Crítica
O mito grego de Antígona orienta a criação do oitavo espetáculo do grupo Teatro Máquina com dez anos de atuação em Fortaleza. Com estreia e curta temporada no Sesc Pompeia, em São Paulo, Nossos mortos modula a tragédia de Sófocles, escrita no século V, com dados históricos de um dos massacres ordenados pelo Estado brasileiro contra movimentos populares sociorreligiosos que despontaram no Nordeste, entre os séculos XIX e XX.
Assim como Sófocles e outros poetas da época clássica, que retomaram mitos antigos a partir da tradição oral, o grupo colheu relatos de moradores da região do Cariri, no sul cearense, sobre o assassinato de centenas de pessoas da comunidade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, em 1937.
Esse é o episódio central na dramaturgia elaborada pelo grupo que se permitiu inserir trechos de outras versões do mito por autores clássicos ou contemporâneos. Estão correlacionados o genocídio dos sertanejos – crianças, velhos e adultos atirados ao apagamento da vala comum – e a coragem de uma princesa em sua insurgência pelo dever natural e sagrado de enterrar o corpo de um dos irmãos cujo sepultamento na cidade fora proibido pelo rei/general de Tebas.
A dor de Antígona (Ana Luiza Rios) e de sua irmã Ismênia (Loreta Dialla) equivale, trágica e artisticamente, ao pranto dos sertanejos massacrados
Na pesquisa de campo pelo sertão do Cariri os artistas rastrearam estudos, documentos, cantos fúnebres e lendas em torno do sítio coordenado pelo beato José Lourenço (1872-1946), discípulo de Padre Cícero. Ele atraiu muitos seguidores ao Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. A agricultura autossuficiente e o princípio igualitário – lido como comunista pelo turbulento governo do presidente Getúlio Vargas, em estado de guerra e prestes a dar um golpe – logo despertaram a contrariedade da igreja, dos políticos e dos generais ante o “núcleo de fanáticos”, precipitando o massacre pelas tropas militares.
A tragédia do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto é comumente comparada às proporções sociais dos conflitos que atingiram outro beato, Antônio Conselheiro, e seus milhares de fiéis em Canudos (BA). Nossos mortos insinua abarcar também o genocídio do arraial baiano, em 1897, de dimensões territoriais maiores, mas prioriza as circunstâncias e reflexos do Caldeirão.
O espetáculo desenvolve essa escolha com pertinência cênica em sua primeira parte. Noções de injustiça social no contexto sertanejo do Brasil subdesenvolvido superpõem o chamado berço da civilização humana no qual as contradições costumavam ser expostas no espaço público.
Há breve menção a lutas atuais e correlatas manifestadas por camponeses, indígenas ou parentes de perseguidos políticos em contextos nacional ou internacional. Fica subentendida a criminalidade aguda nos centros urbanos. Em janeiro a capital cearense registrou matança de 14 pessoas num baile de forró, maior chacina do estado.
Ao manejar esses microcosmos fictícios e reais de violências explosivas, a encenação de Fran Teixeira elege a força da sutileza para expressar indignação sob a ótica do tenso século XXI que parece continuação da “era dos extremos” do século XX, como cravou o historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012).
A perspectiva da obra é do feminismo, com foco nas irmãs Antígona e Ismênia. Não há espaço para o rei Creonte, o seu filho Hemon, apaixonado pela heroína, o profeta Tirésias, o coro de anciões, etc.
Compõem a narrativa as ações corporais e vocais das atrizes Ana Luiza Rios e Loreta Dialla. O desenho dos corpos apoiados um ao outro, a mutualidade da caminhada circular e a performatividade das incelências (cantiga para defuntos) caracterizam a elegia, canção de lamento oposta ao ditirambo, o louvor ao deus Dionísio.
A dor de Antígona (Ana Luiza) e de sua irmã Ismênia (Loreta) equivale, trágica e artisticamente, ao pranto dos sertanejos massacrados. Até hoje seu Raimundo e dona Mariquinha, moradores do Crato, repetem piamente que ouvem o choro de um menino como eco daquela vala comum de localização incerta, passados 80 anos. A direção e a preparação musicais, com execução ao vivo de instrumentos de corda e de percussão, tornam a dolência e as alusões tecnicamente precisas.
Na segunda parte, a dramaturgia faz um desvio radical para retomar passagens mais estritas de Sófocles, ao que a encenação assente adotando um tom mais solene. O dínamo gerado pela dupla presença de Antígona/Ismênia se desarticula, tornando preponderante a figura da personagem-título.
Enquanto Loreta recua para o set dos instrumentistas, Ana Luiza executa um solo com aura de dramaticidade. A atuação dá mais peso à palavra sem que o enunciado corresponda à densidade da tragédia, como a luz e a música dão a entender. A expressividade corporal da atriz é ofuscada, inclusive pelo manto vermelho que a cobre. O espetáculo perde ritmo e mergulha em espessa penumbra, até a nova guinada no movimento final.
Loreta e Ana Luiza reatam a energia ritual, dando materialidade ao pranto estendido à humanidade numa cena comovente, lembrando cantochão e coroando as concepções vocal e musical de Consiglia Latorre. Os corpos são silhueta e halo no caminho em direção à circunferência cenográfica que ao mesmo tempo é sol e lua.
.:. Em tempo: o jornalista e crítico Valmir Santos integrou a comissão de teatro na quinta edição do Porto Iracema das Artes Laboratórios de Criação, em 2017, iniciativa da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. Nossos mortos, do Teatro Máquina, está entre os quatro processos selecionados no âmbito do Laboratório de Pesquisa Teatral e teve tutoria da atriz Tânia Farias (RS). Os demais processos foram: Caldeirão de água no deserto – realidades e utopias?, com os artistas Joaquina Carlos, Nilson Matos e Rita Cidade, sob tutoria do ator e palhaço Esio Magalhães (SP); Despejadas – entre o teatro e a cidade, a questão do gênero, com Edna Freire, Kelly Enne Saldanha, Amanda Freire, Nayana Santos, Doroteia Ferreira e Henrique Gonzaga, sob tutoria da atriz, diretora e professora Adriana Schneider Alcure (RJ); e O retorno a Juberlano, com Tatiane Sousa, Cleomir Alencar e Gil Rodriguês, sob tutoria da artista, professora e pesquisadora cênico-instalativa Carolina Holanda (RN).
.:. Visite o site do Teatro Máquina
Serviço:
Onde: Sesc Pompeia – teatro (rua Clélia, 93, Pompeia, tel. 11 3871-7700
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h. Até 15/4
Quanto: R$ 7,50 a R$ 25
Duração: 70 min.
Equipe de criação:
Direção: Fran Teixeira
Com: Ana Luiza Rios e Loreta Dialla
Direção musical e preparação vocal: Consiglia Latorre
Acompanhamento musical e rabeca de cabaça: Di Freitas
Música e som ao vivo: Ayrton Pessoa, Di Freitas e Levy Mota
Preparação corporal: Fabiano Veríssimo e Márcio Medeiros
Figurinos: Diogo Costa
Assistência e confecção de figurinos: Rogerio Pinto
Cenografia: Frederico Teixeira e Marina de Botas
Desenho de luz: Walter Façanha
Fotos: Luiz Alves
Desenhos: Marina de Botas e Simone Barreto
Produção: Teatro Máquina
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.