Crítica
A noite de Ano-Novo, momento tomado pela maioria de nós como o espaço imaginário de uma passagem, pode perfeitamente ser vista como metáfora que ganha significados além dos usuais na nova montagem d’Os Satyros, O incrível mundo dos baldios. O espetáculo sintoniza de fato algo em plena transição que, no entanto, é mais que a mera mudança no calendário. É a mudança nas formas de percepção a respeito dos sujeitos e seus lugares sociais, suas circunstâncias de existência e as maneiras como eles e elas as constituem e as habitam. A problematização desse universo, em chave poética, é a tarefa que o espetáculo e seus criadores elegem para si. Ou melhor, vêm elegendo há uns bons anos. O próprio grupo é um dos exemplos mais firmes entre os que, no teatro, vêm observando esse movimento e transformando-o em matéria de trabalho e reflexão artística.
De como a companhia informa e sintetiza precisamente o roteiro: em uma noite de Ano-Novo, um anjo circula pelo planeta Terra. Um peregrino busca atender às promessas de pessoas que esperam por milagres para suas vidas. Cinco lugares distintos propiciam os encontros das outras personagens. Em uma casa de repouso, uma voluntária dá banho em um velho palhaço adoentado. Em um ponto de ônibus, uma cantora maranhense conhece dois verdureiros evangélicos. Na quebrada, um segurança faz um plano com um amigo para enriquecer rapidamente. Em um cruzeiro, uma advogada bem-sucedida vive seus últimos momentos ao lado de uma médica e um amigo. Em uma área de fumantes de um clube, uma refugiada palestina conhece um adolescente perdido.
A nova montagem da Cia. de Teatro Os Satyros alinha-se a um esforço recorrente nas últimas décadas. Senão para todos, para muitos: o de aprendermos a fazer das micropolíticas parte sistemática, cotidiana, da grande política
Em cena, na pequena sala do teatro Satyros 1, os quadros são costurados sobre o bastidor de uma narrativa conduzida pelo Peregrino (Ivam Cabral) e pontuada pelo Anjo (Henrique Mello), alegoria que conduz parte das considerações filosóficas, oportunizadas a partir das ações. Os dois personagens – especialmente o de Cabral – têm várias funções na tessitura dramática. São a um só tempo os guardadores de milagres, os cerzidores dos dramas alheios e os responsáveis por colher e cuidar das diversas formas de manifestação da esperança, quando ela está lá.
A estrutura narrativa é a de fragmentos independentes. No entanto isso não impede que haja pontos de contato entre as células dramáticas. Não há ligação objetiva entre elas, mas as reverberações podem ser intuídas nos sentidos subliminares que as agregam poeticamente. Da expectativa do velho palhaço que sonha reencontrar seu público à da mulher palestina que reconhece a terra nova no momento em que cruza com um jovem que se perdeu em si, a dramaturgia, a despeito da forma deliberadamente quebrada, tem recorrências concêntricas no plano de pensamento: a busca por reconstituir o chão da existência ou abrir mão dele (a cena da advogada que decide morrer). Em qualquer caso o lugar de margem onde todas as situações acontecem define não só o ponto de vista dramatúrgico como também as tomadas de posição – estéticas e políticas – que podem ser lidas no decorrer da representação. O tratamento cênico em que prevalece o tom compassivo nos diz, por exemplo, da inegociável empatia do grupo em relação ao que se representa.
Esta relação de compassividade é uma faca de dois gumes, e então o espetáculo nos coloca uma condição ética para que possa ser acompanhado em todas as suas frentes e também nos seus efeitos. Se o acompanharmos sob uma expectativa estritamente formalista pode-se dizer que a potência cênica segue baixa porque há pouco espaço de tensionamento para o olhar de quem testemunha aqueles relatos. Diante da justeza e da justiça das causas é muito difícil não concordar com os juízos que saltam do palco. As cenas, se vistas a olho nu, são bonitas, e a reflexão que se lê nelas é da maior importância. Mas isso não bastaria para dar interesse teatral a elas.
O que dimensiona o teatro neste trabalho d’Os Satyros, e que não pode ser dissociado do resultado, é a sua dimensão performativa. A arte é feita de contextos e se às vezes eles podem ser dispensados no resultado final, em outras eles são indissociáveis da fatura estética. Aqui, o fato de os relatos terem sido colhidos nas histórias de vida de parte do elenco é algo essencial. É quando cultiva-se a dramaticidade em via dupla: de dentro para fora da cena, mas também, antes, de fora para dentro. Saber que aquelas são histórias aproximadamente vividas por aquelas pessoas tensiona o teatro e certamente pode lançar o compassivo em movimento de produtividade política. Porque a compaixão, em si, move pouco e em geral serve mais à testemunha que ao próprio sujeito que é objeto dela. Mas o relato encarnado interessa muito, é carregado de razões que a experiência respalda e amplifica mesmo se estilizada ou parcialmente ficcionalizada pelas necessidades de expressão da linguagem.
Encenação
Rodolfo García Vázquez é um diretor com vocação sempre reafirmada para a invenção de imagens belas, muitas vezes a partir de materiais ordinários e conjugando com sensibilidade singular os vários elementos da cena. São sua marca os arranjos em que a colaboração com outros criadores, quando é o caso, e o diálogo entre marcação, luz e cenografia saltam surpreendentes. Desde espetáculos dos anos 1990 e 2000, como A filosofia na alcova (1993/2003/2015, com Ivam Cabral) e De profundis (1993/2002), Transex (2004), Cosmogonia – experimento nº 1e A vida na Praça Roosevelt (2005) até os atuais, há essa disposição para o trabalho imagético através do qual o verbo é levado a traduções visuais que despertam grande interesse. Em Baldios a mise-en-scène é mais discreta, talvez pela decisão por centrar força na própria fábula e nos relatos. Uma escolha, pois. Que de todo modo ganha no recurso do vídeo (sob assinatura de Henrique Mello) uma compensação sintética, mas de bom efeito. É uma videocenografia, que estende-se como colaboração importante à dramaturgia.
Ao núcleo duro do grupo, em cena, são incorporados entre outros Roberto Francisco (que vive o velho palhaço), Oula al-Saghir (refugiada palestina), Alex de Jesus (um segurança que cai no conto do bilhete premiado), Junior Mazzine (jovem que esquece parte da própria história) e Márcia Dailyn (cantora). Além destes completam o elenco Julia Bobrow, Robson Catalunha, Fabio Penna, Lorena Garrido, Juliana Alonso, Gustavo Ferreira e Sabrina Denobile. Entre veteranos, novos e os novíssimos que o grupo agrega não há na montagem nenhuma complacência no sentido de facilitar a tarefa artística. Todos têm momentos nos quais são solicitados como intérpretes inteiros. O que, pelas circunstâncias, talvez seja a melhor forma de respeito pelo outro – fazer na própria prática da cena o exercício da alteridade. Para um grupo que já levou Foucault e tem parentesco com Artaud, o melhor diálogo ético-artístico para uma iniciação no teatro não poderia ser outro senão batizar os novos na fogueira da cena.
O incrível mundo dos baldios alinha-se a um esforço recorrente nas últimas décadas. Senão para todos, para muitos: o de aprendermos a fazer das micropolíticas parte sistemática, cotidiana, da grande política. Por muito tempo, e não sem motivo, por força das circunstâncias históricas, muitas das pessoas com vocação para alguma das formas do humanismo viam na política um espaço impróprio para o exercício da alteridade, ao menos quanto à sua sintonia fina, naquele ponto que para ser alcançado pede que desçamos e reconheçamos o mais particular de cada um. O cada um/cada uma também pertence a alguma das coordenadas de classe, claro, mas constitui-se, antes (ou depois, tanto faz), com autonomia. O comum tem subjetividade, era esse o chamado. Era necessário então aprendermos que as grandes questões da vida nacional e a discussão sobre a vida coletiva, deste ou daquele lado, não poderiam dispensar o olhar sobre as bordas dos blocos, sobre as suas ranhuras, os “entre”, o marginal, o fora da ordem. Que não é apenas um lugar de classe, embora também o seja.
A percepção da sociedade sobre o que nos constitui mais essencialmente ganhou então espaço notável nesses anos, com a inserção no debate de causas antes consideradas laterais: as questões de gênero, raça, a pauta sobre as subjetividades não normatizadas, as sexualidades não binárias, sobre o espaço do estrangeiro na sociabilidade, etc. Hoje as micropolíticas são um dos nervos fundamentais da discussão a respeito dos caminhos do país. O lugar, as necessidades, as questões de representação dos negros e negras, gays, pessoas trans e indígenas são parte do conjunto das preocupações sociais, como nunca antes. No Brasil polarizado de agora são pontos angulares da discussão para qualquer governo, assim como acendem paixões de um lado a outro nos blocos em disputa.
Os baldios, nos sentidos em que são representados no espetáculo, já não são elementos acidentais na discussão. Aquela posição lateral está em processo de desnaturalização. Um processo, como sabemos, não pacífico. Pelo contrário, trata-se de um chamado ao enfrentamento. Daí a importância deste trabalho dos Satyros. Porque o fato de a discussão subir à pauta da sociedade não quer dizer que a justiça chegou. Assim, a problemática das micropolíticas encontra a questão maior, que lhe dá contorno, a que se irmana ou a que esteve irmanada desde sempre: a desigualdade. Por isso o teatro humanista deve mesmo tomá-la, dimensionar as histórias dessas pessoas, os seus dramas, alegrias, perspectivas ou becos sem saída. Fazer viver os marginais do processo, tematizar suas angústias e descobertas, e torná-las algo não mais acidental, é tomar posição no debate. Porque o ponto de vista assumido lança valor, nos diz: “Veja, para nós a margem é o centro”. A notícia que o Satyros nos traz, em teatro, é esta. Na verdade, como se disse, uma notícia reafirmada em militância de longa data, agora renovada nas novas paisagens humanas que sobem e ganham voz sobre as tábuas.
.:. Leia a crítica de Beth Néspoli a Cabaret peripatético, da Cia. de Teatro Os Satyros
.:. Visite o site da Cia. de Teatro Os Satyros
Serviço:
Quando: Sexta e sábado, às 21h30; domingo, às 19h30. Até 26/8/2018
Onde: Satyros Um (Praça Roosevelt, 214, Consolação, tel. 11 3258 6345)
Quanto: R$ 5 a R$ 20
Duração: 85 minutos
https://www.facebook.com/ossatyros/videos/2110684252282029/
Equipe de criação:
O incrível mundo dos baldios
Texto: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Direção: Rodolfo García Vázquez
Assistência de direção: Emílio Rogê
Com: Henrique Mello (Anjo), Ivam Cabral (Peregrino), Roberto Francisco (Palhaço), Julia Bobrow (Voluntária), Junior Mazzine (Segurança), Robson Catalunha (Amigo), Oula al-Saghir (Palestina), Alex de Jesus (Adolescente), Fabio Penna (Assistente), Lorena Garrido (Médica), Juliana Alonso (Advogada), Márcia Dailyn (Cantora), Gustavo Ferreira (Evangélico) e Sabrina Denobile (Evangélica)
Cenografia: Daniela Oliveira e Victor Paula
Design de aparência: Adriana Vaz e Rogerio Romualdo
Iluminação: Flávio Duarte e Rodolfo García Vázquez
Trilha sonora: Henrique Mello, Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Dramaturgia sonora: Maestro Marcello Amalfi
Vídeo e programação visual: Henrique Mello
Operação de som e vídeo: Dennys Leite
Operação de luz: Flávio Duarte
Fotografias: Andre Stefano
Perucas: Lenin Cattai
Coordenação de produção: Daniela Machado
Produção executiva: Silvio Eduardo
Administração: Israel Silva
Realização: Cia. de Teatro Os Satyros
Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.