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Crítica

‘Siete grande hotel’ inventa sua margem

13.4.2018  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Katia Kuwabara e Victor Iemini

O Grupo Redimunho de Investigação Teatral dedicou boa parte dos seus 14 anos a erguer espetáculos em casarões antigos da região central de São Paulo, sempre com um pé no sertão de João Guimarães Rosa. O escrutínio da obra literária e a pesquisa pelo interior mineiro nortearam as encenações realizadas entre cômodos ou quintais, tendo uma delas alcançado o espaço público por excelência, a rua.

Se esse trabalho anterior, Tareias: atrás do vidro verde tem um mundo que não se vê…, de 2013, sondava a condição feminina em formato itinerante por ladeiras e junto ao formigueiro de gente no entorno da sede do grupo, no Vale do Anhangabaú, sua quinta e atual produção, Siete grande hotel: a sociedade das portas fechadas, leva o público a uma experiência antropológica pelas lutas sociais.

Dessa vez o choque de realidade se dá da calçada para dentro do Espaço Redimunho de Teatro na travessia dramatúrgica e espacial para as dependências do prédio vizinho, convertido em ocupação do Movimento dos Sem Teto do Centro, o MSTC, há cinco anos.

Os criadores do Grupo Redimunho demonstram consciência em trilhar uma possível terceira margem: a da sustentação da linguagem e da (e)laboração poética sem abdicar do comprometimento ideológico

Na segunda parte do espetáculo o espectador percebe a passagem do espaço do grupo para o outrora luxuoso hotel Cambridge, numa cena esclarecedora da etimologia latina da palavra armário – móvel destinado a guardar armas. A arquitetura da propriedade é perfeitamente absorvida pelo universo fictício e por vezes fantástico da narrativa que implode essas mesmas paredes.

Pisa-se o porão do edifício construído na década de 1950 e desocupado havia mais de 20 anos, até a “festa” de 22 de novembro de 2012. “Festa” é como os movimentos sociais chamam a ação de ocupar. Os 15 andares do endereço da rua Álvaro de Carvalho, número 35, foram habitados de uma só vez, numa madrugada de domingo para segunda-feira, em articulação da Frente de Luta por Moradia, à qual o MSTC é aliado.

É do espírito da ocupação reinventar sociabilidades e culturas das dezenas de famílias vindas de diferentes pontos da metrópole, sendo composta ainda por refugiados do Oriente Médio e da África ali abrigados sob esperanças de iminente estabilidade.

Katia Kuwabara e Victor Iemini

Jandilson Vieira e Marcus Martins (atrás) no aposento da prestidigitação durante a peça do Grupo Redimunho

Um porteiro, ou concierge, narra e conduz cerca de 40 espectadores tidos por visitantes, também viajantes do tempo, peregrinos, andarilhos ou meros hóspedes. São percorridos aqueles que seriam os sete últimos aposentos desse hotel imaginário em meio a colunas largas, pé-direito amplo e um vão externo.

Nessa área de fora, um diálogo entre homens entrincheirados – um com espingarda em punho numa janela e outro posicionado no chão – convida a esticar o pescoço para o alto e a observar as fachadas das torres residencial e comercial que enquadram o céu noturno.

Certas sequências do roteiro incorporam como cenário a precariedade das instalações hidráulicas naquele subsolo. Por outro lado, permitem vislumbrar a capacidade organizativa dos sem-teto para contornar os níveis de impermanência no cotidiano de sujeitos empenhados na causa coletiva. Sonha-se, em suma, sem abrir mão de resistir em diuturna vigilância (disponibilidade de atenção imprescindível a quem atua). Juridicamente, a luta por direitos encaminha-se para uma resolução pró-ocupantes pelo programa federal Minha Casa, Minha Vida.

Mas, afinal, o que move os artistas a fundir o resultado criativo à reivindicação por direitos sociais? Não está em xeque o papel do cidadão, idealmente participativo. Mas o que pode o teatro nessa contiguidade?

É conhecido o relato de Augusto Boal (1931-2009) sobre a reação de integrantes das Ligas Camponesas a uma apresentação musical realizada no início dos anos 1960, possivelmente em Pernambuco, quando um deles o instou, e também aos demais colegas do Movimento de Cultura Popular, a pegar em fuzis de verdade “contra os jagunços de um coronel, invasor de terras”, como anotou na autobiografia Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. “Esse episódio me fez compreender a falsidade da forma ‘mensageira’ de teatro político.”

Katia Kuwabara e Victor Iemini

Danilo Amaral é o homem que carrega uma muda de árvore e pisa um metro de terra

Os criadores do Grupo Redimunho demonstram consciência em trilhar uma possível terceira margem: a da sustentação da linguagem e da (e)laboração poética sem abdicar do comprometimento ideológico.

É como se testemunhassem o ato, o local e suas circunstâncias sem fixação em registrar verdades. Asseguram graus de distanciamentos ao contracenar com o objeto de pesquisa – material e humano – e ambicionar transcendê-lo simbolicamente.

Essa postura teve significativa incidência na cidade com o aumento da prática do teatro de grupo nas primeiras duas décadas deste século. Imersões sociais e identitárias amplificaram o potencial do olhar político a partir da cena. O diálogo com a realidade vem permeando lutas diferentes na forma, mas comuns nas necessidades de território e expressão. A geração de Boal alcançou essa ponderação no trabalho de campo.

Em Siete grande hotel, a efemeridade dessa arte encontra equilíbrio provisório em território instável. A enunciação crítica vem por meio da tomada de posse formal, com ambientações cênicas ganhando acabamento de instalação visual. Nichos cenograficamente autônomos surgem a cada quarto.

Para contextualizar o primeiro deles, coexistem os planos de um personagem com os pés num riacho enquanto o seu interlocutor está sentado em outro nível, debruçado numa máquina de costura, arrematando uma bandeira de movimento social. Na suspensão temporal-espacial, eles são soldados da borracha, como eram chamados homens do Nordeste enviados para extrair látex na Amazônia, sujeitos empobrecidos e esquecidos nos ciclos econômicos ou bélicos. “Para o pobre, os lugares são mais longe”, sintetizou Rosa no conto Sorôco, sua mãe, sua filha.

A revolta dos soldados da borracha é atualizada quando o diálogo questiona o andar de cima da sociedade. Em concomitância, na parte superior da referida cena avistamos uma morada urbana, uma família de classe média, com a televisão ligada e a empregada doméstica a postos. Como se tudo estivesse protegido atrás das vidraças.

Katia Kuwabara e Victor Iemini

Músicos e atores da por vezes fantasmagórica ‘Siete grande hotel: a sociedade das portas fechadas’

Memória e presente narrados denotam injustiças e desigualdades. Os direitos civis estão demarcados, por contraste, a cada estágio. Nos cômodos ou corredores predominam situações de vigilância ou de conflito direto, com subordinados ou subjugados insurgentes em nome da casa, da terra. O caminho labiríntico do espetáculo oscila retratos realistas e fantasmagóricos em micro-histórias emblemáticas dos mecanismos de exploração no capitalismo.

E há cenas passíveis de múltiplas leituras. Como aquela do embate de uma mulher refugiada com um homem fantasiado de Mickey, numa sala repleta de sapatos. Aliás, a concentração de calçados ou a ausência de um deles na maioria dos pés dos personagens dizem muito sobre o destino dos desvalidos ao longo da história da humanidade.

Duas outras constatações de mais abertura, independente dos alicerces militantes. O inusitado de dois corpos soterrados e mutilados entre escombros, cabeças falantes de um capitão e um soldado que não perdem os respectivos capacetes e tentam, em vão, contrabalancear virtudes e maldições da guerra. É premente a paisagem terrivelmente irônica dos Dias felizes, do irlandês Samuel Beckett (1906-1989), e sua Winnie enterrada até o pescoço, sob o sol, tentando agarrar-se ao que restou da existência. Já a figura de uma camareira devidamente uniformizada faz aparições relâmpagos em diferentes momentos da encenação. Ela não tem voz, mas sua imagem imprime ponto de fuga para se pensar nas trabalhadoras tornadas invisíveis nas redes hoteleiras.

Nas brechas entre denúncias e ruínas, a música é componente dos mais valorizados. Os instrumentistas (também atuantes) e os cantores convidados intercalam os quadros/quartos em sublimações e contrapontos inspirados em raízes latino-americanas. As letras e melodias soam mais nuançadas que hinos revolucionários. No teatro, o alinhamento poético é de outra natureza, confirma a passagem pelo salão à maneira de um cabaré.

Entranhado no real, o Redimunho escapa de atolar na fronteira do discurso por moradia. O panorama visto da ponte revela-se mais complexo. É óbvia a identificação com bandeiras do movimento popular. Ainda mais a essa altura das manobras jurídicas e parlamentares para as desestabilizações em curso no país, escoradas pelas elites econômicas. A indignação, no entanto, não desvia o grupo de cultivar a dialética enquanto princípio ativo da arte.

.:. Leia o diálogo com o diretor Rudifran Pompeu e o produtor Rafael Ferro no 14º Encontro com o Espectador, acerca de Siete grande hotel e os 14 anos do Grupo Redimunho de Investigação Teatral

.:. Visite o site do Grupo Redimunho

Serviço:

Siete grande hotel: a sociedade das portas fechadas

Onde: Espaço Redimunho de Teatro (rua Álvaro de Carvalho, 75, Anhangabaú, próximo à estação do metrô, tel. 11 3101-9645)

Quando: Domingo, às 19h, e segunda, às 20h. Segunda temporada de 8/4 a 30/7

Quanto: Pague quanto puder. A bilheteria abre uma hora antes

Duração: 140 minutos

Classificação indicativa: 14 anos

40 lugares

Equipe de criação:

Texto e direção: Rudifran Pompeu

Assistência de direção: Jandilson Vieira

Com: Edmilson Cordeiro Cortez, Carlos Mendes, Keyth Pracanico, Jandilson Vieira, Giovanna Galdi, Vitor Rodrá, Anisio Clementino, Marcus Martins, Danilo Amaral, Cinira Augusto, Ricardo Saldaña, Juliana Lopes, Wilton Andrade, Thayna Carvalho, Bruna Aragão e Wagner Morgani

Direção musical: Luis Aranha

Cantores convidados: Alexandre Mello e Neide Nell

Artista colaborador: Leandro D’errico

Concepção da cena de telepatia: Marcus Martins

Preparação vocal: Ana Terra Ikeda | Iluminação: Rudifran Pompeu

Figurinos: Jandilson Vieira e Keyth Pracanico

Cenografia: Grupo Redimunho

Fotografia: Kátia Kuwabara

Vídeos: Fuzuê Filmes (Edu Luz e Cibele Appes)

Programação visual e site: Danilo Amaral

Pesquisa e consultoria literária: Ivan Forneron

Produção e comunicação: Rafael Ferro

Realização: Grupo Redimunho de Investigação Teatral

Projeto contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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