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Crítica

Dizer não ante a febre do discurso

29.6.2018  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Nana Moraes

Falar também pode ser uma maneira de impor o silêncio. Falamos muito sobre o país miscigenado, falamos sobre discriminação e preconceito, enchemos páginas de jornal com a barbárie cotidiana e a matança da população negra. É com um excesso de palavras que conseguimos não dizer nada que sobre isso. Preto, mais recente criação da companhia brasileira de teatro, parte desse incômodo.

A presença de duas atrizes – Renata Sorrah e Grace Passô – estrutura a dinâmica da montagem. De um lado, Renata parece presa à personagem que os anos de exposição televisiva criaram para ela. Como se toda ela estivesse abarcada por um rótulo, que impede o público de sequer conceber que a pessoa que está ali possa escapar a certos contornos. Nossa maneira de vê-la segue certas balizas invisíveis, e mesmo as perguntas que lhe são feitas não podem escapar desses limites. Ela poderá falar da aura que a cerca, da sua imagem excessivamente exposta e reproduzida, alimentar fantasias sobre o percurso de uma mulher branca que passou boa parte da vida diante dos olhos de todos.

As palavras estão gastas. Nos muitos deslocamentos propostos pela obra da companhia brasileira de teatro, alguns termos vão mudando de lugar conforme altera-se o enunciador. Substantivos viram verbos, tudo pode ser embaralhado sem que nenhuma coisa nova seja dita

É como se Grace Passô entrasse como um contrapeso, para ocupar o papel oposto. Nome proeminente na cena teatral da última década, Grace é uma desconhecida fora desse círculo restrito. Quando anda na rua, ou mesmo para parte da plateia que a assiste, Grace, antes de ser uma artista, é uma mulher negra. Antes da grande atriz, vem sua imagem. E sobre o que, então, ela poderia ser chamada a falar senão sobre isso? “Eu poderia falar sobre diversos assuntos. Mas sempre me chamam pra falar sobre esse”, ela comenta, logo no início da peça.

Preto se lança sobre as imagens dessas duas mulheres, embaralhando-as, para conseguir falar de temas que ultrapassam suas individualidades. O espetáculo dirigido por Marcio Abreu não se propõe a discutir um assunto, mas a tomar o racismo como ponto de partida para um passeio menos linear. A dramaturgia traz, em lugar de narrativas, recortes de pensamento. São apontamentos, impressões, ideias que surgem em lugares imprevistos para nublar as verdades do espectador.

Intérpretes e personagens são indissociáveis. Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira, Renata Sorrah e Rodrigo Bolzan se chamam em cena pelos próprios nomes. Tudo parece se dar no presente, como se acontecesse sem ensaio prévio. Não se estabelece nenhum parâmetro seguro para que se possa definir limites entre realidade e ficção. Entre os muitos procedimentos do teatro contemporâneo presentes na montagem, a perfomatividade é certamente um dos mais evidentes. Os atores surgem como performers, muitos mais afeitos a agir – ou descrever o que se passa em cena – do que a representar o que quer que seja.

Nana Moraes

O sexteto atuante e cocriador do espetáculo da companhia brasileira de teatro

A direção trabalha com movimentos pendulares, indo de passagens mais “claras”, que emulam conversas triviais, a momentos mais “escuros”, nos quais ações e diálogos evocam “sombras dionisíacas”. É como se o espetáculo deslizasse do que parece ser uma palestra para ganhar as feições de um ritual, traço ressaltado pelas menções à fogueira, ao fogo e ao desregramento. Isso se dá, por exemplo, em uma cena em que Grace e Renata narram uma relação sexual entre duas mulheres ou quando Grace canta na plateia Faz uma loucura por mim, tema conhecido na voz de Alcione. A cada situação de explosão, sucede-se outra de contenção.

Às vezes, o espetáculo cria a impressão de se afastar do que seria o seu eixo principal. De repente, ninguém está falando de cor ou de racismo. A peça não oferece explicações ou dados estatísticos. Não é preciso falar nem das milhares de mortes nem das disparidades evidentes. No lugar de metáforas diretas, opta-se por deslocamentos. Talvez porque seja necessário dar outra forma ao incômodo que já se tornou naturalizado.

Poderia soar despropositada a menção a trechos de As lágrimas amargas de Petra von Kant – peça de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), que mereceu versão brasileira em 1982, com Renata Sorrah, Fernanda Montenegro e Juliana Carneiro da Cunha, dirigidas por Celso Nunes. Mas a obra do alemão vinha falar do encontro – e desencontro – entre diferentes. E também da criada, muda e invisível, a se mover como um fantasma na sala de jantar. Em outra moldura, e com outro peso, velhas questões reaparecem. “Você acha que a gente é capaz de sentir a dor do outro?”, questiona Renata Sorrah.  O tema não se alonga em uma discussão pormenorizada. Mas dessa pergunta despontam os limites da empatia, conceito muito em voga e que, por vezes, turva o debate.

Projetar-se em desigualdades alheias talvez não seja necessariamente a melhor bússola na hora da ação. Afinal, não se trata de conseguir experimentar na pele dores de outra classe, de outra raça, de qualquer outro diferente. A ideia de nomear-se um outro (pensando, por exemplo, na emblemática campanha do Je suis Charlie) como forma de demonstrar compaixão serve, não raro, para criar um apelo sentimental e simplificar questões mais complexas.

Entremeadas aos diálogos de As lágrimas amargas de Petra von Kant, as duas protagonistas de Preto trocam reminiscências e histórias familiares. O que as aproxima não é propriamente empatia, mas a possibilidade de uma relação afetuosa. O espetáculo aposta no afeto como via para a transformação. “Desde o início eu sabia que não seria fácil compartilharmos nossas memórias distantes, mas que se você tocasse minha pele com a mesma nudez como você despe sua memória eu habitaria suas lembranças”, resume Grace.

Nana Moraes

Grace e Renata na metacena de ‘As lágrimas amargas de Petra von Kant’ em ‘Preto’

As palavras estão gastas. Nos muitos deslocamentos propostos pela obra, alguns termos vão mudando de lugar conforme altera-se o enunciador. Substantivos viram verbos, tudo pode ser embaralhado sem que nenhuma coisa nova seja dita. É só o estranhamento de ver os termos pálidos ganhando alguma centelha de vida para se apagarem quase imediatamente depois: “escrever no hoje”, “gestar uma descrição”, “pastel por pastel”. O discurso não nos leva a lugar nenhum. Dizemos o tempo inteiro sem dizer.

Escolhemos imagens para guardar o nosso incômodo. E as imagens também são usadas e evocadas à exaustão até serem lavadas de sua força. Uma menina erguendo a carteira escolar no meio da rua, a mulher sendo arrastada pelo carro policial, os ídolos do pop, a novela, os assassinatos que nos chocam. Tudo é digerido e vira essa geleia geral que nos faz gritar muito e agir pouco.

Na contramão, os rostos dos atores e suas vozes surgem ampliados: estampados em tamanho grande nas paredes e reverberadas por microfones. Cássia Damasceno entra em cena para não agir e para dizer o que não fará. Ela frustra todas as expectativas que poderiam estar conectadas à sua presença. A mulher negra não irá dançar, nem cantar nem fazer nada dentro dos limites tacitamente estabelecidos para ela.

A pequena revolução acalentada por Preto é a da recusa. Um conjunto de discursos anódinos furado por algumas poucas frases frescas. São os momentos em que se evoca o fogo, alguma vertigem e um assunto que ainda não cabe nas discussões. Como mudar o campo de expectativas, como quebrar todo um universo de símbolos que deixa tanto da vida do lado de fora? A obra da companhia brasileira de teatro tateia essas respostas dizendo não.

.:. Preto fez duas temporadas na cidade de São Paulo, no Sesc Campo Limpo, de 9 de novembro a 17 de dezembro de 2017, e no Sesc Avenida Paulista, de 1º a 7 de junho de 2018

.:. Visite o site da companhia brasileira de teatro

Equipe de criação:

Direção: Marcio Abreu

Elenco: Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira, Renata Sorrah e Rodrigo Bolzan/Rafael Lucas Bacelar

Músico: Felipe Storino

Dramaturgia: Marcio Abreu, Grace Passô e Nadja Naira

Iluminação: Nadja Naira

Cenografia: Marcelo Alvarenga

Trilha e efeitos sonoros: Felipe Storino

Direção de produção: José Maria

Direção de movimento: Marcia Rubin

Vídeos: Batman Zavarese e Bruna Lessa

Figurinos: Ticiana Passos

Assistência de direção: Nadja Naira

Orientação de texto e consultoria vocal: Babaya

Consultoria musical: Ernani Maletta

Produção executiva: Caroll Teixeira

Fotos: Nana Moraes

Produção: companhia brasileira de teatro

Coprodução: Sesc São Paulo, HELLERAU – European Center for the Arts Dresden, KünstlerhausMousonturm Frankfurt amMain, Théâtre de Choisy-le-Roi – Scèneconventionnéepourladiversitélinguistique

Patrocínio: Petrobras e Governo Federal

Realização: Sesc São Paulo

 

 

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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