Encontro com Espectadores
6.4.2018 | por Teatrojornal
Foto de capa: Katia Kuwabara e Victor Iemini
Ao derrubar paredes entre realidade e ficção, o quinto espetáculo do Grupo Redimunho de Investigação Teatral demarca os atuais 14 anos de travessia por casarões e ruas da região central de São Paulo. O espetáculo Siete grande hotel: a sociedade das portas fechadas funde a sede do grupo, espacial e dramaturgicamente falando, com o prédio vizinho onde funcionou o hotel Cambridge (1951-2002), no Vale do Anhangabaú.
A ocupação por moradia ativa desde 2012 na parte residencial (há também a área de escritórios comerciais), pelo Movimento dos Sem Teto do Centro, o MSTC, acabou impregnando a concepção da obra motivadora do 15º Encontro com o Espectador, realizado em 31 de outubro de 2017 sob iniciativa do nosso site em parceria com o Ágora Teatro.
Publicamos a seguir a edição do diálogo que envolveu o autor, diretor e cofundador Rudifran Pompeu e o produtor Rafael Ferro, sob mediação do jornalista e crítico Valmir Santos.
Em tempo: Siete grande hotel cumpre nova temporada de 8 de abril e 30 de julho de 2018.
Valmir Santos
Sejam bem-vindos ao 15º Encontro com o Espectador, que, hoje, excepcionalmente acontece numa terça-feira, em vez de na última segunda-feira do mês. E pegamos ainda um pouco da luz do dia graças ao horário de verão.
Trata-se de iniciativa independente do site Teatrojornal – Leituras de Cena, tocada há 15 meses com o apoio do Ágora Teatro. Nossa ideia é estimular a interlocução dos lugares do espectador, da crítica, do artista e de outros que possam ser inventados por aqueles que estão imersos ou se aproximam do teatro. Investimos energia nessa ideia de qualificar nossas percepções e encurtar as distâncias entre artistas e críticos.
E por falar em deslocamentos, as questões fronteiriças de linguagem, de território e de abordagem (histórica, social, política e econômica) estão no cerne do trabalho dos criadores do Grupo Redimunho de Investigação Teatral, fundado em 2003. Portanto são 14 anos de atividade constante na cidade. Seus espetáculos são levados a espaços não teatrais, sempre na região central, principalmente no Bixiga.
Em ‘Siete grande hotel: a sociedade das portas fechadas’, o último quarto é como se fosse a rua, quando saímos com as armas para guerrear com o que está lá fora. (…) Realmente, sempre tem um estado de guerra, de tensão, que é como hoje eu me sinto e quase todos os artistas dessa cidade estão se sentindo (Rudifran Pompeu)
Não por acaso, o novo trabalho, Siete grande hotel: a sociedade das portas fechadas, tem a ver com a chegada do grupo à sede da rua Álvaro de Carvalho, em 2010, passando a conviver, dois anos depois, com os vizinhos da ocupação do hotel Cambridge. Essa luta por moradia articulou 170 famílias numa dinâmica que tem ecoado a relevância do Movimento dos Sem Teto no Centro, o MTSC, ligado à Frente Nacional de Luta por Moradia, a FNLM.
Sabemos que o movimento vem, gradativamente, conquistando direitos como a inclusão no programa federal Minha Casa, Minha Vida. A ocupação dos 15 andares desse edifício tornou-se objeto da experiência de um filme recentemente, Era o hotel Cambridge (2016), da Eliane Caffé. Essa interface de espaço da arte e da vida real, da vida social, também atravessou oficinas e outras atividades culturais e artísticas, culminando na peça do Redimunho.
Foi no diálogo com esse vizinho, com quem vocês já tinham algum namoro [para os dois convidados], e vão compartilhar isso conosco, que o processo de criação de Siete grande hotel se viu completado. Aos poucos houve efetivamente esse convite e essa interseção de fato do espaço, do subsolo, do salão do edifício ocupado e de seus moradores, ocupantes, interagindo com a experiência da criação teatral, da espacialidade teatral.
A criação evidencia o contato do real, a experiência sociopolítica tão à flor da pele, tão próxima, tão embarcada… Mas antes de seguir, convém apresentar os convidados.
O Rudifran Pompeu, dramaturgo e diretor do espetáculo, é gaúcho e atua no campo cultural desde meados dos anos 1980. Falando há pouco, antes de sentarmos aqui, ele confessou que no pré-mergulho profissional no teatro exerceu o ofício de mágico. Foi muito singular saber desse outro nível de representação. Portanto, aquela cena de adivinhação em Siete grande hotel tem a ver com essa outra bagagem pessoal e profissional do Rudifran. Além de ator e dramaturgo, ele é um ator político, posso assim dizer, pelo desempenho na presidência da Cooperativa Paulista de Teatro desde 2013. É um dos fundadores do Redimunho.
O outro convidado é produtor Rafael Ferro, que também é ator, mas aqui não está em cena. Ele é formado pela Fundação das Artes de São Caetano, e aos poucos foi ocupando esse espaço de produção. Quanto à instigação para trazê-lo aqui, acredito que os desafios que o Rafael teve nesse espetáculo, especificamente, lembram muito a atuação singular da Elisete Jeremias no projeto daquela série Os sertões [2002-2007], do Teatro Oficina, uma sequência de cinco montagens.
Era incrível como ela contrarregrava, contracenava e colocava de pé aquelas jornadas monumentais com dezenas de atores em cena. E minha expectativa nessa conversa é ouvir do Rafael a experiência nessa função. Afinal, ele é o primeiro produtor que vem ao Encontro com o Espectador. Em que medida ele pode situar, por exemplo, a relação com o Movimento dos Sem Teto do Centro [MSTC], porque uma das questões que fica muito clara nessa obra é a ideia do engajamento e da identificação com uma causa.
Ou seja, as escolhas do espetáculo, obviamente, transparecem essa identificação política. Ao mesmo tempo, algumas colocações do Rudifran, em entrevistas, transmitem um discurso e uma ação política direta, ou mesmo de pensamento crítico quanto ao que essa experiência artística representa. É claro o ponto de vista, a intenção de riscar o chão no contexto brasileiro atual.
Entendendo essas questões sociais e políticas impregnadas, o trabalho vai muito além da imersão com o MTST, um movimento fortíssimo, de uma tensionalidade natural. O espetáculo resulta muito mais complexo no plano simbólico, no plano das formas de pensamento artístico que estão colocadas ali.
E a questão que eu trago para abrir é essa: nesses agora 14 anos de trabalho continuado – lembro da surpresa que foi assistir aos primeiros espetáculos do grupo, A casa [2006] e Vesperais nas janelas – o coração do lugar [2008] – foram recorrentes as visitas ao universo de João Guimarães Rosa [1908-1967], de questões da palavra e da espacialidade não convencional, de uma gravidade sobre os temas que trazem à tona a dimensão humana dessa escrita.
Ao mesmo tempo, esses trabalhos assumiam certo lirismo, uma ênfase mais poética de quem, talvez, estivesse nos primeiros passos do trabalho de grupo. Eu queria saber dessa curva, Rudifran. Como vocês lidaram ao longo do tempo com essa abordagem real, com essas causas, no interior do processo criativo? Falo dessa relação de fronteiras que vocês tocam entre o real e o ficcional, bem como das fronteiras de linguagem. Como encaram a dimensão da causa e da politização que é uma atualização do Redimunho, que é do Rudifran da cooperativa, que é do Rafael de aproximação e engajamento em movimentos sociais. Em que medida essa instância do real, do cidadão, é problematizada ou absorvida ou discutida internamente, quando vocês estão ensaiando ou pensando artisticamente?
Rudifran Pompeu
Quando começamos, talvez não havia nada apontado, a não ser o desejo de fazer teatro. Aquela coisa do sapo não pular por boniteza, mas por precisão… Então você junta quem está mais ou menos nessa vibe, faz uma companhia de teatro e começa. Só que você é atravessado por um monte de coisas no meio desse percurso.
No primeiro espetáculo, A casa, aconteceu uma série de coisas. Havia um plano de fazer num espaço que fosse uma casa, até porque não havia dinheiro para fazer num teatro. Havia um pensamento lógico de que era mais fácil alugar uma casa, “rachar” a casa e fazer apresentações na hora que quisesse. Tanto que no começo do Redimunho, para você ver como era precário, eu tinha uma câmera – tenho até hoje, porque eu guardo, sou canceriano –, uma VHS. A gente ensaiava na sala de trás do Teatro Sérgio Cardoso, e era cobrado. Não havia dinheiro nem para pagar aquilo. Alugava um dia, uma quarta-feira, e discutia o que queria fazer nas salas dos apartamentos da gente. E quando ia pro campo de ensaio fazia experimentos e filmava para não perder tempo discutindo lá. Era uma coisa maluca. Eu tenho esses registros gravados e, vendo, são engraçadíssimos porque não havia um plano, a única coisa objetiva era fazer Guimarães Rosa.
Nunca achei que ia chegar para ela [a filha e uma das herdeiras do escritor mineiro, Vilma Guimarães Rosa] e dizer: “Queremos muito fazer alguma coisa do seu pai. Com quem que eu falo?”. E ela me disse que com dinheiro era difícil e sem, era impossível… Então aquilo me deu uma desmontada. E comecei a pensar, junto com três ou quatro pessoas naquele momento, que era muito difícil construir um coletivo com o objetivo de fazer uma peça sobre aquele autor. Mas não desisti.
A gente resolveu percorrer o caminho do Guimarães, como ele fez para garimpar aquelas coisas todas [peregrinação pelo sertão mineiro, na região central do Estado]. Ele pegava a sua caderneta em pleno sertão, era uma cara que ouvia muito mais do que falava. Conheci a prima dele, a Calina, acabei me envolvendo muito com a família dele, de alguma maneira. E comecei a fazer isso, a pegar as coisas e eu mesmo escrever, foi meio por aí.
Mas essa coisa política que atravessa o processo de construção dos espetáculos, você não calcula isso. A pesquisa tem um caminho de chegar àquele lugar, mas você é atravessado por um monte de coisas e essas vão com você, saem daqui de um jeito e chegam lá adiante de outro.
A casa foi um pouco assim, o casarão era o nosso melhor aliado, um casarão de 1911, no centro de uma das maiores metrópoles do mundo, perto de tudo. A gente entrava no quintal e parecia que estava no sertão. Criei galinhas lá, na rua do TBC [a Major Diogo], a dois quarteirões do TBC [o Teatro Brasileiro de Comédia, na Bela Vista, o popular bairro do Bixiga]. Havia pé de manga, de amora, todo um mundo lá atrás.
E uma curiosidade, só pra dizer como as coisas atravessam. As quatro pessoas que eram do grupo naquele momento, tínhamos uma semana para achar uma casa. A Izabela Pimentel, que era uma das fundadoras, ficou de procurar na parte do Bixiga. Eu fiquei com a parte de cima, outro com Santa Cecília… Levamos uma semana buscando. Aí a Izabela passou um dia ali, no casarão da rua Major Diogo, por acaso, e ele estava aberto.
Ela já tinha visto o imóvel várias vezes, e decidiu entrar. Encontrou uma moça limpando, a Amaralina [Cruz, atualmente educadora social], que tinha estudado teatro no Macunaíma. Começou uma conversa e ela disse para falar com o Chico [Francisco Zorzete], porque o casarão seria da Companhia de Restauro por dez anos [a empresa dele]. A Izabela me ligou desesperada, falei com o cara, marquei e cheguei lá para conversar. Levei umas mágicas no bolso, para dar uma enganada, uma pastinha cheia de coisas, que na verdade não tinha nada, nem texto. A certa altura, o Francisco perguntou se eu não levaria para lá umas peças comerciais, de gente de novela, pois não gostava dessas coisas não. Ele gostava de Teatro da Vertigem. A coisa encaixou de um jeito… O Francisco virou amigo, entregou a chave do casarão, queria montar uma escola de restauração para menores de rua, para pessoas desassistidas, e quando fizesse a escola, tínhamos de sair [depois Casarão da Escola Paulista de Restauro].
Retomando, no começo do grupo éramos quatro pessoas: eu, a Izabela Pimentel, a Renata Laurentino e o Carlos Landucci, tendo este falecido em 2010. O Landucci fazia muito cinema e, infelizmente, lidava com muitos enfrentamentos na vida pessoal. Então demorou um tempo para o núcleo se estruturar. Só começa a ganhar corpo principalmente na época d’A casa, quando convidei outras pessoas e acabava vindo a moçada mesmo. Tentávamos vender o sonho. Em 2006, quando de fato conseguimos o casarão e o espetáculo estreia é que a coisa se consolida. Porque havia um lugar, e isso foi muito marcante.
Algumas pessoas começam a se aproximar e vai virando um núcleo duro: a Giovanna [Galdi], o Edmilson [Cordeiro Cortez]. Esses são os que estão há mais tempo, que tocam o barco. Tem uma galera que faz o trabalho das 19h às 23h e outra que fala comigo de madrugada, o Rafa [Rafel Ferro] é um, por exemplo. Resolvemos coisas fora do expediente. Hoje temos 21 pessoas, pelas minhas contas, então é gente pra caramba. O Redimunho trabalha das 19h às 23h, de segunda a sexta-feira, esse é o horário oficial. Se você não pode nesses horários, então não pode entrar. O núcleo 1, o núcleo duro, somos: eu, Rafa, Jandilson [Vieira], Keyth [Pracanico], Giovanna, Edmilson e o [Carlos] Mendes. O núcleo 2 é essa galera que está aqui, mais o Ricardo [Saldaña], a Laís (Blanco) e a Drica [Zangrande].
E foi assim teve início a nossa trajetória dentro daquele casarão. Tínhamos um lugar para ensaiar na hora em que quiséssemos, e aí sim surgiu a interação com o bairro do Bixiga, daquele pedaço ali. Começamos a entender, a compreender os contextos. Fizemos A casa sem nenhum recurso, uma coisa de amigos, um emprestava cem reais… Lembro que vendemos uns ingressos a R$ 50 para pessoas mais próximas, da família. Então, naquele momento, quando finalmente o espetáculo é estruturado, fica pronto, a Beth [Néspoli] fez uma crítica no Estadão: “A Casa: sedução delicada e sábia” [Caderno 2, 29/7/2006]. Essa crítica vai fazer uma diferença porque nos coloca dentro das comissões de Fomento, por assim dizer. Pela primeira vez somos selecionados no Fomento ao Teatro, um recurso bem pequeno, para nossa manutenção naquele espaço. Mantivemos o espetáculo em cartaz por um bom tempo e demos início à pesquisa do próximo trabalho.
Avanços nessa aventura teatral misturada à política que acontecia no nosso entorno. Passamos a tomar um pouco mais de consciência. Éramos uma molecada muito ponta firme, queríamos fazer teatro… As nossas maiores brigas era saber quem tinha deixado o pano de chão fora de lugar. Até o coletivo viajar para conhecer o sertão de Minas e entender esse universo. Isso nos trouxe muita bagagem. Aconteceu de a gente chegar à cidade de Cordisburgo e os caras pararem a rua: “O pessoal do teatro chegou!”.
Com Vesperais nas janelas [2008] começamos a tomar consciência do teatro de grupo da cidade. Eu já tinha trabalhado com o Marco Antonio Rodrigues [Grupo Folias], lá atrás, um desses caras “macaco velho de teatro”. Parte da galera que estava comigo era jovem e vinha do Vocacional [programa da Secretaria Municipal de Cultura existente desde 2001 com objetivo de instaurar processos criativos emancipatórios por meio de práticas artístico-pedagógicas].
A partir desse segundo espetáculo começamos a sacar que tipo de teatro estávamos fazendo. Ou melhor, nos questionamos. Um teatro todo bonitinho, mas para quê e para falar com quem? Vamos ficar reproduzindo as histórias bonitinhas e o mundo pegando fogo lá fora? Desse momento em diante essas coisas todas vão começar a fazer parte da nossa dramaturgia. Tem sido assim até os dias de hoje, ocupando um lugar como o atual, cheio de dissonâncias, num subterrâneo, praticamente debaixo da rua, com uma ocupação dos sem teto ao lado. Além disso, temos um entorno perigoso [região próxima ao Metrô Anhangabaú], você não passa ali suave, por mais que tenha me compadecido das situações. Se os caras forem te assaltar, fala que é do teatro e possivelmente eles não vão te assaltar. É o que acontece ali.
O penúltimo espetáculo, Tareias [Tareias: atrás do vidro verde tem um mundo que não se vê, 2013], tinha a cena de uma menina que fica em cima de uma mesinha, uma personagem que a gente chamava de Macabeia. Ela se posicionava no Largo da Memória, ao ar livre, bem na ladeira histórica, e os caras da rua, que moravam ali, começaram a chamá-la de “A padroeira da ladeira”. Criaram essa imagem e eram como que os seguranças no deslocamento até a entrada da estação do metrô, ao lado. Somos atravessados também por essas relações.
A vizinhança não chama [o hotel Cambridge] de ocupação, mas de invasão. (…) Está claro que são aqueles vizinhos preconceituosos, que não gostam de pobre, de preto, de nordestino. É o que a Carmen [liderança do movimento por moradia] fala: eles entram na quitinete de 15 m² deles e acham que estão na mansão para poder julgar o outro (Rafael Ferro)
Siete grande hotel é um projeto que não era pra acontecer ali. O plano era fazer num hotel mesmo, achar um hotel velho, meio abandonado, cumprir temporada e depois sair e deixar o espaço para outro coletivo. Que resultasse um espaço de cultura, de teatro. Vasculhamos vários endereços. Mas no próprio projeto [enviado ao Programa de Fomento ao Teatro] escrevemos que, caso não achássemos o hotel, o nosso plano B seria a sede.
Pois é isso que você falou, tem criança lá, os ocupantes não têm água. E até conseguir mobilizar o poder público… Os caras [servidores públicos] não conseguem achar a planta da rua para poder plantar árvore, não estão nem aí, têm outra pegada. O tempo político é completamente diferente do nosso tempo de vida real. As ocupações são estruturadas, normalmente têm lá um cara que é encanador, outro eletricista, eles não são bobos não. E assim passamos a estabelecer as primeiras relações com eles.
No começo, a ocupação chega barra pesada, a vizinhança não queria, reclamavam que os seus imóveis seriam desvalorizados. Esse tipo de tensão trouxemos para dentro do espetáculo, construindo sete espaços nos quais gostaríamos que as pessoas tivessem uma vivência. Que não fossem quartos convencionais, mas resultassem numa vivência. Que o espectador pudesse sentir alguma coisa a partir do processo estético, da imagem vista, do texto ouvido, do barulho da água… Construímos uma coisa muito parecida com a que vivíamos ali dentro e do lado, em meio ao presente histórico de tantos pesos e retrocessos.
Nos primeiros dias de pesquisa teórica, quando estudávamos os 21 contos de Guimarães Rosa, fomos surpreendidos pela polícia passando em frente ao nosso espaço, um batalhão atirando nos estudantes na rua. Colocamos a moçada para dentro até a repressão passar. Então, o processo foi sendo contaminado pelo momento atual do país.
Nesse sentido, e recuando um pouco, é evidente que a minha chegada à Cooperativa Paulista de Teatro me coloca em outro lugar: atrapalha, por um lado, mas me ajuda por outro. Eu sempre gosto de fazer alguma coisa como ator nas minhas peças, uma pontinha que seja, mas as demandas da gestão vão te ocupar com outro lugar, outro tempo. Agenda da cooperativa é imensamente política, mas política mesmo, na base de você ter de apertar a mão de um [Michel] Temer, lidar com essas figuras, e ter o telefone do [Fernando] Haddad. E isso é a potência, a importância que a cooperativa tem no cenário, e também ao interferir em nossas vidas de artistas.
Valmir Santos
Creio que a experiência desse contato político é trazido, inclusive, para a dramaturgia. Ontem, em São Bernardo do Campo, naquela experiência da maior ocupação dos sem teto num terreno gigantesco, o Caetano Veloso foi tocar e uma juíza proibiu… Mesmo assim, ao final, circulou um vídeo em que o cantor aparece num palco improvisado, abraçado ao [Guilherme] Boulos [da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], observados pela massa embaixo. Lá pelas tantas, eles entoaram uma espécie de grito de guerra comum aos movimentos sociais e que também ecoa em Site grande hotel: “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com formiga, não assanha o formigueiro!”. Eu não conhecia, mas lembrei imediatamente. A impregnação foi naturalmente assumida em cena. Essa escolha é distinta da experiência em Tareias, quando abordam questões do feminino? Aqui, parece-me mais vertical.
Rudifran Pompeu
Foi bom você falar disso porque esse mantra de luta é do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e isso se propaga para dentro do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, porque é tudo muito interligado. Eu estive em plenárias na Câmara Municipal, bem antes do espetáculo, e já conhecia a música. Quando os caras começam a cantar isso lá é um negócio que você fica… E é o povão cantando. É uma galera que não tem absolutamente nada, mas que também não tem nada a perder, então eles vão pra cima mesmo. E é um movimento que se você não vai, você está fora da ocupação. Você tem que ir, frequentar, você é soldado, está em guerra, está em luta. E quando você tiver o seu apartamento, a sua moradia, não acabou a luta, agora você vai brigar para que o outro tenha o dele, e assim vai. É um negócio muito organizado.
Eu conheço muito a Carmen [da Silva Ferreira, líder da Frente de Luta por Moradia, FLM, e coordenadora da ocupação do hotel Cambridge], ela é minha vizinha no mesmo Bixiga, não mora na ocupação, já morou na rua, mas agora tem a casa dela. Moramos na mesma rua. Tem uma frase na peça que é dela: “Sem teto é todo aquele que não tem escritura, quem mora de aluguel é sem teto”. E é verdade. A gente acaba pensando que é com teto.
A maioria do elenco é sem teto, por exemplo. E essa é uma grande dificuldade na vida, ter acesso a uma moradia digna. Então a ocupação é um ato, um fato político para acelerar as coisas. Governo é que nem feijão, só funciona na pressão. Então, se você não gritar, não vem. Fomos tomados por esse movimento, por esse momento. Se pegar a campanha para presidente [2014], quando o Aécio [Neves] assume a candidatura dele, as coisas se estabelecem muito claramente para nós da cultura: era muito fácil identificar qual era o melhor programa, não se tratava de questão partidária. Você pode questionar o PT, os governos progressistas, mas as políticas estruturantes, os fomentos no campo da cultura nessa cidade aconteceram em governos petistas. Os outros governos parecem só querer fazer editais.
Isso tudo nos atingia a falar um pouco mais de luta de classe. Tem a cena dos dois caras na água [riacho cênico] e na parte de cima do cenário tem o casal comendo [numa cozinha urbana]. Aquilo é como o subterrâneo: os dois caras afundados na água, organizando a luta, que é o que está acontecendo hoje. Eu criei uma dramaturgia despedaçada, bloqueada, que precisaria ver mais de uma vez a peça para estabelecer os links que estão lá, uma coisa falando da outra. No início da criação foi pensada a personagem de uma camareira que ia se perder do outro lado do hotel, mas isso ficou para trás. É a luta de classes. As simbologias que estão ali refletem a luta de classe.
Rafael Ferro
Tem uma chave importante que o Rudifran falou: a mudança do casarão do Bixiga para a região do Anhangabaú. Estávamos tão perto, só descemos lá para o Terminal Bandeira, uma área que já tem aquele dado de ser uma das mais violentas da cidade. Quando falamos sobre a mulher em Tareias, descobrimos que o entorno era considerado como o Grajaú [na zona sul], um dos pontos mais violentos da região. E aí acontece a transformação política do Rudi ir para a cooperativa. Isso se reflete no grupo, porque somos uma extensão um do outro, atores e diretor, vamos militar juntos, até porque a causa é do todo. Isso tem conduzido muito a minha produção artística, cada vez mais inspirada e permeada pelos assuntos sociais, pela vida real.
Em 2009 iniciamos a obra na rua Álvaro de Carvalho, 75, que logo vira o Espaço Redimunho de Teatro. Em 2011 estreamos Marulho: o caminho do rio…, mas passamos oito meses continuando os ajustes e reformas já pensando nessas questões de os espetáculos serem todos bonitinhos… Afinal, estamos num porão agora, não temos o quintal, as galinhas, mas um espaço escuro, sem sol, sem história. Eu ali pensando a produção do Redimunho, o grupo em que tinha atuado, que conheci, que me levou para o sertão, que me fez ver isso tudo… E nesse sentido nos construíamos humanamente, já que artisticamente você está ali buscando e trocando num empenho surreal.
Após dois anos bate uma ocupação na sua porta… Fechamos o teatro numa noite e quando voltamos no outro dia, a rua está aquele caos. Ocuparam o edifício do antigo hotel Cambridge, fechado há 16 anos e já sendo um prédio destinado à moradia. Quando a gente chegou naquele endereço, um homem que se dizia responsável nos levou para conhecer o hotel, parecia que era dele, organizava uma balada que dava lucro. Eu lembro de subirmos até os quartos e eles ainda estavam preservados, isso em 2010, 2011. A vizinhança não chama de ocupação, mas de invasão. Agora quando o prédio é ocupado pelo movimento de moradia, de luta, pela justiça, aí é isso que conhecemos. Para mim, o subtítulo “a sociedade das portas fechadas” representa nosso entorno. Está claro que são aqueles vizinhos preconceituosos, que não gostam de pobre, de preto, de nordestino. É o que a Carmen fala: eles entram na quitinete de 15 m² deles e acham que estão na mansão para poder julgar o outro.
Rudifran Pompeu
E subiu muito prédio ali perto. Tem um processo de gentrificação enorme no Bixiga. As pessoas que moravam lá não moram mais porque não conseguem mais pagar, e vêm outras.
Valmir Santos
Uma tensão permanente. Como vocês se apropriaram do subsolo do prédio vizinho e redimensionaram a dramaturgia na relação com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto?
Rafael Ferro
Quando decidimos fazer Siete, estávamos saindo de Tareias, que era na rua, mas decidimos que na rua nunca mais. Voltamos para o teatro, começamos a procurar casa, casarão, mas tinha essa possibilidade de no último caso ser no nosso teatro mesmo, que era esse “lego”, construir o hotel dentro do espaço com vários quartinhos. E havia a possibilidade de usar o hotel Cambridge, porque já tinha uma proximidade. A ideia era usar o salão principal. Havia a possibilidade do casarão da JOC, a Juventude Operária Católica, um braço progressista, esquerdista. Eles têm um casarão abandonado, lindo, o que é triste, na esquina da Condessa de São Joaquim com a Conde de São Joaquim [ambas as ruas no Bixiga]. Era o casarão dos caras, por isso a rua tem o nome deles. Nessa busca, fomos ficando sem orçamento, sem possibilidades, então decidimos usar pelo menos o salão vizinho. Mas ficava estranho fazer todo o teatro subir só para o salão [que fica no primeiro andar].
Certa vez, fomos para a calçada e o pessoal da Ocupação Cambridge estava fazendo um mutirão. Perguntamos o que havia lá embaixo antes, e um deles, o Gilberto, disse que era um frigorífico. Dois dias depois o Rudi traz uma cena com esse título e na hora eu liguei pra Carmen falando do frigorífico e ela disse que nos levaria. E fomos até o subterrâneo, os porões do hotel. Surtamos. Era uma sala de depósito, eles não a usavam. E a partir daí a relação entra em outro processo. Eles já nos conheciam, já fazíamos algumas ações conjuntas. Pois agora iríamos adentrar um lugar especial, que era muito real, uma situação da realidade do Brasil. Eles não estavam ali passando uma temporada.
O Cambridge é a casa deles agora porque foi reconhecido como parte do programa Minha Casa, Minha Vida. Estão num processo de batalhar a reforma junto à Caixa. Então era ocupar com eles, e eles têm isso de abrir a porta, tomar café, o que é muito a Minas que conhecemos no sertão.
A vizinhança não chama [o hotel Cambridge] de ocupação, mas de invasão. (…) Está claro que são aqueles vizinhos preconceituosos, que não gostam de pobre, de preto, de nordestino. É o que a Carmen [liderança do movimento por moradia] fala: eles entram na quitinete de 15 m² deles e acham que estão na mansão para poder julgar o outro (Rafael Ferro)
A ficha foi caindo ao produzir o Redimunho lá dentro, porque eu já sabia o que a gente queria, estava ligado no que a direção pretendia, no que o elenco estava construindo e no que precisava ser adequado. As concessões, por exemplo, isso dá, isso não dá, e liga e tenta… Eu acho que as portas se abrem também quando a coisa é para ser. O grupo tem um fluxo e ele não pode ser interrompido. Hoje o Redimunho é chamado como um dos colaboradores da Ocupação Cambridge, como os arquitetos da Escola da Cidade, como a Eliane Caffé que dirigiu o filme. Somos um dos colaboradores. A Carmen fala e brinca dizendo que foi atriz do filme e agora vai ser atriz do teatro. E reafirmamos para eles o quanto é importante o que tem acontecido lá. A ocupação do hotel está em evidência, isso é importante para a luta, tem sido um facilitador muitas vezes.
Wanderley Costa Lima – advogado e professor de Direito
Só uma observação que me bateu e eu resgatei de ontem para hoje. O filme eu assisti, não vi a peça ainda. Esse movimento das ocupações surgiu na Alemanha em dezembro de 1980, em Berlim, justamente para o poder público acelerar a questão da moradia. A repressão foi violenta. E estou vendo que até este ano, 2017, as ocupações continuam lá em Berlim. Ou seja, não é que se resolveu a situação, há mais de 40 anos Berlim se tornou uma espécie de símbolo das ocupações. Houve um período em que a cidade estava sob governo socialista e isso ajudou muito – os ocupantes normalmente são simpatizantes da esquerda. O movimento conseguiu bastante espaço, e não só na mídia.
E isso me chamou a atenção para uma ideia. No filme tem os imigrantes, os refugiados, e lá na Alemanha eles recebem muitos refugiados também. Penso se talvez não fosse interessante estabelecer uma ponte com aquilo que acontece na Alemanha até hoje. Vocês não precisariam explicar para eles, eles é que iniciaram e vão entender perfeitamente o que está acontecendo. Acredito que talvez os grupos artísticos participem, o filme pode ser muito bem-vindo e a peça também, embora seja localizada aqui. Penso num diálogo nessa esfera.
Beth Néspoli
Vocês falaram sobre A casa como se fosse um passado menor, mas eu acho tão importante perceber como a linguagem do grupo já estava lá. Assim como considero a linguagem do Siete grande hotel muito importante. Quando o real ali retratado chega na trajetória do grupo, a poesia já esta. Porque quando você fala do Guimarães Rosa, a prosa dele é muito mais do que conversa com um vaqueiro, é o modo como ele trabalha com o campo simbólico que está naquelas falas. É comum achar que Guimarães é só o trato com as palavras, a criação de palavras, mas é muito mais do que isso, é sobretudo essa ideia de que o sertão é tudo. É uma determinada cultura de relação com o lugar no qual se vive.
E quando em A casa vocês criam narrativas e imagens, já têm isso que ressurge em Siete, que conta a história do cara do seringal, do soldado, ali tem uma narrativa muito clara desse homem que foi enganado, explorado como se fosse um soldado da borracha. Então Siete começa com uma narrativa, uma história que você entende bem, mas também tem imagem, uma cena beckettiana dos dois soldados, uma imagem abstrata, e também n’A casa tinha isso. Você falou que era tudo bonitinho, mas não, tinha um matador cheio de armas e todo sujo de sangue que estava num cômodo. E também tinha cheiro de comida. O espectador transitava por esses ambientes, como acontece ali em Siete, reconhecia e olhava o chão daquela casa. Aquele personagem contava uma história e, ao mesmo tempo, você via aquele chão velho, gasto, e pensava quantas pessoas pisaram nele, o quanto de história havia ali. E tudo isso era pensado junto, ao mesmo tempo, vendo o espetáculo. Então vocês criaram uma estética, uma poética, uma linguagem que era do Redimunho. Essa molecada que você fala com desejo de fazer Guimarães Rosa que foi se impregnando e se contaminando com o sertão cria uma linguagem. E é essa linguagem que vai crescendo e vai para a rua em Tareias.
Já no hotel Cambridge, quando bate ali, é como se a linguagem trouxesse o real, mas ela não se dilui no real. E acho isso muito importante porque às vezes o teatro é militante, é cheio de boa intenção, mas fica ali numa aridez, numa violência que não se descola da realidade, que é um tipo de teatro muito feito no CPC [Centro Popular de Cultura nascido nos anos 1960 em aliança com a UNE, União Nacional dos Estudantes], com todos os desejos bacanas do mundo, mas que eu acho que não dava esse salto poético que vocês dão. Por outro lado, tinha isso de ir para a porta da fábrica falar com essas pessoas, os trabalhadores, querendo que eles se organizassem, e essas pessoas agora estão falando com a gente. Na Ocupação Cambridge eles não estão precisando em absoluto do nosso discurso de organização, eles estão muito bem, obrigada, sem nós. E aí sim vira um diálogo de iguais.
No filme da Eliane Caffé, quando eles, os militantes da ocupação, se referem aos artistas, falam que são pessoas que não têm comprometimento, que ficam fumando maconha, a imagem é negativa. É bacana porque vocês que vão lá mostrar que artista não é quem só fuma maconha, mas gente que trabalha muito e se compromete com trabalho. É um movimento de vocês nessa poética da realidade. Porque às vezes o ponto de partida é da realidade para a poética; o desejo da arte parte de quem está ali na militância tentando criar uma poética para falar daquilo. E vocês fazem o caminho oposto, da poética para a realidade, mas esse caminho oposto é muito importante porque era muito bacana aquele teatro [do início da trajetória do grupo], ele não precisava melhorar, acho eu, não do jeito que disseram ou que entendi. Ele, o teatro de vocês, muda porque o país muda, as urgências mudam e o desejo de diálogo muda, e vocês foram por esse caminho de mudança. Não poderiam ficar lá porque era uma outra época. Se vocês ficassem lá estaria errado, mas estar lá naquele momento tinha tudo a ver.
Rudifran Pompeu
Eu entendo o que você fala e tenho o maior carinho por aquele tempo. Mas quando começamos a questionar que as nossas coisas eram muito arrumadinhas e que estávamos alienados do mundo é porque passamos a conviver muito com os outros coletivos. Houve uma série de interlocuções, como a ocupação da Funarte em 2011. Começávamos a respirar o teatro na cidade. E esse questionamento passou a vir em 2011 no Marulho: o caminho do rio, tanto que o espetáculo é um grupo falando de si mesmo, em crise. Perdemos um ator fundador do grupo em 2010, que morreu de câncer [Carlos Landucci]. Ele fazia A casa, era o condutor. E daí veio tudo isso que você falou, de quantos caras não passaram nesse piso. E a grande questão era essa: “Que sentido tem as coisas se numa bobagem a gente morre aos 50 anos?”. Ele morreu com 47. E tudo isso vira texto, vira Marulho: o caminho do rio, e a gente começa a se questionar, mas também somos movidos por uma dor, uma sensação [contraditória] de vamos deixar isso pra lá.
Por outro lado, agora atrasamos muito a estreia de Siete grande hotel. Por conta da conjuntura política da cidade, eu tive que me afastar um pouco nos primeiros quatro meses. Minha cabeça não funcionava direito, os guris é que puxavam as coisas, o Rafa tocando a produção. Eu não conseguia verticalizar o conteúdo que estudávamos. Foi angustiante. E estamos mudando o texto até hoje. O texto final é uma carta porque até hoje a gente não terminou… O processo atropelou a gente em algum momento, e qual o caminho a fazer, é preciso resolver. O Rafa ainda esticou a estreia para o dia 10 [de setembro de 2017] e a gente tinha aprazado antes.
Rafael Ferro
Saindo do casarão e avançando nesse pensamento de começar a se envolver com o teatro na cidade, tínhamos sempre um cuidado de não deixar somente no discurso. Afinal, somos um grupo de teatro. Quando o Rudi começa a atuar mais politicamente – se é que tem isso –, havia também a preocupação em não virar um grupo que só faz política e que de teatro não tem nada. Então é bacana te ouvir nesse sentido de que o Redimunho fazendo traz o sertão, implícito ou explícito. É esse coletivo que se construiu lá atrás, só que com esse novo tempo, precisando falar dessas histórias, precisando desabafar ali e estar envolvido.
Um dos nortes de Siete grande hotel foi uma história que o Rudi trouxe do Grande Hotel da Beira, que era um hotel de Moçambique, luxuoso.
Rudifran Pompeu
Conhecido como “Orgulho da África”, na década de 1950, ele foi construído para que as pessoas nunca saíssem de dentro, construído pela elite negra. Tinha piscina olímpica, shopping, cassino, tinha tudo, a ideia era não sair de dentro, mas claro que não deu certo, faliu. O curioso é que esse hotel, ao longo dos anos, foi virando várias coisas, como prisão de preso político em algum momento. Hoje ele existe, mas é um escombro ocupado por um movimento de moradia. Só que a primeira coisa que as pessoas fizeram quando chegaram nesse hotel foi começar a vender a porta porque não tinha dinheiro para comer. Ou seja, o capitalismo autofágico: tenho casa, mas eu tiro a janela, tiro a porta, lavo roupa na piscina… É cheio de mato, não tem nenhuma segurança, muitas pessoas moram lá. É muita simbologia mesmo da força do capital, o hotel está se desmontando. Então a gente partiu dessa imagem, dessa história de Moçambique para pensar essa coisa da sociedade das portas fechadas e trazer como projeto simbólico nosso, de caminho, de norte.
Fizemos muito laboratório de cena durante o processo, a partir de improviso. O núcleo se reúne, um dirige o outro, tem uma atriz que anota todo dia tudo que fazemos. E a maioria dessas cenas não entra, mas às vezes uma ideia ou inquietação vira uma cena ou ganha enorme relevância na dramaturgia. Uma dessas cenas era sobre um cara que roubava santos, e isso está muito relacionado à fé das pessoas, de como são enganadas, se deixam enganar. E naquele número de mágica [jogo de adivinhações com a plateia por um mágico e ciceroneado por um velho cego que roubava santos de igreja], ele descobre tudo a respeito de você, ele só precisa de uma interlocução. E é pura técnica. Um número muito antigo, um clássico de mágica, popular, utilizado pelos trambiqueiros.
E se você olhar aquele quadro no fundo do cenário com um monte de santos roubados é tudo muito sincrético. Por que é um pouco isso, tudo tem picaretagem em todos os lugares, e se não estiver atento você é enganado. O que é o Congresso Nacional hoje? 90% dos deputados se apresentam como empresários. O Congresso tem dono. E a metade lá é evangélica. Os ruralistas conformam uma direita fortíssima. Ou seja, está tudo comprado, se quiser eles dominam tudo. E aquela passagem do espetáculo representa isso. Aquele cara tentando lidar com a coisa do roubo da fé, de achar que isso era uma forma de luta ao esperar que a plateia entendesse que podia ser enganada.
Rafael Ferro
E é construído à maneira como temos vivido, de como essa realidade violenta tem chegado para a gente, como chega para a ocupação ou como chega contra a mulher, os cidadãos que lutam por moradia no centro. Recebemos algumas pessoas daqueles andares da ocupação [durante as sessões]. São apenas 30 lugares por noite, então descem aos poucos para ver e é sempre muito emocionante ouvi-los. Do meio para o fim o espetáculo toca mais diretamente no que é você batalhar por um pedaço, por um metro de terra que só quem está na luta e quem batalha todo dia sabe. Estamos numa luta também todo dia. Hoje eles caminharam 23 quilômetros de São Bernardo até o Palácio dos Bandeirantes, então é uma realidade.
Rudifran Pompeu
As ocupações têm um procedimento. Por exemplo, quando ocupamos a Casa Amarela, um casarão que tem ali na rua da Consolação, foi um fracasso, fracassamos por nós mesmos [em 2014 artistas de vários coletivos, de distintas expressões, ocuparam o prédio do INSS rebatizado Ateliê Compartilhado]. Fomos estudar como é que se ocupa, fizemos um grupo de pessoas, de artistas, meti o pé no portão, tiramos o guarda, entramos, fechamos e botamos nossas bandeiras, nossos bonecões de teatro. Quando o cara entra, você precisa garantir a ocupação por pelo menos 48 horas, depois disso a polícia não pode fazer nada, tem que impedir a polícia de entrar nesse tempo. Por isso às vezes as ocupações são feitas simultaneamente em mais de um lugar, três ao mesmo tempo. Ocupa e garante.
Lá na Casa Amarela fizemos uma ocupação cultural muito buscando inspiração nos países do leste europeu, uns caras pintando, outros filmando. Mas o que é um monte de gente dentro de uma casa? Não aguentamos, não. Quase nos matamos ali. A Cooperativa Paulista de Teatro tocou aqui ali, na época da minha gestão, chamamos alguns coletivos, companheiros nossos, porque tinha um projeto dentro da cooperativa de ocupação de espaços ociosos. E havia certa interlocução porque era o governo Dilma [Rousseff], o Haddad na prefeitura, então, se não for agora, não vai mais. E organizamos a ocupação durante meses.
Seguindo a toada do momento brasileiro esses campos sociais, políticos e artísticos devem estar cada vez mais imbricados. (…) são experiências nas quais a maioria dos coletivos se põe de braços dados diante dessas questões sem perder a relevância da dimensão artística, da pesquisa poética (Valmir Santos)
Entramos lá, sabíamos que era do INSS, fui a Brasília, Marta [Suplicy] era ministra da Cultura, ela conhecia essa casa. Mapeamos, fotografamos e fomos pedir para que ela entrasse em contato com o José Eduardo Cardoso [então ministro da Justiça] e pedisse para a Polícia Federal não prender a gente porque tem a ver com sua pasta, é o povo da cultura lá. Então era uma coisa meio que organizada. O ministro da Previdência era o Garibaldo Alves Filho. O casarão não tinha nada, era mantido por uma empresa terceirizada, paga por nós, pela União. Com vazamento de água que os caras não arrumavam. Chegamos lá e organizamos o negócio. Quando a Polícia Federal chegou, eu já tinha o telefone do ministro da Justiça: “Então você fala aqui com o seu chefe”, disse ao agente. “Essa ocupação é uma ocupação consentida…”. Os caras chegaram com uns carros bonitos, fizeram o que tinham que fazer, foram embora e ficamos lá quase um ano.
Só que nesse um ano a articulação se desmontou por inteiro porque era muito difícil. O povo do teatro ensaiando, aí outro ficava puto por causa do barulho, começou a dar muita disputa interna. Eu me retirei, todo mundo se retirou. Hoje tem lá o pessoal do Anhangabaroots, do reggae, do movimento negro. Durante um tempo conseguimos, mas por isso que ocupação é uma coisa que tem que ter controle, não é democratismo, tem que ter uma organização. A primeira regra para se ocupar um lugar é se dar bem com os seus vizinhos, porque eles é que podem te tirar dali. Barulhos, alfaia [tambor], maconha, e não conseguimos controlar isso. Aconteciam umas plenárias enormes, conseguimos 1 milhão de reais para restaurar a casa através de uma emenda, conseguimos apoio do Juca [Ferreira], que era secretário de Cultura na época, para que aquilo virasse um equipamento cultural mesmo, mas a gente se desmontou por nós mesmos.
Wanderley Costa Lima
Eu dei aula e um dos meus alunos está fazendo Direito, ele morava ali e foi participar de uma ocupação. Era interessante porque ele fazia um curso regular, mas a função social dele era manter a ocupação e partir para outras ocupações no centro da cidade. E foi ali que eu comecei a ter uma informação melhor sobre o movimento, eu perguntava a ele, que dizia os diversos movimentos ao quais ele pertencia. Eu imaginava que era tudo um só. E ele explicava que tem o movimento A, B, C, D, esse pensa de um jeito, esse pensa de outro, e ele foi me explicando como é que funcionava, isso das 48 horas. Ele levava uma vida normal, fazia o curso, mas não deixava de lado uma espécie de ideal social. E foi uma experiência interessante com ele, e naturalmente os outros colegas de sala foram se interessando. Como resultado estabeleceu-se um pequeno núcleo. Não acompanhei mais, mas foi muito legal.
Valmir Santos
Seguindo a toada do momento brasileiro esses campos sociais, políticos e artísticos devem estar cada vez mais imbricados. A partir da experiência de vocês, lembro da Cia. Mungunzá, ali na região da Cracolândia, e o modo como eles ocuparam o terreno e ergueram o Teatro de Contêiner. Os artistas se apropriaram, ergueram o espaço, elaboraram uma programação continuada com múltiplas linguagens, negociaram com autoridades do Executivo e do Legislativo municipais e, sobretudo, tornaram-se parceiros dos movimentos sociais do pedaço e do entorno. Aliados para quando vier alguma ação policial, são chamados para ficar na linha de frente das manifestações porque são brancos, falam de uma forma mais articulada e os policiais os veem de outra forma. E a experiência criativa deles vai trabalhar a partir dessas questões da realidade urgente, daquela precariedade social e política, do clima de insegurança, etc. Também podemos pensar no Pessoal do Faroeste, que estão há muito tempo na Luz, mas que sempre firmaram uma relação com as forças sociais do lugar.
E existem experiências mais pontuais, como a troca da Cia. do Latão com o MST em Sorocaba no espetáculo O círculo de giz caucasiano, em que eles realizaram um experimento em vídeo que acabou sendo incorporando à cena. E assim sucessivamente. Como o Caetano ontem sendo proibido de se apresentar e dizendo que foi efetivamente uma censura o que aconteceu, pois se está precisando cantar mais do que nunca. No contexto do teatro, são experiências nas quais a maioria dos coletivos se põe de braços dados diante dessas questões sem perder a relevância da dimensão artística, da pesquisa poética.
Rudifran Pompeu
Sobre aqueles meninos da Mungunzá, ali era o terreno do Instituto Lula, o primeiro. Era um posto de gasolina e precisava fazer a higienização do solo, daí não puderam fazer o instituto ali, mas já era uma área cobiçada. E quando a Mungunzá chega ali, a cooperativa acionou aquilo e eles fizeram um negócio genial, os containeres vieram de Santos, eles manjam tudo de tecnologia, drones e tal. Na montagem dos containeres eles colocaram macacão, capacete e fizeram numa madrugada de sábado para domingo, filmaram a si mesmos fazendo essa obra, é lindo. Era uma ação. É esse tipo de ação que tem que fazer. No dia seguinte tinha o teatro montado. Genial aquilo.
Valmir Santos
E existem limites para essa relação direta com as realidades sociopolíticas? Por exemplo, naquela cena do Sarandi com o Velho, no vão externo do Cambridge, em que o público vê as fachadas dos prédios ao olhar para o alto, sente o cheiro, a insalubridade daquele local como que impregna na pele, e lá pelas tantas avistamos a bandeira da Frente de Luta por Moradia, personagens armados e tal. A representação é bastante realista. Essas escolhas estão imbuídas da decisão de demarcar um terreno em relação a essa ação social? Vemos claramente o movimento posto em cena, em luta, concomitante à arte que acontece no mesmo espaço. E aparece uma criança de uma das famílias ocupantes, e vocês conversam com ela e explicam que não terá acesso ao próximo quarto narrativo, e isso nos lembra das polêmicas de censura nos museus do país. O espectador vai editando tudo isso…
Rudifran Pompeu
Dentro da ocupação, tem que entender que também existem evangélicos entre as famílias. Por exemplo, eles pediram para parar de falar palavrão em cena. E dentro da ocupação você tem as disputas também, disputas internas daquele lugar. As crianças adoram e mandam naquele trem. Não foi nem por causa do MAM, acho que isso só reforçou essa preocupação. Mas como tem cena de nudez, muito sangue, é inapropriado. E outra, elas ficam meio que fugindo dos pais, mas ali é a área delas. Descem para pegar as bicicletas, por exemplo, e de certa forma atrapalhamos um pouco na hora da cena, mas elas curtem. Queremos fazer uma apresentação para elas, para que possam assistir acompanhadas dos pais.
No final do espetáculo, quando se lê uma carta e nos misturamos à ocupação, acho que o trabalho artístico fortalece ainda mais o sentido para aquelas pessoas tão importantes quanto qualquer cidadão dessa metrópole, desse país. Quando eles se identificam com aquilo, aí fortalece os caras, no sentido de que não estamos sozinhos. É um pouco isso. Quando se fala da ocupação, do lugar deles, eles se fortalecem. E acho que é aí que nos damos as mãos de verdade.
É um lugar inóspito, sujo e inapropriado para uma série de coisas, mas foi proposital fazer ali. E a Eliane Caffé também, quando idealiza o cartaz do filme com aquele vão, é isso: você estar meio que encaixotado naquele lugar, e resistindo. Lá não tem elevador [15 andares, 241 quartos]. Não é fácil a vida deles. Às vezes você vê as pessoas chegando e percebe no corpo delas o cansaço. É muito difícil a vida na ocupação. É bonita no filme, na apresentação teatral, mas é uma vida extremamente difícil, de muita luta, é o cara ali trabalhando o dia inteiro, e tem dias em que a água é cortada. Por exemplo, puxamos toda a iluminação do nosso espaço, por uma questão de segurança, para não usar o cabeamento deles. Então é tudo muito precário.
Valmir Santos
Pensando em vivência, lembro que em BR-3 [2006], do Vertigem, no rio Tietê, o público era levado a esse ambiente fétido da cidade e experimentava uma convivência. Lá, havia momentos em que o espetáculo ficava em segundo plano em função do rio protagonista. E no Siete grande hotel eu fiquei com essa sensação, de estar sendo introduzido a um lugar evidentemente oculto, não visto. Veio-me uma ideia de outra cidade, da periculosidade, de insalubridade, de ser e estar cidadão nos mais diferentes territórios de São Paulo hoje. De qualquer modo é uma vivência que transporta, por conta daquela arquitetura da edificação, do cheiro, das crianças assistindo a uma das cenas, ao mesmo tempo brincando, e do pessoal nas janelas do velho hotel, coparticipantes diretos e indiretos. O espectador, confundimos, no bom sentido, o que é e o que não é, quem são tais personagens falando, tal arma, tal bandeira…
Beth Néspoli
E ao mesmo tempo é um teatro político que não fala em nome do outro. Eles, as pessoas da ocupação, estão ali, fazem parte do teatro de vocês, mas vocês não estão falando por eles porque eles não precisam da voz de vocês, eles são atuantes, eles têm voz própria. É uma troca.
Nas discussões internas, sempre vinha isso, da cena dos soldados não ter esse caráter de drama, porque é guerra, é triste. Mas a gente nunca vai conseguir traduzir o que é a guerra de verdade. Não entendemos o que é essa dor, mas tentamos refletir a partir dela. Por exemplo, em algum momento o Cambridge será esvaziado para a reforma total do prédio, e isso obviamente terá impacto sobre a vida das pessoas sem teto.
Foi estabelecida uma relação tão boa com a ocupação que ela nos revelou os outros vizinhos, desde o bar para pedir permuta até pensar uma programação comum com o centro de candomblé do outro lado da calçada. Uma hora a temporada da peça vai acabar e eles vão ficar ali. A ocupação abriu as portas para a gente. Em algum momento elas vão se fechar, como diz o título, mas acho que essa ação abriu outras.
Em visita aos colegas da Velha Companhia, que fizeram residência artística no [Instituto] Capobianco [mantenedor do Teatro da Memória no número 97 da mesma rua Álvaro de Carvalho], pensamos em juntar o Rudi e o Kiko [Marques, diretor], mais os dois elencos, e criar uma peça. Levei os artistas dessa companhia para visitar a ocupação. Eles entraram nos apartamentos, tomaram café e ficaram muito emocionados. A Fernanda [Capobianco, gestora] até brincou que vamos abrir [uma passagem] do teatro do instituto para o Espaço Redimunho e do Redimunho para a Ocupação Cambridge. E encenaríamos um espetáculo em torno dessa história. De nossa parte a ideia é que isso se estabeleça, é no que acreditamos e nos fortalece.
Wanderley Costa Lima
Isso que você falou, de que daqui a algum tempo haverá a reforma completa do antigo hotel, fazer o espetáculo então é preservar a memória para que os que vierem depois não pensarem que chegamos a esse estágio do nada, pois teve luta, teve resgate. E nada melhor do que a arte para fazer isso, porque às vezes nem mesmo os arquivos dão conta.
Rafael Ferro
As pessoas do movimento por moradia relatam que o filme da Eliane Caffé tem sido exibido em boa parte das capitais e que os participantes das ocupações pelo Brasil têm ido ao cinema. Inclusive gente que nunca pisou numa sala de cinema. Nos debates que acontecem após a sessão algumas pessoas saem chorando. Foi durante a filmagem no Cambridge que os ocupantes receberam a notícia de que estão com a escritura, que é do movimento. Isso é muito emblemático para as demais ocupações do centro da cidade: “Olha, é possível”. As cem famílias que vão ficar, não são todas, os apartamentos serão delas. Outras vão sendo alocadas nas demais frentes até conseguirem a moradia definitiva.
Wanderley Costa Lima
Por falar em memória, uma memória e experiência pessoal minha. No filme, na cena final, eles estão ocupando um prédio da avenida São João que está desocupado. E é um negócio muito louco porque em 1973 eu trabalhava como estagiário num escritório na rua 24 de Maio e eu vi aquele edifício ser construído. Foi exatamente no período em que eu trabalhei. E eu fui lá perguntar o que eles iam fazer ali, ninguém jamais soube me dizer nada e aquele edifício nunca foi ocupado, nunca foi nada. Até hoje. Sei disso porque sempre o observava. Aquele edifício foi construído pra quê?
Jandilson Vieira – assistente de direção e ator
O processo do Redimunho é todo muito misturado. Estamos falando de uma realidade, ao mesmo tempo de uma literatura do Guimarães, que nos inspira também a ir para a cena, a desenvolver esse processo por meio de diversos olhares. É preciso ter esse olhar para o todo. Quando você vai à cena, você pensa o espaço onde está, como se colocar nele, qual pele vai vestir, qual a palavra que você vai saborear. O processo de afinação desse resultado é feito através do olhar da direção do Rudi, dos figurinos da Keyth Pracanico [Jandilson é cocriador], da cenografia do grupo, e assim por diante.
Quando estou fazendo a cena do Velho Cego, penso no que as pessoas acreditam. Ele quer desconstruir um pensamento. Quando você rouba uma santa, muitos podem chamá-lo de ladrão, mas ao mesmo tempo o sujeito precisa daquela imagem para dizer que ele acredita em algo. Ao tirar isso e colocar uma cena de adivinhação, você está se questionando a todo momento como que aquilo é feito. Eu estou tirando de vocês aquilo que vocês acreditam, porque a cena está propondo isso: “No que você acredita?”. E aí você quer descobrir o que é aquilo. E tem coisa que até hoje a gente acredita, mas desconfia. As histórias que os colonizadores nos contaram, por exemplo, queremos desconstruí-las nesse momento. Isso vem nas nossas rodas de discussão, do personagem do soldado sendo feito por todos no elenco, trazendo propostas para a cena.
Eu venho do Marulho, quando entro no grupo, em 2009, depois atuei em Tareias, que também prevê esse lugar de ocupação. Certa vez, ocupamos aquele vão da praça Ramos de Azevedo [passagem subterrânea] e do nada descobrimos uma passagem que cai dentro de um museu do Theatro Municipal, um lugar público, mas vazio, que está fechado, abandonado, sem uso. Esses espaços nos inspiram nas criações.
Beth Néspoli
Nessa história de que, para o Guimarães Rosa, “o sertão é do tamanho do mundo” ou “está em toda parte”, não são só frases de efeito: é tudo mesmo. Não tem essa separação do homem em relação ao animal ou à pedra. Tudo é sertão, e tudo fala. Tudo é expressivo. Portanto, vocês demonstram isso por meio da linguagem, daí um objeto ser tão expressivo quanto uma palavra.
Rafael Ferro
Quanto às características sertanejas todas que o casarão tinha, no início do grupo, hoje eu entendo que também construímos nosso sertão naquele subterrâneo do Cambridge. Quando fizemos o Tareias, tinha essa questão, porque não somos um grupo de rua, mas descobrimos que precisávamos levar a nossa poesia sertaneja para a rua. E no Tareias me caiu essa ficha, de fato, de levar o nosso teatro para a rua. Então se criou essa ideia, também um pouco presente em Siete, dos nichos de cenas percorridos pelo público como num cortejo de rua.
Rudifran Pompeu
O Teatro da Vertigem já havia usado aquela passagem subterrânea da rua Xavier de Toledo, o que também nos despertou: “Será que aquele lugar está sendo usado?”. O Rafa foi atrás, mas ali também é um lugar inóspito porque os caras usam como banheiro. Como é que se ensaiava ali? Trabalhávamos para limpar com as mangueiras. Chegávamos e limpávamos. Quando descobrimos essa outra passagem que dava para o museu, o Juca Ferreira era secretário, então entrei em contato com ele porque o grupo só precisava de um ponto de luz. E aquele espaço enorme, usado para nada, guardando cenários de filme… E não tivemos autorização, mas fizemos de propósito, limpamos e fizemos as cenas ali. Depois que estreou, que saiu na Folha, aí não tinha mais como parar uma peça. “Você vai parar, Juca Ferreira, uma peça de teatro que está aí na cidade?”, perguntei a ele. E aí você vai cavando lugares. Hoje está fechado, lacrado com aqueles tijolos de alvenaria.
Rafael Ferro
Um momento bem emblemático de Tareias na rua era aquele em que todas as personagens, as atrizes, tinham uma faca numa parte do figurino e, portanto, andavam armadas. Assim que acabava a cena do balanço, eu ia lá e tirava a atriz. Uma menina passou e pediu para subir e eu disse que não podia, porque ao mesmo tempo um ator já estava lá em cima recolhendo. Desmontávamos o balanço em um minuto, mas foi o tempo de eu dizer que não podia e essa menina [espectadora] ficou puta. Em outra cena, já na rua Formosa, ela passou do outro lado com uma faca, e foi um encontro de olhares. Na hora você gela, imagina levar uma facada na rua. E as mulheres da apresentação também estavam com suas facas, como a menina que nos acompanhava. E ao longo de um ano de temporada, só se via violência. Iniciamos em 2011 com um dado de que de dez a 12 mulheres eram assassinadas por dia no Brasil. Acabamos em 2015 com a Secretaria de Proteção da Mulher, que já não existe mais nessa gestão [João] Dória, atualizando que são de 13 a 15 mulheres mortas por dia.
Rudifran Pompeu
A gente se mistura com as coisas, assim como a realidade e a ficção em Siete grande hotel. Quando tem mutirão, por exemplo. Outro dia tivemos de limpar tudo lá embaixo [do prédio da ocupação] porque estourou um esgoto, isso antes de estrear. E quando você vê está dentro daquilo, realmente vivendo aquele troço. Antes da estreia, o [teórico polonês Michal] Kobialka estava em São Paulo, deu uma passada no espaço e disse que eu não precisava cenografar nada…
Espectadora não identificada
Eu queria saber um pouco do público, se vocês têm um retorno. O que tem naquele caderno dourado? [Risos]
Rudifran Pompeu
É uma prática que temos feito desde A casa, um caderno para o público escrever. Temos um material enorme. Já li registros do tipo: “A peça é bacana, mas o texto é ruim”. Eu ainda não li o caderno atual, ele desaparece muito rápido.
Aliás, eu estava com muito receio antes da estreia. Havia o atraso, uma agonia só. Ficava discutindo com meus companheiros de teatro, eu precisava de mais ensaios, sentia que não rolava o negócio e eu estava com muito medo desse lugar. Usando dinheiro público, 14 meses trabalhando, eu me perguntava se resultaria apresentar algo que não proporcionaria nada às pessoas, ainda mais sendo 30 pessoas por sessão.
Peguei pesado na primeira cena, ensaiando praticamente um mês só com os atores dela. Ninguém aguentava, mas era o que eu queria provocar, esse buraco entre uma coisa e outra, esse vazio. Não quero fazer peça para agradar. Então eu estava preocupado com o retorno do público, porque faço para ele, esse compromisso é importante. Às vezes tem plateia hostil. Eu não gosto que encoste na plateia, sempre falei aos meus atores. E no livro, são poucos os comentários hostis. Eu tenho recebido retornos bacanas, as pessoas mandam mensagens. Tem o aspecto da estética que as pessoas falam muito, não exatamente a narrativa, do que está sendo dito, mas o percurso, a condução do olhar sobre aquela parede cheia de coisinhas, a exaustão dos detalhes. E isso acaba reverberando numa discussão muito mais ampliada, mais profunda sobre o espetáculo.
Beth Néspoli
Na cena da mágica eu não fiquei tentando adivinhar como é que o personagem fazia aquilo, obviamente é um truque, mas não consegui fazer toda essa relação que você comentou há pouco. Era quase como se entrasse numa coisa de mágica mesmo. Mas, para mim, ela destoava em relação ao espetáculo. E, no espetáculo, você não precisa necessariamente se relacionar com todas as cenas. Mas aquela cena, da mágica, me tirava um pouco dali. Também tive a sensação de que a parte dos santos se alongou para além do que ela podia expressar ou dizer.
Valmir Santos
Um aspecto ainda não abordado é a parte musical. Essa musicalidade, o convite para os cantores [Alexandre Mello e Neide Nell], essa banda fantasmagórica e o uso do espanhol, como vocês amarram?
Rudifran Pompeu
Pesquisamos em torno da cultura latino-americana, como os ritmos cubanos. Tem a ver com o massacre que os povos latinos têm sofrido nos últimos tempos, como na “República de Bananas” em que vivemos. Aí começamos a brincar um pouco com trazer referências da música que fossem desses lugares. Nossos processos criativos sempre tentam trazer uma música que não tenha referência em outro lugar. E nesse caso o procedimento mudou: eu queria ouvir muita coisa cubana, paraguaia. Essa sonoridade estava de acordo com aquele hotel meio mofado, semi-abandonado, com disputas internas. O elenco então começou a pesquisar, a brincar com os instrumentos. São quatro músicas. Apenas uma é autoral, Sangre, a primeira que é tocada e cantada. As outras são compiladas. O diretor musical [Luis Aranha] está em cena também. A Neide, a cantora, tem uma banda com muitos atores, chamada Poema Novo. Eu a convidei pela voz e pela presença negra que tem a ver com as cubanas.
Rafael Ferro
Tem uma coisa no Redimunho que o ator, quando ele vai propor, precisa pensar em tudo: na luz, no figurino, na cena estruturada. Já tem uma proposta de dramaturgia, já tem um texto? Ele pensa inclusive na música. A gira da criação é muito bacana. A construção desse percurso até o espetáculo se dá em várias instâncias, um vai contribuindo, ajudando no figurino do outro.
Beth Néspoli
Não sei se vocês pensaram nisso, mas o espetáculo traz vários graus ou estágios de rebelião ou de revolta. Isso foi pensado, essa sensação de alguém que está num grau de revolta que é físico, não se organiza ainda coletivamente, mas está quase a ponto de explodir?
Rudifran Pompeu
Eu sempre dizia isso aos atores, essas pessoas estão se preparando para uma guerra e a guerra já está dada. O último quarto é como se fosse a porta da rua, quando saímos com as armas para guerrear com o que está lá fora. Então essa motivação foi o tempo todo alimentada durante a pesquisa e os ensaios, tanto que na cena final cogitamos fazer a polícia chegando e o bando correndo para a rua. Realmente, sempre tem um estado de guerra, de tensão, que é como hoje eu me sinto e quase todos os artistas dessa cidade estão se sentindo. Hoje é assim. Não é possível mais que ficar calado, eu não aguento mais discurso pacifista. Não vou andar armado, bater nas pessoas, mas não dá mais para suportar artista ser preso. Estamos sofrendo isso todo dia, sendo cerceados de alguma maneira ou de outra. O espetáculo está trazendo um pouco essa coisa porque ele pega um pedaço pesado disso durante o seu processo.
.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de Siete grande hotel: a sociedade das portas fechadas
.:. Leia a íntegra de outras edições do Encontro com o Espectador, desde junho de 2016
.:. Visite o site do Grupo Redimunho de Investigação Teatral
Serviço:
Siete grande hotel: a sociedade das portas fechadas
Onde: Espaço Redimunho de Teatro (rua Álvaro de Carvalho, 75, Anhangabaú, próximo à estação do metrô, tel. 11 3101-9645)
Quando: Nova temporada a partir de 8/4. Domingo, às 19h, e segunda, às 20h. Até 30/7
Quanto: Pague quanto puder. A bilheteria abre uma hora antes
Duração: 140 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
40 lugares
Equipe de criação:
Texto e direção: Rudifran Pompeu
Assistência de direção: Jandilson Vieira
Com: Edmilson Cordeiro Cortez, Carlos Mendes, Keyth Pracanico, Jandilson Vieira, Giovanna Galdi, Vitor Rodrá, Anisio Clementino, Marcus Martins, Danilo Amaral, Cinira Augusto, Ricardo Saldaña, Juliana Lopes, Wilton Andrade, Thayna Carvalho, Bruna Aragão e Wagner Morgani
Direção musical: Luis Aranha
Cantores convidados: Alexandre Mello e Neide Nell
Artista colaborador: Leandro D’errico
Concepção da cena de telepatia: Marcus Martins
Preparação vocal: Ana Terra Ikeda | Iluminação: Rudifran Pompeu
Figurinos: Jandilson Vieira e Keyth Pracanico
Cenografia: Grupo Redimunho
Fotografia: Kátia Kuwabara
Vídeos: Fuzuê Filmes (Edu Luz e Cibele Appes)
Programação visual e site: Danilo Amaral
Pesquisa e consultoria literária: Ivan Forneron
Produção e comunicação: Rafael Ferro
Realização: Grupo Redimunho de Investigação Teatral
Projeto contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo