Néspoli
É interessante essa heterogeneidade da plateia que você percebe ao longo da temporada. Num determinado momento da cena você comenta sobre aqueles meninos cantores [que estariam atraindo público ao teatro e concorrendo com Shakespeare à época] e eu só fui sobre ler isso depois de ver a seu solo, e soube que realmente existia o sucesso dos meninos, aquela disputa. Daí, fico pensando: todo o conhecimento que você coletou e trouxe para a cena… Pode até não ter ensaios, mas têm blocos no roteiro, você sabe para onde você vai; assim, em algum momento, esse conhecimento você pensou em segurá-lo, em fazer menos? A gente tem sempre uma fantasia de que ao fazer o Hamlet na Inglaterra, aquelas criancinhas desde pequenininhas já estudaram tudo de Hamlet. Mas aqui, quando você começa a falar, a gente percebe, e falo por mim, que a nossa ignorância é muito maior do que pensávamos e algumas das intervenções que você narra, tão rasteiras, confirmam isso. Ao mesmo tempo, como você mesmo diz, pode ter algum especialista ali, alguém que sabe muito. Por exemplo, o Welington Andrade (editor e crítico da revista Cult), certamente leu muito mais do que eu sobre o Hamlet, mas não teria o impulso de fazer uma interferência arrogante. O José Sanchis Sinisterra [dramaturgo e diretor espanhol], diz que acontece muito de ter um artista do século 21 falando para uma plateia do século 18 ou 19. E vice-versa também. Mas essa diferença cultural se torna uma questão importante e vem à tona no momento em que vocês definiram que iam trabalhar com esse modo de adesão, porque é muito autoritário o cara dizer: “Não quero mais você fazendo isso”. Ele é um indivíduo, mas está numa situação que é coletiva.

Emanuel Aragão
Eu fui aprendendo o seguinte: quando eu comecei a fazer a peça, eu era muito mais ansioso em relação a isso. Eu achava que tinha que conseguir dominar aquele organismo e que eu tinha que conseguir pautar aquilo, reconectar para conseguir seguir o trabalho. E sempre achava que tinha que usar aquilo que tinha vindo como material para conseguir seguir. E eu ficava fazendo conexões, mas depois de um tempo vi que não adianta nada fazer disso. Eu tenho que trabalhar o que eu tenho que fazer, se aquilo me inaugura coisas ou não, inaugura alguma atmosfera e tudo bem, eu não preciso necessariamente usar aquilo para seguir. Às vezes, as pessoas falam e eu começo a entender que o organismo se autorregula também, as pessoas falam umas com as outras, então várias vezes eu sento e deixo a coisa ir. E uma hora eu acho que aquilo vai voltar para mim e tenho esperança de que isso vai acontecer, e em geral acontece.

Por exemplo, na sexta-feira agora, teve um senhor que quando eu voltei para o 5º ato, do Hamlet em alto-mar, ele disse que tinha criado coragem para falar. Ele começou a falar sobre o que era a peça, mas no passado, como se a peça já tivesse acabado. “Isso que você fez aí é muito bonito, muito inteligente, você foi muito corajoso”. E eu falava: “Mas não acabou ainda”. E ele continuou falando, foi indo, foi indo uns cinco minutos e as pessoas se debatendo, porque as pessoas também não aguentam. Eu posso falar por duas horas, mas se qualquer outra pessoa falar é um problemão, não interessa se é inteligente ou se não é, nunca é o que você quer que seja, ou é mais inteligente ou é menos inteligente do que espera. A gente só aceita o sinal que a gente aceita, só consegue ouvir exatamente o que quer ouvir porque é uma medida ali, se for um pouco abaixo é um estúpido, se for acima é um pernóstico. Aí esse cara continuou a falar e entrou em Camões: “Porque amor é uma coisa…” E eu, ali, pensando como continuar a peça. Ele entrou na Clarice Lispector. Aí alguém gritou: “Chega!”, de um jeito muito autoritário com relação a ele. E o Guilherme Weber [ator e diretor] disse: “Deixe ele falar”. E calou a pessoa que calava ele. Então, o Gui estava calando o calador, que estava calando o sujeito, e eu não calo ninguém. Eu fico ali, a gente tem que tentar. Se regulou daquele jeito, com índice de fascismo maior ou menor, de moralidade menor ou maior, de absurdos, discursos, e aí o cara terminou: “Só isso que eu queria falar, pode continuar. Muito obrigado”. E eu voltei para o negócio: “Hamlet estava em alto-mar”.

E eu, uma coisa que eu fui aprendendo mesmo, de verdade, foi a ouvir as pessoas de um jeito mais razoável um pouco. Lá, quando estou lá. Na vida, não tanto. Mas aprendi que cada um tem mesmo a imagem que tem, a memória que tem, a vida que tem, isso é óbvio, mas lá você é obrigado a respeitar isso porque você está lá para isso. Então, o que pra várias pessoas é estúpido, idiota, que parece não ter tudo a ver com a peça.

A Ofélia é uma questão. “Seu machista, misógino”. Mas eu entendo porque está localizado em mim, então é justo também, entendo. Eu acho chato às vezes. Eu tento fazer a mesma peça, sinto que não facilito nada, não retiro nada, vou falar o que acho que devo falar para conseguir elaborar o que eu preciso elaborar. A peça é generosa e egoísta ao mesmo tempo. Se eu sentir que fiz uma coisa meio pela metade do significado das coisas, que estou facilitando, inclusive já fiz para criança de dez anos e fiz a mesma coisa e elas ficaram lá tentando lidar com aquilo. Mas quando tem o [Leandro] Karnal [historiador brasileiro] sentado na primeira fila, vou ter que lidar com esse sujeito olhando para a minha cara, mas ele te conecta a uma outra cadeia de saber, uma outra ala de redes está aberta. Cada pessoa que está ali você sabe como tem que lidar. E a quantidade de noções corpóreas que eu fui abrindo naquele dia, sem querer eu fui lidando com ideias de corpo e tal, mas por essa imagem do discurso da semiótica existindo, isso passa a pautar coisas, não é que mude o espetáculo, mas isso está lá na minha cabeça. Então quando a gente vai entendendo isso é muito rico porque o “ser ou não ser” é o exemplo capital disso na vida, cada um vai atribuir àquilo ali o que puder atribuir, o que quiser atribuir e assim que é. E, ao mesmo tempo, não é um exercício de relativismos, que tudo pode ser, não é isso, estou apresentando a minha experiência naquele negócio e aí se você puder acompanhar isso é o que eu posso fazer. Eu não vou aqui discutir o que pode ser o “ser ou não ser”. E quando você sabe que pode falar, é viável isso aqui, muda completamente a coisa. Tem gente que fala: “Eu passei a peça inteira querendo falar, mas não falei”. Mas tudo bem, eu também acho que eu não falaria vendo a peça. Mas ao mesmo tempo estou falando.

Eu nunca consigo fazer nenhum trabalho que eu não consiga ver as pessoas chegando. Eu preciso ver. Até no Beckett quando eu fiz, eu dei um jeito, que é muito mais difícil pelo rigor formal absurdo (Emanuel Aragão)

Valmir Santos
Queria trazer um ponto, pensar um pouco na encenação, o trabalho de instalação dessa experiência pela memória e trajetória do Coletivo Irmãos Guimarães, a lida deles com Beckett mais da metade desses 27 anos, talvez uma fixação formalista da cena. Tem muitos trabalhos que eu não vi mesmo, posso estar falando besteira, mas é uma sensação de encontrar uma ideia de esvaziamento explícito e ficar pensando onde está a assinatura de alguns trabalhos anteriores, eu no meu processo, espectador deles, e ver essa coragem de esvaziamento, subtração da cena. E queria aproveitar se você pode fazer uma correlação com a experiência do Nada, a partir do livro do Manoel de Barros, e também a aproximação a Beckett por essa impossibilidade de expressar e ao mesmo tempo ter que se expressar de alguma forma. Uma das impressões diante do trabalho: Hamlet nos remete a uma certa monumentalidade da cena. Por exemplo, lembro de ver um trabalho de um lituano, o Eimuntas Nekrosius, que passou pelo Porto Alegre em Cena, que era um Hamlet em que a base do espaço cênico era um bloco de gelo inclinado. Então, essa monumentalidade vinha colada com a informação de que o protagonista era um roqueiro, era um cantor punk lituano.

Ali no seu solo não tem isso, a gente embarca na experiência, se queixa de algumas coisas, se irrita e vai pra casa com uma sensação de integralidade do projeto. O Hamlet estava ali, está posto. E ao mesmo tempo tem esse esvaziamento. Mas na experiência da temporada em São Paulo do Nada, em 2015, teve um ciclo de debates e a temporada casou com peças e performances, e você participou delas inclusive. Eu queria ler aqui os títulos das conferências dos pesquisadores convidados a falar à época. Essa é minha questão: como essa imaterialidade, essa forma meio de desmaterialização da cena, parece estar no Hamlet também.

“A materialidade do ausente” era um ciclo de palestra que tinha títulos assim: “Quadrangulares”, por uma professora, gestora e curadora Marília Palitis; “Matéria e anti-matéria, a invisibilidade ativa na cena beckttiana”, com o professor, ensaísta e crítico Luiz Fernando Ramos, da USP; “Do pobre mente ao palco e de volta: as pontes de palavras no último Beckett”, com o professor, pesquisador, crítico literário Fábio de Souza Andrade, da USP, tradutor e especialista em Beckett; e por fim uma palestra do professor, pesquisador e ensaísta Cassiano Sydow Quilici, da Unicamp, “Vazios e repetições”.

E os Irmãos Guimarães têm essa grafia, já vi trabalhos deles de Beckett com Vera Holtz, por exemplo, e a capacidade de encontros, de evocação, porque é muito diferente do olhar e apropriação da obra de Beckett em alguns criadores brasileiros. A gente pode lembrar de um nome mais eminente, o Gerald Thomas. E pensar como os Irmãos Guimarães fizeram e cumpriram essa apropriação autoral da obra de Beckett sem brandir uma coisa assim: “Somos os donos do Beckett no Brasil”. Se você pode compartilhar isso, essa dimensão da arte contemporânea no trabalho deles, essa ideia de instalação. Como é a sua lida com essa inquietação desses dois irmãos, quem são, que tipo de excitação eles trazem para você?

Emanuel Aragão
Eu acho que eles têm uma conexão muito forte com as artes visuais e isso faz as convenções e todas as regras teatrais serem um pouco deslizadas. Há uma desconfiança com o teatro nesse sentido, mas ao mesmo tempo um amor enorme por isso, então nesse tensionamento essas coisas todas acontecem. Por exemplo, o Nada era uma peça que tinha um texto totalmente improvisado, aberto, mas tinha uma instalação enorme, aquele cenário do Nada era uma coisa enlouquecedora, era monumental também nesse sentido. No Hamlet, por exemplo, a gente tem os tijolos, mas a gente fez por um tempo sem tijolos, 18 apresentações só com uma cadeira. Tinha um choque que se organizava por uma visualidade muito forte e talvez – o Adriano ficaria muito bravo comigo aqui – por uma desconfiança do trabalho do ator, de que na situação de ator você é obrigado a representar os afetos através dos cânones, das convenções e das representações, isso acaba acontecendo de um jeito ou de outro, não sempre, mas isso é muito comum. Eles têm essa coisa de dar matéria e concretude para a operação do ator. Afogar os atores, amarrar os atores, pendurar os atores, coisas que estão conectadas ao Beckett também. O Beckett cria dispositivos de cena para operar, conectar o estado do performer ao estado da personagem. O Ato sem palavras… Aquilo é concreto mesmo, talvez numa tentativa de diminuir o campo alegórico do teatro e trazer para o material, para a materialidade dele mesmo. Então eles estão sempre conectados ao material, à ideia de matéria nesse campo. No Hamlet, desde o início, o Adriano queria que tivesse um acesso físico para mim, em relação aos afetos do Hamlet e eu não quis, queria fazer só com a construção de ideias. Essa foi uma das brigas que virou meses, a gente quase desistiu, voltou. E aí tinha o tijolo, a quebra dos tijolos como questão, e entrou depois. Tem a ideia do acesso material aos afetos, aos estados de performance talvez.

Espectadora (não identificada)
Você sempre fica no palco no cantinho? Porque eu e um amigo ficamos na dúvida se já era do espetáculo.

Emanuel Aragão
Eu nunca consigo fazer nenhum trabalho que eu não consiga ver as pessoas chegando. Eu preciso ver. Até no Beckett quando eu fiz, eu dei um jeito, que é muito mais difícil pelo rigor formal absurdo. Fiz o Ato sem palavras 2 e O improviso de Ohio. Eu preciso ver a cara das pessoas desde o início. Se eu entrar e elas já estiverem lá eu acho que já está errado. Porque a ideia de espetáculo e do “agora você tem que lidar com isso” é aterradora para mim. Então quando eu vejo as pessoas entrando, abrindo o programa, olhando o celular, eu falo: “A vida continua acontecendo. Vai dar certo. Tá tudo bem”. Depois não, me irrito com papel de bala.

Wanderley Costa Lima (advogado e professor)
Eu não vi a peça. Mas uma coisa interessante que você colocou foram as imagens. A mim parece que você se aproxima muito de uma linguagem musical sinfônica, que você é obrigado a trabalhar com as imagens daquilo que o compositor quis criar para a sinfonia e, ao mesmo tempo, criar um novo mundo. Na verdade, você tem materialidade, você tem uma viagem que ele está te proporcionando e que cada um vai imaginar o desenvolvimento daquela sinfonia, ainda que ela tenha todo aquele rigor que a gente sabe. E me parece que você também trabalha nessa direção a partir do momento em que você assume que não vai necessitar daquele material, porque você vai trabalhar com a imagem que você quer que os outros projetem. A música trabalha muito com isso, porque a música se materializa a cada execução, mas de uma forma diferente, e você vai nessa direção.

Outra coisa também é que você usa muito a palavra conexão. Você permeou o seu discurso até agora de conexão, conectado. E a rede, a internet veio de uma conexão básica e aí eu comecei a trabalhar isso com você: as teias de aranha. A aranha nunca trabalha no mesmo dia com a mesma teia. Ela tem que refazer a teia. E você percebe que você usa isso quando fala da “minha conexão”? Você está conectado com todo mundo, mas se um pontinho muda vai alterar também você. Uma aranha dá atenção a qualquer alteração na rede, porque ela quer saber o que é. E quando começa a arrebentar a teia, você fica esperando para ver o que vai acontecer, se você vai precisar fazer uma nova teia na hora ou se você pode deixar para trabalhar outra teia, porque aquela talvez já esteja comprometida. No seu próximo movimento você vai ter de refazer a teia e isso é o religar da Internet. Na Internet é tudo rápido, você desliga e liga. E você, se precisar, desliga e liga, e vai adiante porque está funcionando. Então, se está funcionando em teias tridimensionais ou demais dimensões, você está observando isso. E é tão maravilhoso isso, essa dimensão que você me deu e que eu vi em você. Eu fiquei pensando o seguinte: “Por que só Hamlet?”. Porque dentro do universo de Shakespeare, o meu preferido é Macbeth.

Emanuel Aragão
Incrível você ter falado tudo isso sem ver a peça porque acho até melhor do que ter visto a peça. Que bom que você não viu a peça. O que a gente constrói como significado, imagens do Hamlet o tempo todo tem essa ideia do material e do imaterial, então a gente sugere índices de coisas, às vezes a gente concretiza mesmo as imagens que a gente está produzindo, a gente tenta quase nunca falar, valorar os afetos. Tem uma hora que eu falo: “Ele odeia tanto o Cláudio”, mas o odeio é um desvio na coisa, a gente tenta quase sem falar do material, do corpo do Cláudio, está conectado à origem dele. Tudo é material e quanto mais a gente consegue fazer sem valoração de afeto, para que o afeto seja uma consequência à reprodução dessas imagens, que são imateriais em princípio, mas encontram o ouvido como música, melhor para gente. Para não nomear o afeto, para construir o afeto cada um construir o afeto que construiu.

Celso Frateschi
Não vi o espetáculo. Mas uma questão me incomodou: o fato de você dizer que não gosta de ensaiar. Quando você colocou a coisa do estímulo, da conexão com o espectador, você colocou quase que o ensaio ou o texto pré-concebido ou gesto de alguma maneira pré-elaborado como um limitador dessa conexão. Porque às vezes o próprio afeto demonstrado é motivo de geração de um outro afeto de quem está assistindo. É muita prepotência achar que nós vamos determinar qual é a sensação da plateia. Até tem esse tipo de autoritarismo na base, mas eles são falsos, nem mesmo a novela das nove consegue fazer isso porque o cara que está assistindo tem liberdade para fazer com aquilo o que ele bem entender. E, às vezes, aquela vontade de falar, ela é inibidora da escuta. Você não acha o status do espectador também criativo? Ele não precisa dizer nada, ele está criando independente daquele momento. Eu quero ter a liberdade de criação de chegar, ver um espetáculo e estar criando o tempo inteiro a partir dos estímulos do espetáculo, seja em relação ao ator ou ao espetáculo.

Emanuel Aragão
Sim, eu acho. E isso não só em relação ao teatro. São algumas coisas para eu tentar te responder: uma é que, sim, você pode estar só ouvindo o negócio sem estar preocupado se pode falar ou não. E ao mesmo tempo você está abrindo coisas, imaginando coisas, lembrando de coisas, isso é uma obra e nesse sentido eu acho que toda e qualquer obra é relacional, ela está estabelecendo coisas, conexões. Eu trabalhei Grotowski [Jerzy Grotowski, 1933-1999, diretor de teatro experimental de origem polonesa] com [a diretora] Celina Sodré, era aluno dela e virei assistente depois, e isso continuou em mim em algum grau, ações físicas, mas me angustia muito que eu saiba para onde eu vou e isso é da minha estrutura neurótica. Dentro da minha ideia tosca, ingênua e superficial, se eu sei qual é a minha estrutura de ações, eu sei o que vou fazer, você pode continuar discordando, mas essa é minha experiência. Se eu sei cada palavra que eu vou dizer, claro que a maneira como vou falar as palavras pode variar o universo inteiro, mas se eu sei qual a próxima palavra que vou dizer – eu tento saber, mas não sei – eu me sinto preso, e isso é da minha cabeça, da minha neurose, e me sentir falso, e estranho e olhado. Eu tenho que me sentir elaborando o negócio naquela hora.

Então, a essa altura do Hamlet, ele é todo marcado já, é claro que a gente ensaiou com 400 pessoas e continua ensaiando. Na verdade é isso, o ensaio se dá todos os dias. Eu sei quando vou para a cadeira, sei quando vou levantar, é uma estrutura marcadíssima. Eu sou um sujeito que lida com a palavra, mais do que como ator, roteirista, dramaturgo. Então, a ideia de escolher as palavras, de elaborar aquele sentido naquela hora para mim faz muita diferença, de achar que estou conectando ali aquele sentido naquele sentido e que aquilo serve. Isso para mim é muito mais do que pegar um texto que já existe, o que para mim é difícil, a ideia de apropriação, para mim, é complexa. Mas não estou dizendo que isso seja o que é, cada um elabora como quiser. A gente não escolhe o que acontece na cabeça das pessoas, de jeito nenhum. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que a gente pode abrir mais coisas ou fechar mais coisas para trabalhar num sentido ou em outro sentido, e digo isso como alguém que escreve série de televisão, por exemplo, e coisas que são outro tipo de escrita, que são feitas para fechar sentidos, e não para abrir.

E o que foi interessante para mim é que o espetáculo não é didático. É uma leitura, e essa leitura permite uma abertura. E na verdade é uma abertura para leituras, trabalhando nesse limiar entre a criação de conhecimento e o performer, que sempre está ali
(Carolin Overhoff Ferreira)

Sobre os dispositivos da fala e porque a gente quer que as pessoas possam falar, esse tensionamento tem a ver com Hamlet, a separação dele com esse corpo coletivo, o individualismo dele nesse sentido, a ameaça que a realidade externa gera para ele e a plateia tem a ver com isso. Essa ameaça para mim na relação pode ser terrível, então eles poderem falar é uma coisa que está dada e que para mim tem a ver com Hamlet, me conecta ao isolamento do Hamlet de algum jeito, diferente de performar para as pessoas livremente. Elas têm o poder de retornar coisas para mim e várias vezes isso acontece concretamente na peça.

Na lista, a gente queria construir algum paralelo entre o momento em que o Hamlet começa a performar a loucura e através dela poder falar o que você não falaria, passa a falar coisas que ele não diria. E quanto mais ele fala, mais ele enlouqueceu. A lista são coisas que eu não diria para a plateia na minha situação de performer. É uma lista que foi escrita em 2015, eu já abandonei, já escrevi diariamente uma lista, já fiz de outros jeitos. Hoje eu tento ler a lista que eu escrevi e explicar o que eu queria dizer, mas várias vezes dá muito errado. Mas não tem “a lista” em si, tem a lista e a pessoa.

Espectador (não identificado)
Em Santos, não tinha o choro, mas eu senti em você vários momentos do choro. E vendo de novo ontem, eu recebi de uma outra forma o choro. E eu fico me perguntando: esse choro foi um choro construído no sentido de qual o limite entre a emoção que estou ali naquele momento, porque de repente você podia estar chorando porque aconteceu alguma coisa com você e no momento em que você se coloca como performer é válido você colocar ali. Mas, a partir do momento em que você chora, eu recebo isso como uma outra forma.

Emanuel Aragão

Não tem nenhuma escolha sobre o choro. Nenhum momento em que a gente fale chora ou não chora, não tem isso. Às vezes eu choro muito; na estreia eu chorei muito, no Mirada eu não chorei. Aqui em São Paulo foi uma temporada bem chorona. E é engraçado porque você só tem certeza de que está acontecendo quando realmente chora. É muito doido isso, porque com tanta coisa para sentir se não tiver choro não é verdade, parece que o choro é um atestado de que está acontecendo mesmo. O que está acontecendo é um fenômeno que se dá, assim como uma fala, assim como pensar uma coisa, e às vezes eu preciso lutar para que ele não se dê. É um fenômeno que tem a ver com a coisa que se estabelece, como quando vejo alguém muito conectado e isso me emociona de verdade, quando vejo que tem um troço acontecendo. Acho incrível esse grau de fragilidade que isso pode gerar. E aí a minha resposta física é chorar. São Paulo é uma cidade séria, as pessoas trabalham com teatro mesmo, e no Rio não. Eu moro lá, adoro o Rio, mas o trabalho de teatro, de pesquisa continuada é uma coisa que não existe, comparando com São Paulo é uma piada. Então, você vem fazer uma peça aqui e você sente toda essa carga de volta, as pessoas te olhando a partir de muitos paradigmas diferentes dos seus e que você tem que respeitar porque são construções, então a figura do ator aparece com muita força. “Você como ator”. No Rio eu nem me considerava uma ator de verdade. A peça foi indicada ao Prêmio Shell como melhor cenário, aí o Adriano me ligou rindo: “Olha isso, cara!”. Se não é uma peça de ator, é o quê então? Vai indicar os tijolos? E é isso, melhor cenário, porque para o Rio de Janeiro as convenções têm de estar dadas num lugar mais próximo da novela das nove, mesmo!

Valmir Santos
Como o público do Rio embarcava?

Emanuel Aragão
Lá no Rio foi mais difícil um pouco. A gente pode dizer – com todo o risco que pode ter essa fala – uma certa maturidade aqui em São Paulo, em todos os sentidos: de realização, de relação, e o público do Sesc é muito legal por isso, das senhoras que estão ali, que moram ali [a temporada foi no Sesc Ipiranga, no bairro de mesmo nome]. E, ao mesmo tempo, tem a intelectualidade da USP e a galera do Ipiranga juntas, e isso é muito legal. Eu várias vezes posso muito ir para o show, então eu fico muito me controlando porque se deixar eu faço stand-up. Se eu abrir a peça como performance de comédia, e várias vezes acontece quase isso, é muito arriscado. Mas eu não poderia fazer uma análise do público do Rio, até porque o CCBB conecta plateias diferentes, tem viabilidade de acesso, não é a zona sul.

Beth Néspoli
Fazendo uma defesa, o que eu acho do Rio, pelo menos na época em que eu estava lá, é que tinha pesquisa continuada no trabalho, a do diretor Jefferson Miranda [da Cia. Teatro Autônomo], por exemplo. O que acho que acontecia à época em que eu estava no Estadão e o Valmir na Folha [ambos como repórteres de área], é que aqui em São Paulo era possível colocar esse teatro de pesquisa continuada em destaque, colocar muitas vezes na primeira página, no mainstream, em detrimento da indústria cultural. Por exemplo, lembro que quando estreou [a reprodução brasileira do musical da Broadway] Les Misérables [2001], o espetáculo ocupou um espaço pequeno, não teve matéria na primeira página do Caderno 2. Quando eu estava lá, entre 1995-2010, e trabalhava em parceria com o editor Evaldo Mocarzel, ele tinha um projeto de jornalismo cultural para o Caderno 2. Então, acho que tem essa diferença. No Rio, as companhias fazem pesquisa continuada, mas são tratadas como se fosse um teatro alternativo.

Carolin  Overhoff Ferreira (pesquisadora, crítica e professora de teatro e de cinema)
Queria parabenizar, eu adorei. Eu vi no sábado, tenho visto outras peças recentemente. E o que foi interessante para mim é que o espetáculo não é didático. É uma leitura, e essa leitura permite uma abertura. E na verdade é uma abertura para leituras, trabalhando nesse limiar entre a criação de conhecimento e o performer, que sempre está ali. E como agora eu só dou aula, acho interessante, mas para mim que também já vi muitos Hamlet é uma coisa muito nova. Eu não concordo com o Antunes, que obviamente já não tem mais paciência, mas isso tem a ver com ele, não com o espetáculo, muito ao contrário. Para mim, vocês abriram um campo muito novo. Eu vi na MIT [MITsp, Mostra Internacional de Teatro] o libanês Mroué [o dramaturgo e ator Rabih Mroué] e achei a mesma coisa: ele vai com um computador e faz a fala dele. E qual é a diferença? É a sensibilidade do artista que vai lá e faz a leitura. Eu acho um caminho lindo porque para mim é uma coisa nova, acho que a gente ainda não tem uma dramaturgia em cena. É uma produção de conhecimento, num outro sentido. É sensível porque tem o performer, todas essa possibilidades de externar ou não.

Emanuel Aragão
Eu vim da filosofia, minha formação antes do teatro. Minha família é uma família de intelectuais, minha mãe é psicanalista, meu pai é antropólogo, então a casa era um lugar de produzir problemas nesse sentido. Então, para mim, a experiência artística passa por essa produção de pensamento sempre, não se diferencia a sensibilidade, o afeto e a afetação, do pensamento e da noção de ensaio. E acho que para o Adriano também não. Então, o Hamlet tem muito a ver com isso, a gente pode falar disso, desse pensamento aqui, mergulhar nessa história, pode criar uma imagem, pode produzir todas essas coisas ao mesmo tempo e espaço da arte pode ser isso também. Para mim, pode, funciona sim, totalmente. Quando eu digo que a gente fica se preparando para fazer a peça horas antes, a gente fica lendo coisas, pensando coisas, falando coisas, sobre os sentidos da existência, do estar lá; ou sobre filosofia diretamente ou sobre literatura ou sobre um ensaio de Hamlet que a gente achou e tal. E isso vai para a peça, diretamente, de um jeito ou de outro. Então é muito legal porque eu posso pensar e sentir ao mesmo tempo e entender que não tem diferença entre essas duas coisas no final das contas.

O termo “dramaturgia em cena” a gente chamou pela primeira vez aqui em São Paulo, na ficha técnica, faz uns dois meses. A ideia do ator e de tudo isso a gente já entendeu que em São Paulo é outra coisa, que se você vem para cá vai lidar com outro olhar, tanto é que a gente está aqui, por exemplo. No Rio isso não aconteceria jamais, sentar com a crítica [Nota dos editores: pelo menos duas publicações contrariam essa percepção, em alguma media, no modo de interagir com os artistas, a revista impressa Folhetim e a revista eletrônica Questão de Crítica]. A gente começou a pensar: o que é que você faz, eu e Adriano? A gente está trabalhando dramaturgia in loco, em presença, e elegendo, fazendo as escolhas de como seguir, de como continuar e tudo isso é também um pouco falso no que se refere à ficha técnica, mas na verdade não tem diferença nessa peça. No final das contas, nesse trabalho, o Adriano também faz dramaturgia, por mais que ele não esteja lá eu estou discutindo as escolhas com ele o tempo todo. E, imaterialmente, eu estou pensando o que ele está pensando, se eu vou fazer essa abertura de sentidos ou não, se eu vou explicar mais a realização ou não. Assim como a direção, chamar de direção dos Irmãos Guimarães também é um pouco falso porque é tudo escolhido em bloco de dialética. A gente acaba chamando de cenário porque precisa chamar de coisas, mas é um bloco, é uma obra, ela está lá e a gente vai operando sobre todas aquelas coisas. A gente tenta fazer assim. Eu nunca vou dizer: “Não, é essa palavra porque sou dramaturgo da peça!” . Não tem isso, é uma discussão, ali é uma etapa da dialética acontecendo: tem o antes ali, tem o depois e tem de novo. Então, a gente fala o “em cena” porque estamos vendo em cena, mas também acho que não há diferença entre dramaturgia e atuação nesse sentido. Para construir dramaturgia você precisa atuar, seja no seu computador ou seja ali. Então estou construindo dramaturgia ali e para escrever um personagem para o que quer que seja eu estou atuando aquilo, imaterialmente, talvez não no palco, talvez não na frente de alguém, mas eu estou atuando aquilo. Então, para mim, é nesse sentido que essas coisas estão juntas.

Leia as críticas:

.:. Dois sujeitos em busca de autonomia, por Beth Néspoli, neste Teatrojornal

.:. Shakespeare desconstruído e trazido a questões atuais, por Maria Eugênia de Menezes, em O Estado de S.Paulo

.:. Hamlet, sem aura e sem coroa, por Welington Andrade, no blog Cena Contemporânea, no site da revista Cult

.:. Leia a íntegra de outras edições do Encontro com o Espectador, desde junho de 2016

Equipe de criação:

Direção: Adriano Guimarães e Fernando Guimarães

Dramaturgia em cena: Emanuel Aragão

Colaboração na direção e figurino: Liliane Rovaris

Iluminação: Dalton Camargos e Sarah Salgado

Cenografia: Adriano Guimarães, Fernando Guimarães e Ismael Monticelli

Projeto gráfico, site e fotografia: Ismael Monticelli

Administração: Verônica Prates – Quintal Produções

Gestão de projetos: Maitê Medeiros – Quintal Produções

Direção técnica: Josenildo de Sousa

Assistência geral: Iuri Wander

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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