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Crítica

‘Árvores abatidas’ e os sonhos que não morrem

12.3.2018  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

A falta é um motor potente. A fome nos faz seguir adiante. A saciedade, não. Quando satisfeitos queremos repouso, descanso. “Todo o sistema em equilíbrio perfeito permanece imóvel”, diz uma das personagens de Árvores abatidas, peça de Krystian Lupa apresentada nesta 5ª edição da MITsp. Outrora jovens e famintos, os homens e mulheres retratados nesse espetáculo são intelectuais amargurados, que trocaram suas ambições iniciais pelo conforto morno da maturidade. A obra dá corpo a um incômodo atemporal: o perigo dos vínculos entre arte e poder (assim como a dificuldade de levar a utopia adiante sem os meios financeiros necessários).

Apenas pela temática, o espetáculo polonês já mereceria lugar central na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo: As armadilhas e distorções dos mecanismos de financiamento à cultura no Brasil estão postos na mesa. Mas Árvores abatidas ultrapassa a acuidade de seu enredo. A encenação, o rigor de suas interpretações, a dramaturgia adaptada do romance de Thomas Bernard, o uso dos recursos audiovisuais: tudo concorre para fazer do título uma montagem excepcional. Tão apaixonante em sua aparência quanto complexa em suas infindáveis camadas de significados e alusões.

Cada passagem do espetáculo do polonês Krystian Lupa é desenhada como um espelho das projeções subconscientes das personagens. As imagens construídas não refletem apenas ações, mas pulsões e desejos impronunciáveis

O trabalho de Kristian Lupa, que desde os anos 1970 impressiona a Europa – como denotam os muitos prêmios e láureas recebidos por ele ao longo das últimas décadas – chega a São Paulo com certo atraso. Sem perder o tônus, porém. Lançada em 2014, Árvores abatidas está entre suas obras mais recentes e integra uma extensa pesquisa do diretor sobre a prosa de Thomas Bernhard. Um dos traços que distingue Lupa é justamente sua grande capacidade de levar ao palco textos que não foram originalmente escritos para o teatro. A seus olhos, é como se o romance, mais do que qualquer outro gênero literário, fosse uma forma privilegiada de captar as angústias e embates do humano.

Na obra em questão, a figura do narrador confunde-se com Bernhard – já que o livro tem tons abertamente autobiográficos – e funciona ainda como alter ego do diretor. Alguém que, tal qual o protagonista, não mais se reconhece no lugar em que vive nem na classe à qual pertence: a Polônia amarga um recrudescimento do conservadorismo, que impactou fortemente as artes. Há tentativas de banir da programação peças consideradas pornográficas ou inapropriadas. Por outro lado, aqueles que atravessaram os anos difíceis do comunismo russo, agora se curvam às amarras de um sistema dito democrático, mas com semelhantes formas de cerceamento. Vista sob esse prisma, Árvores abatidas carrega o espírito de um acerto de contas – pessoal e de geração.

Guto Muniz/Foco in Cena

O narrador de Piotr Skiba transita de Bernhard a Lupa

Escrito como um fluxo de consciência, o livro de Bernhard é repleto de repetições e interrupções. Há frases que retornam incessantemente e se caminha pelo tempo como se presente e passado estivessem amalgamados. Lupa opta por uma forma um pouco mais linear. Está interessado em criar blocos mais extensos para suas cenas, longas passagens em que nada acontece. Ele faz experimentos com o tempo e o ritmo, testa a resistência da plateia, maneja a matéria-prima do romance como se estivesse a compor uma peça de Tchekhov: a ausência de ação, o tédio, a ideia de que as coisas podem ser, ao mesmo tempo, angustiantes e engraçadas. Na trama, não existe um conflito claro, não há progressão, tudo se encadeia de maneira monótona como no cotidiano.

Sua abordagem cênica, contudo, não segue pelo caminho do realismo (gênero intimamente ligado ao teatro do autor de As três irmãs).

Para o encenador, o espetáculo não precisa apagar suas pegadas e lançar mão de jogos de ilusão. O primeiro ato se passa atrás de uma estrutura de vidro e metal (expediente que ele convoca em outras montagens de textos de Thomas Bernhard). Fica para o espectador a sensação de estar diante de uma janela para um outro mundo; talvez uma outra vida, um sonho. Riscada no chão e nas laterais, uma linha vermelha cumpre a função de moldura e delimita a zona de encenação. Os atores se dirigem à plateia reconhecendo a sua presença. O teatro deve ser teatral.

A onipresença do narrador, postado na lateral do palco, funciona ainda como uma citação a Tadeusz Kantor, com quem Lupa trabalhou na juventude. Tal qual um maestro, Kantor regia ao vivo suas montagens. Da mesma maneira, a movimentação dos intérpretes de Árvores também evoca Kantor: que fazia com que o elenco se movesse de maneira rígida, como em um desfile de mortos.

Guto Muniz/Foco in Cena

As atrizes Halina Rasiakówna e Marta Zięba: rigidez nos movimentos

O suicídio de uma amiga em comum, Joana, aproxima o protagonista, Thomas, de seu círculo de relações da juventude. De manhã, eles foram juntos ao funeral. À noite, reúnem-se para um jantar pretensamente artístico. No primeiro ato, o anfitrião e seus convidados acomodam-se em poltronas na sala de estar. Enquanto esperam por um famoso ator do teatro nacional, homenageado da noite, esses amigos se embriagam. Sentado em uma poltrona, Thomas resmunga assistindo ao encontro fútil. A sobreposição de falas (há situações em que três atores falam ao mesmo tempo) demonstra claramente a dificuldade de troca.

Cada um ali ocupa um papel determinado. O compositor amargurado e bêbado a dizer verdades inconvenientes, as escritoras que pouco escrevem, mas mantêm boas relações com dirigentes culturais, o artista surrealista, os jovens que se calam, mas compartilham secretamente a percepção do que se passa: “Todas as biografias já estão escritas por aqui. Todos os lugares já estão ocupados”, diz um deles.

O elemento dissonante é o companheiro de Joana, desconfortável nessa travessia sem saltos entre um enterro e uma festa. Thomas se apieda dele; sabe, contudo, que uma identificação não é possível. O tempo já o deixou cínico demais, parecido demais com aqueles a quem despreza.

Um exame do repertório de Lupa deixa entrever quão recorrentes são os questionamentos sobre o lugar do artista e a potência da arte. Tomemos o exemplo de Os visionários (1988), sua versão para o drama de Robert Musil. Ali também estão colocados os paradoxos do homem de imaginação: inspirado a criar, mas domesticado pela realidade. Notável é como o assunto retorna sem se apequenar. Em Árvores, este ser apaixonado que não sabe o que fazer de suas paixões será dissecado em sua dimensão política. Mas nunca em prejuízo de seus ecos psíquicos e metafísicos.

Mesmo tolos, os personagens conservam algo de insondável. Todos se revelam cientes do ridículo. E, em igual medida, do perigo que seria simplesmente abandonar esse lugar de frágil segurança. Como entendê-los? As intervenções em vídeo servem para suspender a ação por alguns momentos e embaralhar ainda mais as cartas. No filme que abre a montagem, Joana parece ser uma mulher comprometida com seu ofício, sincera ao discorrer sobre o curso que pretendia oferecer para atores. Todos lhe são indiferentes. Seu mal-estar é compreensível. Talvez, ela fosse a única lúcida entre eles.

Eis a percepção que aterroriza Thomas e, gradativamente, a todos.

Guto Muniz/Foco in Cena

Piotr Skiba e Halina Rasiakówna na adaptação da obra de Thomas Bernhard

O mistério não é um traço que organiza apenas a dramaturgia, materializa-se também na encenação. Além da direção e da adaptação dos textos, Lupa assina os cenários de suas obras. É lúgubre a sala de estar do primeiro ato: composta em tonalidades de preto e vermelho, cercada com uma redoma de vidro e sufocada por fumaça. Entre os muitos artistas e filósofos que inspiraram o encenador, Carl Gustav Jung ocupa posição de destaque. Cada passagem, portanto, é desenhada como um espelho das projeções subconscientes das personagens. As imagens construídas não refletem apenas ações, mas pulsões e desejos impronunciáveis.

Quando o palco gira e a moldura de vidro que aprisionava a cena se rompe, abrem-se portais para viajar no tempo. O narrador revisita Joana e a si próprio na juventude. Um dia, eles foram verdadeiros, a arte pulsava em seus corpos e as histórias que criavam eram formas de expandir a vida. Em algum ponto, traíram-se. A morte seria, então, uma maneira mais sincera de assumir a falência do sonho. Joana estava certa. Mas e o medo?

No segundo ato, a amiga morta se põe nos fundos da cena, à semelhança de um fantasma que os assombra. Todos se sentam à mesa – de frente para o público e ao redor do convidado, como em uma alusão A última ceia, o afresco de Leonardo da Vinci que retrata a refeição de Cristo e seus apóstolos. A imagem prenuncia algo de trágico em marcha.

Ainda assim, o público ri diante da vaidade do ator do teatro nacional que insiste em ser o centro das atenções. O retrato desses artistas, que moldaram seus sonhos à conveniência, usa sempre a ironia para corroer qualquer possibilidade de indulgência. Não há perdão, mas ainda é possível escapar. Krystian Lupa põe em marcha um pessimismo cheio de fé. Seus personagens são mesquinhos, tolos e inseguros. São fascinantes em sua humanidade.

.:. Mais informações sobre a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Equipe de criação:

Adaptação, direção, cenário e iluminação: Krystian Lupa

Baseado no romance de Thomas Bernhard

Produção: Teatr Polski na Breslávia

Com: Piotr Skiba, Halina Rasiakówna, Wojciech Ziemiański, Marta Zięba, Jan Frycz, Ewa Skibińska, Bożena Baranowska, Andrzej Szeremeta, Adam Szczyszczaj, Michał Opaliński, Marcin Pempuś, Anna Ilczuk e Jadwiga Ziemińska

Diretores assistentes: Oskar Sadowski, Sebstian Dysiak e Amadeusz Nosal

Diretor de cena: Iwona Rólczyńska

Tradução: Monika Muskała

Figurinos: Piotr Skiba

Arranjos Musicais: Bogumił Misala

Vídeo: Łukasz Twarkowski

Visagismo: Mateusz Stępniak

Camareira: Joanna Zborowska

Cenotécnicos: Adam Buraczek, Bogdan Dyląg, Grzegorz Kloc e Łukasz Szyszka

Contrarregra: Marek Iwanaszko

Iluminação: Dariusz Bartołd e Paweł Olszewski

Projeções: Dariusz Bartołd e Kazimierz Blacharski

Som: Maciej Kabata e Wojciech Bielach

As apresentações do espetáculo na MITsp contam com o apoio do Instituto Adam Mickiewi

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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