Encontro com Espectadores
O espetáculo Love, love, love (2017), do Grupo 3 de Teatro, motivou a 23ª edição do Encontro com o Espectador em 26 de agosto passado. As atrizes convidadas Débora Falabella e Yara de Novaes ressaltaram aspectos do processo criativo deste que é o segundo texto consecutivo em que atuam sob a assinatura do inglês Mike Bartlett, dessa vez ao lado de mais três atores: Augusto Madeira, Alexandre Cioletti e Mateus Monteiro.
Se Contrações (2013), dirigido por Grace Passô, focava o assédio moral de uma gerente sobre uma funcionária de uma grande corporação, a trama da montagem mais recente, pelo diretor convidado Eric Lenate, acompanha a linha do tempo de uma família contrastando criticamente as gerações dos respectivos pais e filhos, entre 1967 e 2014, todos profundamente afetados pelos contextos comportamentais, sociais, políticos e econômicos.
Love, love, love é o quinto espetáculo do Grupo 3 de Teatro, fundado há 13 anos pelas atrizes e pelo produtor e diretor Gabriel Fontes Paiva. O trabalho continuado e a fixação em expressar uma poética rigorosa, sem concessões (apesar da projeção nacional de Débora pela sua presença nas telenovelas) foi um dos tópicos abordados no Encontro.
O inglês Mike Bartlett tem, além dessa comunicação direta com o público, uma capacidade enorme de criar seres humanos que realmente não serão definidos por uma ou outra palavra. Em ‘Love, love, love’ essa mãe ou esse pai ou essa filha, eles podem, sim, ocupar alguns lugares arquetípicos e, em alguns momentos, até meio estereotipados, mas eles são muito mais do que isso
Responsável pela mediação, a jornalista e crítica Beth Néspoli lembrou que a ideia da ação apoiada pelo Itaú Cultural é escolher um espetáculo que projete uma boa discussão; convidar seus criadores e conhecer um pouco acerca de suas proposições, bem como cotejar os pontos de vista do público e dos críticos.
“Van Gogh não vendeu nenhum quadro quando estava vivo, e sua arte foi reconhecida mais tarde. O teatro só acontece em conexão com o seu tempo. É arte feita por pessoas e para pessoas que estão vivendo o mesmo tempo histórico, que compartilham das mesmas dúvidas, das mesmas incertezas, das mesmas fragilidades”, ponderou Beth.
“Eu sei que hoje aqui tem muitos alunos da faculdade de Direito, cujo comparecimento foi indicado por um professor, e deve ter muitos estudantes de artes cênicas também, imagino. Porém é muito importante que o teatro não seja só para quem faz teatro, que converse com outros campos: a sociedade seria melhor com mais gente interessada em teatro”, complementou a jornalista.
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Beth Néspoli
A dinâmica vai ser a seguinte: farei uma breve apresentação das duas atrizes, levantarei alguns pontos sobre Love, love, love, passarei a palavra a elas, cada uma falará um pouco sobre os princípios éticos e estéticos que moveram suas escolhas no teatro, na carreira, e em seguida abrimos às perguntas e comentários de vocês [o público].
A Débora Falabella, a Yara de Novaes e o Gabriel Paiva criaram em Minas Gerais o Grupo 3 de Teatro. Sei que a maioria dos espectadores desta tarde conhece a Débora da televisão ou do cinema, mas é importante entender que elas têm um grupo de teatro, que fundaram em 2005 e desde então vêm trabalhando juntas. A primeira peça foi A serpente, do Nelson Rodrigues, a Yara de Novaes dirigiu. A Yara tem duas dezenas de direções, se somados os trabalhos dentro ou fora do grupo. A Débora atuava nessa primeira montagem e, por coincidência ou não, o Alexandre Cioletti e o Augusto Madeira, que estão no elenco de Love, love, love, também contracenavam com ela em A serpente.
Depois o grupo fez O continente negro (2007), tendo como convidado o diretor Aderbal Freire-Filho. A Yara e a Débora atuavam. É interessante notar que quando a a Yara está dirigindo, ela não atua. O texto é do chileno Marco Antonio de la Parra e a cenografia era do André Cortez, parceiro de outras peças do grupo. Depois vocês fizeram O amor e outros estranhos rumores (2010), a partir de contos do Murilo Rubião, com adaptação da Silvia Gomez e direção da Yara.
Seguindo essa linha de tempo, veio Contrações (2013), dirigido por Grace Passô, texto do inglês Mike Bartlett, que é o mesmo autor de Love, love, love, dirigido pelo Eric Lenate.
Lembrando o elenco da montagem sobre a qual estamos conversando, o Alexandre Cioletti faz o Kenneth jovem e depois o filho deste mesmo personagem; o Augusto Madeira faz Kenneth quando se torna pai; e o Mateus Monteiro o irmão mais velho, Henry.
São três momentos: começa em 1967, com dois irmãos que recebem uma menina em casa, uma paquera do mais velho, e ela acaba ficando com o irmão mais novo; há um segundo momento na década de 1990, que aborda essa dupla já casada com seus dois filhos, e um terceiro em 2014, com os filhos já adultos.
É um espetáculo que reflete criticamente sobre o desmonte de um espaço comum de solidariedade. No ano de 1967, um tempo de ruptura geracional, esses dois irmãos saíram da casa dos pais e estão em Londres, um estuda em Oxford com uma bolsa de estudos e o outro está na cidade para trabalhar, tem um bom emprego, sustenta a si mesmo sem enfrentar maiores problemas. Mesmo o mais velho e conservador deles fala assim: “Papai só pensa em dinheiro”.
As pessoas falam que eles são hippies, a dupla que se apaixona na primeira parte da peça, mas eles não são exatamente hippies, têm um grau de adesão ao movimento, viajam de carona nas férias, por exemplo, frequentam festivais de música, mas estão em Oxford, uma universidade prestigiosa, levam a sério os estudos, tanto que estarão formados e inseridos no mercado de trabalho mais adiante; naquele momento respiram aquele movimento de liberdade. Quanto à rede de proteção, o mais novo tem uma bolsa de estudos e de férias, quando vai a Londres, tem um irmão para apoiá-lo. Já na geração seguinte, dos filhos deles, nem o irmão a personagem da filha tem para apoiá-la.
Então, a não ser na última cena em que o discurso da filha faz uma conexão direta entre a situação política e a condição de vida dela, o espetáculo estabelece conexão entre as três gerações da família e o que acontece no meio social em que vivem de modo sutil. Na primeira parte da peça, no momento do encontro do casal, está acontecendo a primeira exibição em rede mundial do Love, love, love, dos Beatles, um show realizado em várias partes do mundo e a dramaturgia deixa entrever duas visões de mundo. Um dos personagens, o mais jovem, mostra-se muito interessado naquela exibição, alguma coisa está acontecendo aqui que pode mudar as coisas, pensa ele. O outro não tem o menor interesse. De qualquer modo é como se ambos estivessem surfando nos acontecimentos de seu tempo, mas nenhum deles estabelece uma relação crítica com o que observam.
Vocês falam no material de imprensa do espetáculo algo como “olha só o que acontece, como as pessoas são influenciadas por seu tempo”, e me dá a impressão de que esses personagens são realmente influenciados por seu tempo, ou seja, eles sofrem a interferência de seu tempo, mas eles não têm uma ação crítica sobre o seu tempo, de modo que talvez pudessem realmente alterá-lo. Não sei, são aspectos para pensar e que me parecem importante na conexão com os tempos atuais.
Penso que o espetáculo retrata uma adesão superficial ao movimento hippie, uma vez que o espetáculo os flagra em 1967. Um movimento muito forte de resistência ao sistema. Algumas pessoas sofreram forte repressão, e o movimento se retraiu pela onda conservadora que veio depois. Alguns continuaram marginais [ao sistema], atitude que passou a ser associada à ideia de fracasso, de uma gente que faz artesanato e não toma banho. Era muito mais do que isso o movimento da contracultura e que acabou derrotado. Uma coisa é você ir para um show de rock e aderir de uma forma meio leviana e superficial ao espírito da época, outra é realmente se inserir no ativismo compromissado.
Eles, o casal central, os dois estudavam em Oxford, podiam pegar carona de caminhão nas férias, ir a shows, mas estavam investindo na preparação deles para entrar no sistema, como entraram depois e aderiram totalmente a esse sistema, trabalhando, sustentando os filhos, todo o pensamento estruturado para isso. Na década de 1960, se alguém da classe social deles falasse “eu vou ser músico” seria deserdado pelos pais, ao menos pelos pais conservadores, ricos, de classe média inglesa, que é a deles. E quando vem a filha deles, e diz que quer fazer música, ela pode, a mãe estimula que ela faça música porque tudo bem, o importante é que você faça o que você queira, eu trabalho e eu sustento isso.
A Mariangela Alves de Lima, que é uma crítica que atuou por 40 anos no Estadão [1971-2011], certa vez começou um texto assim: “Comunistas e cristãos professam da mesma fé, ninguém se salva sozinho”. De alguma forma, essa família fala que trabalha pra caramba, paga a melhor escola para os filhos e cuida de si, mas não percebe a insuficiência disso. Não adianta dar a melhor formação aos filhos se na sociedade, se fora do espaço familiar, não há um espaço do comum, público, se não tem uma rede que proteja as pessoas, se o mundo não está bem. É essa a falha que a filha acusa ao falar da ação política da geração dos pais e cobrar deles apoio mesmo na idade adulta. Ou seja, você não vai ficar bem sozinho, restringindo o cuidado ao ambiente familiar, que é um pouco o pensamento atualmente valorizado no Brasil.
A filha estuda na melhor escola, mas ao ficar adulta não consegue pagar nem o próprio aluguel. E por isso ela acusa a mãe. De alguma forma ela acusa essa geração que apoiou Margaret Thatcher [1925-2013, primeira-ministra do Reino Unido conhecida pela alcunha de Dama de Ferro] no desfalque de todo um sistema de solidariedade. Nos anos 1960 ou 1970 era possível pegar uma carona de caminhão, um contraste com a atualidade, com o medo que pauta as famílias que foram morar em condomínios cheios de segurança.
O espetáculo não é simples, muita coisa a gente pode pensar dele, dá margem para muitas leituras. Os trabalhos do Grupo 3 de Teatro partem muito das interrelações pessoais: partem do espaço íntimo para falar do social, das relações entre as pessoas para falar do mundo, e não o contrário. Tem uma percepção do teórico francês Jean-Pierre de que o íntimo é o cósmico. Ou seja, existem espetáculos que através do pessoal ligam o espectador à outra instância, da ordem do cosmos, dos arquétipos.
Na peça, esse elemento de ligação é a figura da mãe. Para a maioria de nós, a mãe é o arquétipo do cuidado, aquela que protege, que corresponde à Gaia, divindade que representava a força da natureza na mitologia grega. E essa mãe que não cuida e não protege em Love, love, love é muito perturbadora. A maioria das pessoas com as quais conversei e viram o espetáculo sentiu isso: a perturbação causada por uma mãe que não consegue ver a filha. É desesperador perceber isso estando na plateia: que mulher é essa?
Dá para problematizar essa percepção, pois a convenção social diz que a mulher tem de cuidar, mas esse pai também se revela inerte. Como é que é isso? Ela estava cuidando desde onde ela conseguia, do jeito que ela era, muito egoísta. Ao mesmo tempo, se a gente pensar em Gaia, a terra também começa a não cuidar mais da gente – a vingar-se mais do que prover, pela relação que estamos tendo com ela ao longo da história da humanidade. Essa relação é muito instigante no espetáculo.
No último quadro da peça, que se dá no tempo atual, o espectador fica entre as duas visões de mundo e percebe que nada é tão simples assim, tudo pode ser defendido ou não. O espetáculo tem abertura para se pensar muitas coisas e isso é muito bom.
Gostaria que vocês falassem um pouco sobre as afinidades do grupo. Um núcleo artístico pode entrar na sala de ensaio e começar a fazer uma investigação, investir muito mais numa experimentação de formas, de invenção de linguagem e isso ser o seu objetivo mais forte. E, claro, teatro é sempre para ser compartilhado.
Mas o núcleo também pode entrar no teatro muito preocupado com a arte como mediação, como compartilhamento das inquietações, das incertezas, do estar no mundo aqui agora. Tenho a impressão de que esse é o investimento maior nas escolhas do Grupo 3 de Teatro. Não sei até que ponto isso faz sentido para vocês e até que ponto isso interfere em escolhas ou até na forma de fazer.
Débora Falabella
Sobre o Grupo 3, a gente já morava em São Paulo. Eu já havia trabalhado com a Yara em Belo Horizonte, nos conhecíamos há alguns anos, assim como ao Gabriel – ele e a Yara já eram parceiros de criação. Ela já tinha dirigido o Gabriel e já tinha me dirigido. Foi quando a gente se reencontrou em São Paulo e deu vontade de trabalhar juntas novamente. Aliás, a Yara tinha acabado de me dirigir num outro espetáculo [Noites brancas, de Dostoiévski, em 2003]. Nós três nos juntamos e estreamos A serpente (2005), foi a partir daí que o grupo se formou.
Optamos por esse núcleo de criação porque é muito complicado você manter um grupo realmente com muitas pessoas. A gente acaba tendo quase sempre os mesmos criadores nos nossos trabalhos, como você disse: o Andrés Cortez na cenografia, o Morris Piccioto, que sempre fez as trilhas sonoras. E assim temos caminhado juntos há 13 anos, eu, Yara e Gabriel. Tem sido difícil, mas agora vivemos um momento artisticamente muito bom.
Eu acho que essas escolhas foram ficando mais diferentes ao longo do tempo. Eu falo que, hoje em dia, esses dois últimos espetáculos têm conversado muito mais com o momento que a gente está vivendo hoje mesmo [em termos de sociedade brasileira e em nível global]. O Contrações, que é do mesmo autor, o Mike Bartlett. um autor contemporâneo e que fala muito dos dias de hoje, então talvez sejam espetáculos muito mais políticos do que os anteriores.
Yara de Novaes
Quando você fala, por exemplo, que talvez a gente tenha uma verticalização um pouco mais nessa mediação com o tempo, com as pessoas ou com as pessoas que habitam esse nosso tempo, e que isso parece acontecer em detrimento da linguagem, eu acho que o que realmente nos orienta é que todos nós gostamos muito de um texto bem elaborado.
A gente tem, sim, um pressuposto de linguagem também. O Grupo 3 de Teatro trabalhou com autores que tinham uma caligrafia muito singular em todos os espetáculos e isso evocava um tipo de cena. Não acho que a gente seja “textocentrista”, no sentido de que confere ao texto um lugar nuclear, central, de mais importância. No entanto, ele é um pilar que nos capitaneia de alguma maneira.
Quando a gente escolhe esses autores, o fazemos também pelas possibilidades que esses autores e a linguagem deles têm de evocar um teatro por meio do qual a gente possa experimentar como imagem, como gesto, como tempo, como ocupação de espaço, como palavra. A palavra vai além do que ela significa. O Mike Bartlett tem, além dessa comunicação direta com o público, uma capacidade enorme de criar seres humanos que realmente não serão definidos por uma ou outra palavra. Então, essa mãe ou esse pai ou essa filha, eles podem, sim, ocupar alguns lugares arquetípicos e, em alguns momentos, até meio estereotipados, mas eles são muito mais do que isso.
Vocês que viram Love, love, love, sobretudo no terceiro ato, lembram que as coisas vão sendo condensadas, tudo que se viveu vai desembocar ali. O Mike Bartlett consegue realizar uma cena absolutamente dialética e você, como espectador, fica realmente não sabendo se adere ao ponto de vista da Rose [a filha primogênita] ou dos pais, e essa divisão ou essa inquietação é que vai gerar no público a capacidade de ter um posicionamento crítico e é aí que, de fato, ele germina a necessidade de se pensar sobre o mundo, a partir da sua vida doméstica, daquele seu mundo circunscrito na sala de jantar. O que o espetáculo discute, o que ele promove na sua vida doméstica e na sua vida familiar está absolutamente em correspondência com o seu mundo: é de lá pra cá e daqui pra lá.
Então, o que é mais legal do Mike Bartlett, e para nós que somos atrizes do espetáculo, é que realmente não tem jeito de fazer um caminho reto. A gente vai fazendo um caminho expandido, e esse é o grande barato da linguagem do autor. Porque ele começa num lugar em que as coisas parecem que são próprias de um cotidiano, mais naturais, e vai expandindo aquilo até chegar numa situação de absurdo total. E quando chega nessa situação de absurdo total é a hora em que ele habilita a nós, atores, artistas para que a gente possa fazer a nossa onda ali. Na sessão de sexta-feira teve um espectador, um dramaturgo, o Rodrigo Nogueira, que tinha visto a montagem de Love, love, love em Nova York – depois de ter sido montada na Inglaterra a peça foi para os Estados Unidos e fez tanto sucesso quanto. E como era o mesmo texto tinha um temperamento completamente diferente porque o Mike Bartlett tem essa estirpe inglesa e que é demais, pode falar ali de Londres e que, dependendo de onde você está montando, você está falando realmente daquele seu lugar. Segundo o Rodrigo, às vezes parecia uma sitcom [comédia à maneira de série televisiva], mas não porque ali tinha a ver com aquela sociedade americana e no Brasil tem outro temperamento. Acho que tem a ver também com o nosso temperamento e com todo o nosso passado e a nossa história enquanto artistas, até mesmo dentro do próprio Grupo 3, esse núcleo de criadores que tem trabalhado mais sistematicamente.
Débora
Lá era Broadway, então cada cena, cada época tinha um cenário grandioso, uma coisa enorme, cozinha, tudo funcionando. E eram três atos de verdade.
Beth
Acho que esse risco do sitcom que está ali no espetáculo, está no texto, está dado ali, mas a montagem escapa disso, aí sim, pelo trabalho dos intérpretes.
Yara
É muito importante quando a Débora fala desse núcleo do Grupo 3. A gente tem um nome absolutamente original, com três pessoas [risos], mas a gente demorou a chegar a essa conclusão. Três é um número interessante se você pensar assim nos triângulos, é até místico. O nosso 3 tem vários D’Artagnan [considerado o quarto mosqueteiro no livro de Alexandre Dumas]: o André, o Morris e alguns outros que são da concepção de luz ou os próprios diretores que chamamos e esses atores pelos quais a gente tem paixão e trabalha recorrentemente com eles.
O Grupo 3 tem nas suas primeiras decisões as suas três pessoas, mas a gente tem muito mais de três, somos realmente uma comunidade muito maior e é essa comunidade de criadores que faz com que o Love, love, love tenha essa cara que é própria dele. Uma cara que tem nesse binômio, texto e ator, um pilar muito importante.
Beth
Acho que a gente poderia entrar em vários detalhes que mostram essa qualidade por dentro, a qualidade na criação dessas personagens, em torná-las críveis, humanas e verdadeiras no caso do trabalho de vocês.
Por exemplo, quando ela [Débora/Sandra] começa a falar na primeira cena, em 1967, sobre a fragilidade de uma mulher, que pode ser estuprada, ela deita no chão e abre as pernas num gesto aparentemente natural e descontraído, enquanto o o homem [Kenneth] vai para o colo do irmão [Henry]. Parece um detalhe, mas é bem importante, porque a cena poderia ser feita totalmente diferente, oposta mesmo. Se você faz uma leitura óbvia do texto, jamais pensaria nessa cena desse jeito, e isso é criação, imaginação e trabalho.
Lendo o texto, dá a impressão que nessa hora ela vai se recolher, o corpo se encolheria em vez de expandir como se dissesse: “Olha, eu estou aqui, tenho essa liberdade toda, mas segura sua onda aí, eu sou frágil, vocês podem não entender minha atitude de liberdade e serem violentos comigo”. E é uma coisa que pode acontecer com toda mulher. A tendência, numa leitura superficial, é pressupor, nessa cena, ela acuada e os dois crescendo. E no espetáculo acontece exatamente o oposto, e quem viu sabe exatamente do que estou falando.
É um dos prazeres que o teatro propicia independente da temática: perceber o teatro acontecendo, a cena ser construída, a criação que se descola do óbvio. O resultado dessa escolha gestual é ver o risco e a fragilidade dela como expressão de uma cultura machista. É apenas uma cena como exemplo para essa conversa, mas fica claro que vocês estão trabalhando isso a cada momento. Inclusive, convidar o Eric Lenate para dirigir, a opção de não fazer os três cenários, o modo como vocês constroem cada transição entre atos, a elaboração nas atuações é evidente.
Naquele final, quando você [para Yara] chora lembrando o que aconteceu com a filha, a gente olha e vê a técnica, eu vejo a técnica da atriz, mas o resultado é tão verdadeiro… Como é que se constrói isso e como é que se tem a técnica e a elaboração para construir isso com tanta verdade para que eu possa entender essa mulher que acabei de intuir que fosse uma espécie de Medeia e, de repente, estou aqui entendendo ela por esse choro verdadeiro, por esse trabalho de atriz? De fato, tem trabalho de linguagem sim, e bastante. Porém há grupos cujo investimento maior é a experimentação formal. E fazem a linguagem avançar. São diferenças, não valorações.
Débora
A gente tem isso, a linguagem e o experimento, mas a gente sempre quer comunicar, sempre. É essencial, esperamos nunca perder isso. Apesar de toda essa experimentação, do caminho, temos a preocupação em realmente comunicar e chegar.
Yara
E isso não significa simplificar, de jeito nenhum, é diferente. Talvez o texto mais difícil de comunicação, que a gente imaginou que pudesse ser, era o do Murilo Rubião, que trabalha com realismo mágico [contos do espetáculo O amor e outros estranhos rumores]. Quando a gente foi para os CEUs da periferia de São Paulo, além de percorrer cidades do interior, a comunicação foi absolutamente direta, mesmo que a gente estivesse trabalhando com uma linguagem um pouco mais cifrada, que joga com as metáforas ou o fantástico.
Mas essa preocupação de dizer, de considerar que de fato há um outro ali e que esse outro, é com ele que a gente faz, não é nem para ele, é com ele… Creio que essa é a diferença: achar que você faz teatro para alguém, mas você faz com alguém, pois tudo acontece a partir desse encontro, desse entre. E quando você percebe que é preciso que haja essa correspondência, aí as coisas começam a pelo menos fazer um pouco mais de sentido, tanto filosófico quanto no sentido das coisas que você fala, da comunicação mesmo.
Beth
No caso de Love, love, love, como eu dizia, é um espetáculo que perturba, incomoda. Você falar, comunicar com muitas pessoas e ao mesmo tempo não facilitar e não trabalhar só com reconhecimento, mas trabalhar com estranhamento, isso é muito importante. Quando você vê a diferença entre a montagem da Broadway e a de vocês, no momento em que vocês estão trabalhando, isso influencia? É uma discussão em sala de ensaio, muda ou altera o trabalho de alguma forma?
Yara
Eu não vi a da Broadway não, falei aqui porque o cara falou e a gente viu uns trechos na internet dos quais a gente não gostou, mas às vezes é ótimo. Mas a gente se preocupa com isso, de como fazer.
Débora
Acredito que isso já está muito nas escolhas, nos atores que a gente chama, na compreensão daquele texto. Então acontece também de uma forma muito fácil, nesse sentido.
Yara
Tanto eu quanto a Débora, por exemplo, somos atrizes que realmente gostamos de personagens. Estamos falando aqui de correspondência e no teatro a gente trabalha sempre em correspondência com tudo. Uma das coisas mais legais de trabalhar personagem é quando você realmente consegue relacionar o interior dessa personagem com o que ela comunica de imediato. E eu e Débora, durante os ensaios, tudo que a gente já trabalhou juntas, mesmo eu dirigindo ou atuando juntas, a gente tem uma preocupação muito grande em saber como que nós podemos caracterizar essa personagem numa comunicação primeira, aquilo que o Stanislavski fala, o dentro e o fora estarem de fato de mãos dadas e compondo para que as coisas sejam potencializadas, ou que o Brecht fala de outra maneira sobre os gestus. É uma preocupação constante.
Então a gente prospecta em várias frentes. Começa com estudo iconográfico, que é mais abrangente no que as imagens emanam. Vai da literatura e passa pelo cinema, pela música, pelas artes plásticas, moda, até a gente chegar a uma imagem que a gente acha que possa ser próxima dessa imagem da personagem. É claro que a gente não vai mimetizar essa imagem, mas se chegou e conseguiu condensar de alguma maneira a personagem naquela primeira imagem isso já vai ser para a gente também uma chave do que essa personagem é. Criar meio que uma genética dessas personagens é um percurso muito legal.
Eu e Débora temos uma relação, de fato, de muito contato, tanto profissional quanto pessoal, então no WhatsApp a gente vai ali num diálogo muito intenso com imagens, com trechos de filmes, de livros. Isso nos ajuda a ampliar acerca do que a gente quer falar. Talvez essa fala direta, essa comunicação direta deva-se a isso também porque a gente coloca tudo que faz na rua, no mundo. Claro que passa por essa idealização, mas a gente vai para lugares incríveis, superidealizados. A gente começou com a Gaia e chegou na Costanza Pascolato, mas aí a gente aumenta tudo isso e mistura ao que apreendemos do mundo, da rua.
Abre para a participação do público
Eulane – analista bancária e estudante de teatro na Escola de Atores Wolf Maya
Sou muito fã dessa peça, vi quatro vezes e em todas fui tocada de forma diferente, talvez por isso eu tenha visto tantas vezes. Tanto ela quanto Contrações trabalham assuntos muito presentes na nossa vida em relação à carreira e, de certa forma, é algo dramático para a nossa geração dos 20, 30 e poucos anos. Acho que a forma com que vocês trabalham com isso nas duas peças é um tanto quanto sutil. Eu gostaria de saber como que optam por trazer essa sutileza abordando assuntos que são tão pesados. E digo isso porque em alguns momentos de Love, love, love as pessoas da plateia estão dando risadas, mas não sei se estão dando risada porque estão se identificando com aquilo, e por causa disso é uma risada de nervoso, ou se realmente acharam engraçada uma situação que é muito dramática. Como vocês optam por trabalhar esses assuntos dramáticos?
Débora
Essa história das risadas e da reação do público, tanto em Contrações quanto em Love, love, love a gente tem isso, muito. São peças que quando li, eu ria, em alguns momentos me identificava, me divertia, mas eu achava muito triste, eram assuntos que me tocavam, principalmente em Contrações. Creio que o Mike Bartlett tem isso e acho que o riso tem a ver sim com a identificação. Claro que a gente tem dias muito distintos de plateia. O riso também contamina, então tem dias em que isso acontece de forma muito extrema e acredito nisso que você diz da identificação e de um certo nervosismo também com aquilo.
Você sai de sua casa, vai ao teatro, está ali para assistir ao espetáculo, tem cenas que são tão próximas do que você enxerga na sua vida que aquilo te causa alguma reação, e isso pode vir através do riso mesmo. As pessoas assistem e se identificam com pessoas que elas conhecem, com atitudes que elas tomam.
Não acho que seja sutil. Talvez seja isso quando a Yara fala que o teatro se faz com o público. Talvez seja realmente uma reação porque a gente tem plateias diferentes que às vezes não reagem tanto dessa maneira e há sessões que são mais animadas. A gente não muda o espetáculo nem tenta fazer de uma maneira sutil, acho que realmente é um texto que causa essa estranheza em que você está rindo e, no final, vai silenciando. As pessoas vão ficando quietas e caladas e saem com uma pergunta enorme. E isso que é tão interessante no caso desses dois espetáculos.
Yara
Para a gente que está em cena, são várias as nossas intenções, as intenções filosóficas, políticas e tudo mais. A gente tem às vezes uma plateia muito ruidosa e toda vez que a gente percebe isso, eu e Débora, acho que no Love, love, love todos os atores, mas no Contrações muito eu e Débora, a gente compreende que tem um lugar ou alguns acentos que a personagem tem, inclusive o Mike Bartlett propõe às vezes alguns acentos ou uma pausa ou um silêncio porque ele é completamente cheio de métrica, tem uma legenda que ele faz para que a gente fale o texto com aqueles tempos que ele propõe.
Então, quando a gente percebe que a plateia está talvez meio perdida no seu riso, contaminada, maluca, porque às vezes tem uma coisa meio enlouquecida do riso também, a gente tenta de alguma maneira de ter uma rédea meio curta ali, segurar um pouco mais no silêncio ou não dar aquele acento que normalmente a gente dá para que a plateia abaixe. Porque o riso é sim um elemento de transcrição, é um elemento inclusive dissipador, ele começa pela identificação para depois dissipar. O riso é uma identificação que vai se transformar em algo um pouco mais crítico. O riso tem esse lugar do divertimento, do entretenimento, da identificação, mas, sobretudo, ele é o lugar que consegue transgredir uma realidade para a partir dessa transgressão você começar a pensar sobre ela, ou a partir dela. Mesmo com esse riso que eu digo que é meio ensandecido, que às vezes a gente lida com ele, as pessoas saem com essa perguntona no final dos dois espetáculos.
Débora
O espetáculo vai chegando ao fim e vai ficando mais pesado, mais denso. Eu faço uma personagem [Rose] que ao final não tem nada que possa gerar esse riso, estou falando de um assunto muito sério e a personagem da Yara [Sandra] vai falando algumas frases que geram essa risada e fico pensando até que é quase um respiro dessa plateia. Porque a cena é tão tensa que é um momento também para as pessoas darem uma respirada no meio dessa discussão que vai ficando tão pesada.
Paula – fotógrafa (por meio da voz da intérprete de Libras Naiane Olah)
Eu não assisti à peça porque não teve nenhuma sessão de acessibilidade [como a interpretação das falas em Língua Brasileira de Sinais, Libras, durante o Encontro com o Espectador], mas vim aqui e achei bastante interessante, pelo que vocês estão falando, acho que tem muita coisa que tem a ver com a minha própria vivência enquanto pessoa surda. E até sobre essa questão da risada, para quem é surdo, quando não tem acessibilidade a gente fica perdido durante a sessão do espetáculo porque a gente tem que ficar pensando no contexto, tentando fazer leitura labial e são muitas entradas para conseguir acompanhar as cenas como um todo.
Débora
A gente teve dois dias com acessibilidade na primeira temporada, nos últimos finais de semana da peça. E vamos ter agora mais algumas apresentações, a gente vai colocar nas redes sociais os dias agendados. É importante divulgar.
Yara
Aliás, isso é uma preocupação do Grupo 3 para que a gente possa fazer o espetáculo, a gente até afirmou isso, que queremos comunicar com as pessoas e para comunicar é preciso que a gente tenha espetáculos com acessibilidade.
Leandro – analista administrativo e estudante de Direito
Para a gente que faz Direito, o pessoal que vai trabalhar com advocacia, a gente sabe que vai trabalhar no nosso dia a dia com questões do tipo convencer, sustentar ideias, e isso eu percebi que tem uma correlação muito grande com o teatro. Vocês mesmas defendem o ideal, a ideia daquela personagem, e fazem isso com muita autonomia, passando aquilo que a personagem quer falar para o público. Queria saber como vocês fazem isso com tanta autonomia, se têm alguma coisa que facilita, se vocês conhecem muito a personagem antes ou se já fazem isso com naturalidade ou se trabalham isso muito antes de chegar à cena.
Débora
A Yara dá aula de teatro para alunos de Direito.
Yara
O teatro e o Direito têm matérias correlatas. A gente trabalha com o homem que falhou. Tanto no teatro quanto no Direito, se não tiver o homem que saiu do caminho, que falhou, parece que a gente não vai existir. Tem uma diferença que o Direito vai julgar, vai até sentenciar, e no nosso caso não, a gente não vai fazer isso, é melhor que a gente não faça isso. Mas tanto para nós quanto para você que vai dar sua sentença, que vai julgar ou seja lá qual for a instância que você vai trabalhar da ordem jurídica, é fundamental que você reconheça a história dessa personagem; é fundamental que você reconheça que essa personagem não tem um lado só, que você pode circundá-la para ver paisagens e pontos de vista diferentes.
Quando eu dou aula de teatro no curso de Direito da Faap [Fundação Armando Alvares Penteado], essa é a estrutura do curso: como é que você lida com aquele que não é você? E aquele que não é você, e que falhou? E como que você pode, de fato, ter esse sentimento de alteridade com esse sujeito? E não é nem empatia, é muito maior porque está muito mais ligado à cidade, às estruturas, ao mecanismo da cidade.
Então, como você pode ter essa relação de alteridade, reconhecer o homem com sua história e sua cultura? Aí sim ele vai ser defensável, aí sim você pode circundá-lo e ver mil outros pontos de vista sobre ele, e inclusive poder ver qual é a paisagem que ele está vendo. A gente faz um pouco disso no teatro. É claro que para nós, atores, há o exercício contínuo para também ir desenvolvendo as nossas habilidades expressivas, e que você também pode fazer isso de alguma maneira. Acho que o teatro pode te servir não para ser ponte para desenvolver habilidades, mas para ser alguma coisa que possa realmente revolver sua vida e a sua vida em relação aos outros e às circunstâncias. O teatro é muito bom para o Direito, e é isso que a gente faz.
Leni – professora
Pegando o gancho sobre a acessibilidade, comentada há pouco, por exemplo, eu como professora tenho o privilégio de morar em São Paulo, um grande produtor de boas peças de teatro, é maravilhoso, tem muitas oportunidades, tenho uma lista enorme de peças que eu gostaria de assistir. A questão da acessibilidade, de valores… Vocês se apresentaram em unidades dos CEUs com a outra peça e gostaria de saber se vocês pretendem, se está dentro dessa programação de vocês atender a essa fatia de público.
E a pergunta que eu realmente queria fazer: como vocês são um grupo, uma companhia, só ficam na parte da criação, do fazer artístico ou também são produtores? Queria que vocês falassem um pouco sobre ir atrás de empresas, patrocínios que também queiram comprar a ideia de vocês e colocar para nós, plateia, ouvir o que vocês têm para dizer e partilhar isso.
Yara
A primeira parte, quando você fala da acessibilidade, é uma preocupação do grupo, sim, sair desse centro de São Paulo. Aliás, a gente percebe que quando a gente sai, por exemplo, em Contrações a gente fez ensaios abertos em cidades do interior de São Paulo. Então, os nossos ensaios aconteciam na frente do público. E quando a gente faz esse deslocamento de sair desse centro de São Paulo, que é reconhecido como São Paulo cultural, e vai para outro lugar, é impressionante como a gente de fato tem um acréscimo na relação com o público.
E esses espetáculos eram gratuitos. Eu tenho a impressão que a qualidade é diferente também, eu me sinto muito nutrida quando a gente sai desse nosso lugar, quando a gente sai desse lugar especular que é esse centro-oeste de São Paulo. E toda vez que a gente então tangencia isso, que vamos aos CEUs, esse lugar que foi de fato colocado na periferia, quando a gente vai para esse lugar – e acho que Débora compartilha disso – é a hora em que a gente é muito nutrido em relação ao que a gente faz porque falamos aos nossos, mas não com os nossos viciados e que têm a mesma máscara que a gente tem; que têm o mesmo vocabulário e que trazem, de fato, histórias muito distintas das nossas. E quando a gente vê que estamos comunicando com todo mundo, é o momento em que a gente aumenta o nosso trabalho. A gente faz isso e tem a preocupação, a vontade e o empenho de continuar fazendo.
Débora
Em Contrações a gente fez um trabalho até muito interessante. Não só apresentava nesses lugares, nas cidades interioranas, como também fizemos ensaios abertos e leituras abertas às vezes em lugarejos que tinham uma estrutura muito difícil, inclusive de teatro. Dois ou três anos depois a gente voltou a essas localidades com o espetáculo pronto.
Já em relação à produção, eu falo que no ano passado a gente teve muita sorte. A gente estava sempre em edital público, um momento muito difícil do grupo, que quase acabou porque estava complicado mesmo e não é fácil, está difícil para as artes em geral. E para teatro, então, está bem complicado. Pois esse ano a gente conseguiu, estamos com apoio da Vivo, conseguimos nos apresentar e estamos em circulação também, mas por muitos anos a gente não conseguiu um patrocínio, por exemplo, de uma empresa. Acho que o Grupo 3 ficou seis ou sete anos sem patrocínio de uma empresa para se apresentar, era sempre através por meio de editais. A gente ia correndo atrás dessas pequenas coisas.
Yara
Agora a gente está passando por um momento terrível. A gente viu o que aconteceu ali na Galeria Olido há pouco tempo [em 7 de agosto o movimento articulado por grupos de teatro realizou manifestação em frente ao prédio que abriga a Secretaria Municipal de Cultura, no centro paulistano, em defesa do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, sob reação desproporcional da Guarda Civil]. E não dá nem para entender como a gente ainda pode ser vítima de um desmando daquele: pessoas na paz, gritando por um tipo de política cultural que já deu certo, sendo reprimida daquela maneira.
Também é muito triste ver alguns grupos fechando as suas sedes, ver que a gente não tem mais os espaços d’Os Fofos Encenam, da Cia. Teatro Balagan… Realmente, a gente está numa derrocada muito grande. Houve um tempo em que a gente tinha um pouco mais de esperança em relação a isso.
No nosso caso, a gente não tem uma sede porque não temos um trabalho contínuo de treinamento. Por muito tempo a gente usou a sede de outros grupos para ensaios ou até para oficinas e é muito triste mesmo ver esses grupos fechando os lugares que eles conseguiram, e não só conseguiram ter a possibilidade financeira, mas que construíram ali um lar de experiência teatral. De como a Balagan, para além da sua sala de ensaio, criou ali um lugar, um círculo de afetos teatrais, e a mesma coisa com Os Fofos.
Neste momento a gente está com o privilégio do patrocínio da Vivo em duas instâncias, com a temporada de Love, love, love e na circulação de Contrações, e isso inclusive nos salvou financeiramente porque a gente estava numa derrocada total, e nem tendo uma sede. A gente vê esse movimento da Maria Thais fazendo as oficinas com o [dramaturgo] Luís Alberto de Abreu e várias outras pessoas maravilhosas, e nem isso sendo capaz de dar sustentabilidade. É complicado.
Beth
Só para dizer que a Maria Thais, a diretora da Cia. Teatro Balagan, de São Paulo, já participou do Encontro com o Espectador.
A cada edição gravamos o áudio, transcrevemos e depois editamos no site Teatrojornal. Por isso a gente pede para as pessoas se identificarem, para que elas sejam atribuídas nas perguntas aqui.
Também acho importante dizer que o que ela está falando sobre a Galeria Olido é que neste momento existe um desmonte, um ataque a uma das leis, um desses editais, que elas falaram que antes de um patrocínio o que as sustentou foram os editais públicos.
O Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo é uma dessas leis conquistadas por uma luta dos artistas, por meio do movimento chamado Arte contra a Barbárie, que conquistou essa iniciativa e é uma lei voltada para companhias e grupos teatrais, para as suas sedes, para os seus trabalhos.
Vou dar só um exemplo que é o da Trupe Sinhá Zózima, que já passou pelo Encontro com o Espectador também. Esse núcleo artístico sediado em São Paulo faz teatro em ônibus e agora, inclusive, em ônibus de linha, circulando junto com os usuários comuns. Você entra no ônibus para ir para a sua casa, embarca no Terminal Parque Dom Pedro II para ir aos terminais Santo Amaro ou Cidade Tiradentes, e esse grupo está fazendo um trabalho de altíssima qualidade no interior do veículo.
Não é o amador que chega e passa o chapéu, é um trabalho que envolve pesquisa de linguagem corporal, uma dramaturgia para o ônibus, de forma que você pegue num ponto e salta dois pontos depois e isso faça sentido para você, reverbere alguma coisa, ou você acompanha inteiro.
Um trabalho desse não é sustentado com ingresso, tem que pensar isso: eles não vão cobrar ingresso dentro do ônibus. Esse tipo de proposta precisa mais do que nunca de um apoio público. As pessoas falam que se está dando dinheiro para o teatro, para os artistas, mas não, não é para os artistas, é para nós, é para a sociedade, para os contribuintes. É o nosso dinheiro, dinheiro de imposto.
A Lei de Fomento surgiu, foi muito importante e dá para pesquisar isso, tem livros sobre isso para quem se interessar, e de repente esse programa corre risco de ser desmontado. Na verdade, o Fomento teria que ter sido muito ampliado, brigou-se muito por isso. Eu cheguei a ir à Brasília como jornalista [na época pelo Estadão] para acompanhar a pressão que eles fizeram na comissão de cultura tentando ter uma Lei de Fomento em nível nacional, que fosse uma lei que apoiasse tanto um espetáculo que nasce de atores que se juntam e fazem um espetáculo, que não são um grupo constante, como pegar um espetáculo que já está pronto e seus criadores pretendem circular pelo Brasil, porque o Brasil é imenso.
Como é que você circula pelo Brasil com um espetáculo pagando hotel, pagando comida, com ingresso que é barato? Por isso existem os editais para circulação. Isso é muito importante. E aí a gente volta para o Love, love, love porque se a gente não briga por isso, se a gente acha que a briga é deles, lá dos artistas, nós vamos perder o teatro – é de todos nós.
Às vezes tem outro discurso: tem gente que não tem escola, não tem comida e vai apoiar a arte, mas é tudo junto. E ter arte ajuda a ter comida porque ajuda a ter espírito crítico para brigar pela comida. Só fazendo essa interrupção para dizer que nesse momento tem uma luta dos artistas por essa Lei de Fomento, que é de 2002 e que está sendo desmontada, como está sendo desmontada a Previdência em nível federal. É a rede de solidariedade [tema também da peça] que vai se desmontando: parece que voltamos a ser cada um por si e Deus por todos na selva da cidade, uns matando aos outros e disputando cada centavo. Pois temos de sair disso.
Fernanda Maria Cortez – desempregada
A Débora Falabella me conhece, eu trabalhei como vendedora há dez anos em São Paulo, mas vivia indo para o Rio de Janeiro porque lá é minha praia. Estava morrendo de saudades porque eu vivo no Itaú Cultural e na Fiesp, e não sou mais assalariada. Tenho um amor tremendo pela Débora, acho uma atriz maravilhosa, conheço vários atores globais. O Brasil tem atores maravilhosos. E eu queria saber se vai ter a possibilidade de ter sessões gratuitas da peça Love, love, love. Isso não apenas para mim, mas também outras pessoas que não têm condições financeiras de ver o espetáculo.
Débora
A gente quer fazer sim. Sempre, em todos os espetáculos em cartaz em São Paulo, no teatro que cobrava ingresso, de todos eles depois a gente fez uma temporada popular e acho que até mesmo aqui no Itaú Cultural a gente já, fez por exemplo, o Contrações. Então, com certeza a gente vai fazer o espetáculo em algum momento sim.
Yara
Inclusive, tem uma contrapartida que a gente ofereceu para a lei e que a gente tem que fazer, tem que ter contrapartida social, a gente leva o espetáculo a algumas instituições.
Denise – jornalista e estudante de Direito
Queria voltar na intervenção da colega espectadora quando ela falou sobre o riso. Achei bem interessante porque, quando eu me vejo na personagem, dou risada porque eu me sinto ridícula. Também é uma forma de alívio porque não é só comigo, acontece com mais gente. Eu sempre ouço falar nesse paralelo entre o drama e o cômico, seria trágico se não fosse cômico. Como é isso no teatro? Como é que vocês montam a personagem? Vocês sentem isso de que de repente estão num dramalhão, numa cena de enterro, me segura senão vou junto, por exemplo, e aí você começa a rir porque se lembra daquela sua tia que fez o mesmo drama? Como é isso?
Débora
Acho que andam juntos, não tem muito como você separar, ainda mais essas personagens que são muito humanas, muito identificáveis com pessoas que a gente conhece. Quando elas são muito reais o trágico e o cômico andam juntos. Então não é algo muito que a gente pensa, pelo menos no meu caso. Nunca fiz uma peça que era uma comédia, eu acho que tenho até dificuldade, pois é mais difícil você atingir o público pelo riso, e só para isso. Bem difícil, não sei fazer. Mas num espetáculo assim, que ande pelos dois lugares, a gente não pensa muito. As personagens são tão reais e tão próximas que acabam gerando essas reações tanto na plateia quanto na gente.
Yara
Acho difícil de pensar essa coisa de um gênero puro, tragédia, comédia. Tem uma tragédia que é superfamosa, a Antígona [de Sófocles], com a qual eu até trabalho com os estudantes de Direito, e nesse texto isso fica muito claro. Aquela tirania do rei Creonte em relação à Antígona e ela já lá na ponta da maldição, já sendo enterrada viva. Tem uma cena em que o Sófocles coloca um guarda medroso, morrendo de medo do Creonte, uma passagem engraçada. Isso foi feito cinco séculos antes de Cristo, quando aquela tragédia surgiu como um gênero formal, oficial e ali não se conseguiu ter o gênero puro. Então você imagina hoje em dia, as coisas estão muito mais voláteis e isso que a Débora falou é perfeito: quanto mais humano mais tudo cabe ali dentro.
Márcia Galeno – estudante de Direito
Eu estive na peça com o meu marido e sob a orientação do professor Wanderley Costa Lima. Quero cumprimentá-las, achei bastante interessante, sobretudo a última cena, que para mim foi a que mais me chamou atenção porque vai ao encontro do tema e do nome da peça, em que a personagem da Débora chama atenção dos pais pedindo não só atenção, mas uma casa, ajuda financeira. E, naquele momento, eu observo que os pais dizem que já fizeram tudo o que tinham de fazer, e isso eu achei muito importante porque eu não sou mãe, mas vejo que os pais têm essa preocupação constante e para a vida toda. Aquele ponto foi crucial para mim porque mostra que a missão foi cumprida e ela pode seguir. Na peça há muitos conflitos, há muitos interesses, é uma mistura de sentimentos. Sou uma espectadora que também dou muita risada, não só pelo fato de me ver em alguma situação, mas o brasileiro tem muito disso, ele ri até mesmo na tragédia, então é uma característica. Parabéns.
Valmir Santos – jornalista e crítico
A pergunta é para a Débora. Gostaria de saber desses 13 anos de trabalho continuado com o núcleo artístico. Como a gente ouviu na fala da espectadora Fernanda, o público tem uma expectativa muito grande de ver a atriz da televisão no palco. Pelo repertório do Grupo 3 de Teatro que tenho acompanhado os espetáculos sempre quebram paradigmas da artista de telenovela com o conteúdo e a forma desse material levado à cena. Isso faz com que o público muitas vezes saia com uma referência outra dessa arte do teatro. Dentro da cultura televisiva, entre os seus pares, o cotidiano desse seu trabalho com o audiovisual, como você percebe que a arte do teatro tem sido praticada e pensada nesse meio?
Percebo que, assim como você, outros colegas que atuam na televisão têm demonstrado mais disposição e envolvimento com o teatro de pesquisa. A circulação pelos CEUs e os ensaios abertos pelo interior, compartilhando um espetáculo em construção, essas ações soam coerentes com a trajetória e as ideias que a gente ouviu do grupo aqui. Então, como isso repercute no seu outro cotidiano?
Débora
Eu estreei na televisão quando saí de Belo Horizonte. E, logo que eu estreei, a gente ainda não tinha uma companhia, mas produziu um espetáculo que a Yara dirigia, que era o Noites brancas, baseado num texto do Dostoiévski. Então já era o embrião. Desde o início, na minha trajetória de teatro junto com a televisão, tive uma linha da qual nunca abandonei. O que eu acho que sempre foi uma alegria grande é que desde Noites brancas muitas pessoas iam ao teatro com uma expectativa e saiam com uma outra ideia do que iam assistir. Aliás, nesses primeiros passos eu fazia muita coisa com as quais muitos jovens se identificavam.
Bem, a possibilidade de ter levado uma pessoa para o teatro, uma pessoa que achava que ia ver algo parecido com o que já via na televisão, e ela sai de lá com um texto que talvez nunca tivesse lido ou que, a partir dessa experiência, quem sabe poderá vir a pesquisar sobre aquilo é algo em que sempre acreditei: é isso que eu quero seguir.
E em nenhum momento desmerecendo, porque acho também que na televisão exitem muitas possibilidades interessantes de atingir o público com determinados trabalhos. Assim como muitos artistas que fazem isso também, que optam por essa busca no teatro, como a Marjorie Estiano e a Renata Sorrah, que está em um trabalho em parceria com a companhia brasileira de teatro, para lembrar de duas atrizes. É claro que também existem artistas que aproveitam essa projeção para fazer no teatro uma comédia para um grande público.
Então são duas escolhas. E se trata mesmo escolhas, do que você quer levar para esse público que já te assiste na televisão, que já se identifica com o seu trabalho, e proporcionar a ele ver uma outra coisa, um outro lado. Isso, para mim, é a minha onda. Acredito em mudar mesmo o olhar e a referência e trazer para as pessoas outras qualidades de trabalho.
Yara
Queria agradecer ao convite de vocês, dizer que o Teatrojornal é um site que para nós artistas é muito importante. Às vezes a gente tem assim uma aspereza à crítica, num momento ou outro, mas temos um respeito muito grande pelo site porque, assim como nós, artistas, estamos o tempo inteiro nos formando e tentando verticalizar a nossa busca em relação ao teatro, eu acho que vocês também, assim como [a revista eletrônica de críticas e estudos teatrais] Questão de Crítica, no Rio de Janeiro. Isso faz muita diferença porque é um exercício crítico que está fora da grande mídia e cada vez mais a gente está sendo condensado em algumas estrelas, bonequinhos e tudo mais.
Então, quando a gente tem a possibilidade de, de fato, dialogar com vocês, nós artistas, é o momento, porque a gente sabe que tanto a nossa experiência prática e de pensamento é importante como esse tipo de sistematização ou esse pensar um pouco mais acadêmico sobre a arte, que é o que vocês fazem. Para nós é muito valoroso, sobretudo porque normalmente o que a gente tem são quatro linhas, bonequinhos e estrelas. Não que a pessoa que faça isso não seja uma pessoa capaz, mas é uma pessoa que de fato está vivendo uma subjugação do seu próprio ofício e que pra gente isso às vezes é difícil. Às vezes a gente tem um determinado trabalho que é desenvolvido, que não necessariamente está no lugar do bom ou do ruim, do certo ou do errado, mas está num lugar de um processo mesmo de formação como artista, e de repente você ser desabilitado ou não com estrelas, bonecos, conceitos como muito bom, excelente, ótimo, isso pra gente não é valoroso do ponto de vista da troca, do diálogo.
Débora
Queria agradecer também. Esse diálogo com o público é sempre muito enriquecedor. Nesse tipo de conversa, de troca, a gente também sai com mais perguntas até, mas que vão para a cena, com certeza, para os próximos espetáculos. Obrigada.
Beth
Para a gente, a diferença básica entre o espectador e o crítico é que o crítico sai do teatro e fica lá um tempão investindo naquele espetáculo, pensando sobre ele, lendo referências, pensando nas próprias incertezas e buscando como elaborar e compartilhar um pensamento sobre aquilo. Porque quando não vai fazer a crítica, a gente sai do espetáculo, pensa um pouquinho, conversa um pouco ali no restaurante, vai para a casa e aquilo passa porque você entra no seu dia a dia. Mas quando você tem de escrever uma crítica, você convive, fica ali brigando com aquilo, elaborando, tentando pensar juntos. Essa, em resumo, é a ideia.
Yara
E acho que tem uma coisa, de todos vocês que fazem parte do Teatrojornal, que é não propor algum aspecto diferente do espetáculo que viu. Às vezes a gente tem algumas críticas que propõem coisas novas para o espetáculo, mas o espetáculo é aquele, você não tem que propor nada, só tem que se relacionar com ele. Acredito que a relação de respeito é fundamental para que haja sempre crescimento e avanço de ambas as partes.
Beth
A ideia do Encontro com o Espectador é justamente refletir a partir do que foi proposto. Essa conversa é para que a gente entenda melhor o que o espetáculo propõe, o que levou seus criadores a determinadas escolhas. E os artistas também não dão conta de tudo, sabem que alguma coisa escapa do que se tentou fazer. Pois estamos aqui, na prática da crítica e ao lado dos espectadores, todos com essa dimensão do ser humano: sempre tentando realizar coisas, em um examinar constante sobre todos os planos da vida, da arte e da cultura.
.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de Love, love, love
.:. Leia a coluna do Encontro com o Espectador no site do Itaú Cultural, a respeito do espetáculo
.:. Leia a íntegra de outras edições do Encontro com o Espectador, desde junho de 2016
.:. Visite o site do Grupo 3 de Teatro
Equipe de criação:
Love, love, love
Autor: Mike Bartlett
Tradutora: Maria Angela Fontes Frederico
Diretor Artístico: Eric Lenate
Com: Augusto Madeira, Débora Falabella, Mateus Monteiro, Alexandre Cioletti e Yara de Novaes
Iluminação: Gabriel Fontes Paiva
Trilha sonora: L.P. Daniel
Cenário: André Cortez
Figurinos: Fabio Namatame
Transportadora oficial: Avianca
Assessoria de imprensa: Pombo Correio