Crítica
3.5.2018 | por Valmir Santos
Foto de capa: Humberto Araujo/Festival de Curitiba
Em Curitiba
Talvez a cena mais emblemática na segunda noite de Extinção, no Festival de Curitiba, no mês passado, tenha sido a dos aplausos. Denise Stoklos vai à boca de cena ladeada por dez profissionais. Entre eles o codiretor Francisco Medeiros, numa extremidade da fila formada no palco, com quem trabalha pela primeira vez, e o cenógrafo J.C. Serroni, noutra ponta, que colaborou em um dos seus espetáculos nos anos 1980. Medeiros e Serroni são da mesma geração da atriz e versados em processos criativos verticais em equipe. Ela passou quase 40 dos 50 anos de carreira centrada em solos nos quais, em regra, controla funções-chave. Dirige, escreve e atua sozinha no que nomeia Teatro Essencial, buscando sistematizar atitude, pesquisa e treinamento em voz, corpo e memória.
Na nova peça Denise sai de sua própria sombra, movimentando-se para estar em boa companhia. Vai ao romance de mesmo nome de Thomas Bernhard (1931-1989) como pretexto para falar principalmente de si, mulher, artista e cidadã ciente de que o teatro não cura. Expõe lembranças da vida e da profissão com surpreendente autocrítica e ainda arrola dois psicanalistas na equipe de criação, participantes na dramaturgia e na assistência de direção. As mortes que precipitam o fluxo narrativo no livro do austríaco são equivalentes simbólicos às mortes que a atriz enfrenta ou assim insinua ao cruzar meio século de ofício desde que cometeu o primeiro texto, aos 18 anos, tendo ela mesma produzido, dirigido e atuado com um grupo de amigos da Irati natal, no sudoeste paranaense. Guardadas as proporções, Irati corresponderia a Wolfsegg, cidade do narrador protagonista de Extinção.
Em seu novo solo, ‘Extinção’, a atriz vaga pelas cinzas que forram o chão como se numa floresta queimada, reconhecendo-se no estado de fenecimento das ideias ultrapassadas
Na história de Bernhard, o professor Franz-Josef Murau visitara a família há dias e se vê obrigado a retornar à casa do interior australiano após receber a notícia da morte dos pais e do irmão, vítimas de um acidente de carro. Ele vive em Roma. A viagem e os ritos fúnebres produzirão as piores lembranças familiares, como o fato de ser filho de latifundiários alinhados ao nazismo, como toda a vizinhança.
O livro é um monólogo interior ou um diálogo imaginário do narrador com um dos seus alunos. São apenas dois parágrafos gigantescos que equivalem a capítulos e alvejam a mediocridade contaminadora da nação e de sua gente – Denise aproxima a realidade do Brasil daquela Áustria da ficção. No feroz embate com as origens, Murau é um testemunho implacável: “Estou de fato retalhando e dissecando Wolfsegg e os meus, aniquilando-os, extinguindo-os, e retalho e disseco dessa forma a mim mesmo, disseco-me, aniquilo-me, extingo-me”.
Essa é a deixa para a livre apropriação teatral. “Insurreição” e “recusa” viram as palavras de ordem logo na abertura do espetáculo, ressalvando-se os “excessos” que virão esparramados em veleidades biográficas e rancores de Murau/Bernhard.
O fruto dessa barganha é um elucidativo retrospecto de momentos autobiográficos e de sublimação da arte que ajudam a entender um pouco da personalidade de Denise dentro ou fora de cena. Nesse movimento excêntrico, soa generoso compartilhar fracassos em diferentes planos da existência.
Manter o texto em mãos durante boa parte da apresentação, por exemplo, embasa a citação aos sete “brancos” que enfrentou em cidades nas quais se viu “salva” pelo fechamento das cortinas. Em seguida busca consolação em Raul Seixas, Tim Maia ou João Gilberto, homens notáveis também acometidos por esquecimentos ou lapsos. Em outra passagem reage ao preconceito a gays, lésbicas, bissexuais e transexuais ao som de Bonnie Tyler. Recorda-se das superações de um câncer e de uma fratura na coluna. Gaba-se dos 33 países que já percorreu. E admite: “Eu sou uma overdose”.
A desmesura e a iconoclastia propagadas por Denise vão encontrar eco também em Antônio Abujamra (1932-2015). A certa altura é reproduzido um vídeo da década de 1990 em que o ator e diretor amante dos gênios da literatura adapta um trecho do romance Árvores abatidas, de Bernhard, corrosivo no retrato à brasileira das armadilhas da fama quando se trata do caráter do artista televisivo ou teatral. Mais adiante, quando a atriz se autodeclara “artista política”, vaticina que a grande questão do Brasil é saber… “O que é que baiana tem?”, faz pilhéria macunaímica e caymminiana.
Denise ainda não delega de todo a direção, quem sabe hesitante de seu potencial autoral. A singularidade dela está na presença cênica que Medeiros e Aurelio equalizam por meio da fisicalidade e do ímpeto verbal. A amplitude espacial da cenografia torna incisivos os instantes meditativos ou manifestos. São visíveis os saltos em relação aos últimos anos. A linguagem performativa ganha nuance. Para quem a acompanha desde 500 anos – Um fax para Colombo (1992), pisando firme o tablado e andando em círculo para dar o texto de indignação com a colonização europeia nas Américas, a autoanálise exercida em Extinção a deixa mais desarmada dos códigos reconhecíveis para transparecer uma artista capaz de elaborar plenitudes e incertezas.
A atriz vaga pelas cinzas que forram o chão como se numa floresta queimada, reconhecendo-se no estado de fenecimento das ideias ultrapassadas. Usa um casaco vermelho que destoa da paisagem de destruição, a mesma cor do sangue ou do fogo que flameja aqui e ali em projeções toscas.
O roteiro pontua ainda citações sonoras ou audiovisuais à cantora Janis Joplin (1943-1970) e à atriz Ileana Kwasinski (1941-1995), do memorável solo Depois do expediente, no qual nenhuma palavra era proferida pela intérprete também paranaense e dirigida por Medeiros.
Portanto, não faltam indícios de uma vontade de reinscrição sobre os caminhos que trouxeram Denise até aqui e expressam a possibilidade de abertura a outros. Em Olhos recém-nascidos (2004) a reflexão acerca dos fins e recomeços ganhou relevância em consequência da morte recente do pai. O liame morte e vida reaparece em Extinção como um despertar de consciência. Numa entrevista ao programa Metrópolis, da TV Cultura, para repercutir uma temporada de repertório, em 2010, Denise Stoklos orgulhava-se do seu modo autocentrado de produzir e criar, pouco dado ao espírito convivencial e conflitivo da natureza do teatro. “Assim eu mesmo me contrato para escrever, para me dirigir, para coreografar. Não há desemprego e nem conflitos”, alegava.
O solo de turno dá sinais de um novo ciclo, como aquele do Projeto Solos do Brasil, que coordenou em 2002. Na ocasião, ciceroneou e promoveu trocas transformadoras nas trajetórias de 15 artistas pinçados do universo de dois mil inscritos. Criadores hoje influentes na capacidade de mesclar projetos individuais e coletivos, como Miguel Rocha (Companhia de Teatro Heliópolis), Fábio Vidal, Silvana Abreu, Vinicius Piedade ou mesmo Tiche Vianna (Barracão Teatro), cujo pensamento e inquietude artísticos já diziam a que vinha.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do Festival de Curitiba
Serviço:
Onde: Teatro Anchieta – Sesc Consolação (Rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3234-3000)
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h. Até 22/5
Quanto: R$ 12 a R$ 40
Duração: 75 minutos
Classificação indicativa: 16 anos
Lotação: 280 lugares
Equipe de criação:
Espetáculo solo livremente inspirado em Extinção, de Thomas Bernhard
Direção: Denise Stoklos, Francisco Medeiros e Marcio Aurelio
Dramaturgista: Ricardo Goldenberg
Concepção teatral, textos adaptados, coreografia, sonoplastia e interpretação solo: Denise Stoklos
Cenografia: J.C. Serroni
Iluminação: Aline Santini
Figurino: UMA/Raquel Davidovich
Vídeo: Leandro N Lima
Cabelo: Eron Araujo
Fotografias: Leekyung Kim
Sonoplasta: Aragonesco
Assistente pessoal de Denise Stoklos: Wallace Dutra
Assistente de cenografia: Natália Miyashiro
Assistente de iluminação: Nicolas Caratori
Assistente de direção: Lua Santosouza
Assistente de produção: Renata Bruel
Execução da cenografia: Anísio Serafim, Camila Negro, Débora Serroni, Duda Viana, Ingrid Oliveira, Karen Furbino, Morganna Farat, Natália Miyashiro, Priscila Soares, Taís Santiago e Vitória Rizzo
Assessoria de imprensa: Pombo Correio
Direção de produção: Luís Henrique Daltrozo (Luque)
Produção: Daltrozo Produções
Realização: Sesc SP
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.