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Crítica

Em estado de recusa

17.3.2019  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

Tudo mal havia começado quando um aventureiro chamado Diego Cao, o português, descobriu o estuário do rio Congo em 1482. Depois, no dia 26 de setembro do ano seguinte, ou seja, em 1885, uns gângsteres decidiram em Berlim que o Congo seria uma colônia francesa. E isso explica porque uma semana depois, 1960, nos emprestaram a independência em troca de um neocolonialismo negro no comando do país. Putos. Dois dias depois, em 1969, convidamos o marxismo e o leninismo pensando que iriam agradar, mas os europeus vieram em seus cavalos de conquistadores para acabar com a cultura do atraso, de golpes de estado e de tribalismos, e implantar a democracia de uma vez por todas.

Em tradução livre, o texto acima, com seus vertiginosos saltos temporais, é parte da dramaturgia de O alicerce das vertigens, do congolês Dieudonné Niangouna apresentado na 6ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. “Vou fazer desse país uma democracia e quem for contra eu prendo e arrebento” – disse o general João Figueiredo, um dos que comandaram o Brasil no período de regime ditatorial que sucedeu ao golpe militar de 1964.

Até quando, para um congolês – ou quem sabe para um brasileiro negro vivendo em uma área periférica conflagrada sob a opressão violenta das milícias –, a observação do mundo continuará sendo feita ‘através dos buracos abertos pela Magnum 44 no coração do pai’? Não há respostas em ‘O alicerce das vertigens’, de Dieudonné Niangouna, só uma grande, visceral, verborrágica e sangrenta imagem de recusa da narrativa dominante sobre o que é ser África

Se há evidentes diferenças entre os processos de colonização, os pontos de contato são suficientes para a apreensão da plateia brasileira das formas e temas que alicerçam a teatralidade de Dieudonné. Afinal, o choque cultural entre europeus e nativos de África e América se deu no mesmo período histórico, movido pela expansão comercial que irá sedimentar o sistema capitalista ocidental.

O arcabouço filosófico da chamada era moderna, período em que a ciência ganha centralidade e o paradigma do progresso justifica o aculturamento à força, sempre que preciso, dos povos ditos primitivos está no alicerce das ações colonialistas. Um pensamento que faz do desconhecimento da língua francesa e da cultura teatral de origem grega – para ficar em duas citações do espetáculo – marcadores de atraso cultural.

Dieudonné nasceu em Brazzville, capital da República do Congo, em 1976, região que foi “dividida como uma salsicha”, território de extração de pessoas (para serem escravizadas), marfim e diamantes, onde cerca de 60% da população foi dizimada ao longo da dominação francesa. Em sua terra natal tornou-se ator e autor, porém a guerra civil nos anos 1990, uma das mazelas do neocolonialismo, obrigou-o a exilar-se na França.

Nesse espetáculo que é transcriação cênica de um romance de sua autoria de mesmo título, Les socles des vertiges, Brazzville, mais especificamente os bairros de Crâneurs e de Mouléké, dois dos mais pobres e violentos da cidade, são o território por onde transita uma dupla de irmãos em disputa por uma mesma mulher. Em comum um passado a ser investigado. Por meio desse vínculo familiar o autor faz reverberar algo como a busca por mito de origem, roto talvez, até inalcançável, algo no passado que pudesse explicar, ou evitar, o recorrente assassinato do futuro, representado pelo filho na metáfora familiar.

Guto Muniz/Foco in Cena

Cena de ‘O alicerce das vertigens’, transcriação cênica do romance do ator, diretor e dramaturgo Dieudonné Niangouna, congolês radicado na França e fundador da Compagnie les Bruits de la Rue

Tal narrativa, no entanto, vislumbrada em meio aos solilóquios (quase não há diálogos), não chega a ser um fio condutor em forte relevo. A encenação é construída por sobreposição entre monólogos indignados que informam sobre a história colonial e imagens reproduzidas em vídeo de animais como bois e aves sendo abatidos, sangue saltando aos jorros enquanto seus corpos se debatem. Como escapar do aprisionamento cultural que insiste em sintetizar em imagens similares de carnificina toda uma centenária experiência de choques culturais, de resistência ao europeu, de aculturamento e de busca por libertação?

A indagação não surge ingênua, mas problematizada na matéria pulsante da cena, e produz uma espécie de descolamento do campo do colonizador para remeter à primeira parte do título, ao que está na base do movimento vertiginoso da História: afinal, quem somos para além do massacre do aculturamento colonial? É preciso encontrar uma identidade originária para reverter o processo? Ou tal crença é mais um aspecto cultural imposto aos “bárbaros”? Talvez resida no nosso complexo de vira-lata o motivo que nos faz andar em círculos e entender como falta ou excesso elementos simplesmente fora da ordem do pertencimento cultural.

Como construir uma sociabilidade fora do colonialismo, se é por meio do uso verborrágico do idioma francês que a raiva se expressa? Na encenação, o ritmo acelerado dos discursos parece querer demonstrar como as palavras podem bloquear a reflexão impedindo o tempo exigido por uma escuta que leve a decantar as experiências históricas. Até quando, para um congolês – ou quem sabe para um brasileiro negro vivendo em uma área periférica conflagrada sob a opressão violenta das milícias –, a observação do mundo continuará sendo feita “através dos buracos abertos pela Magnum 44 no coração do pai”. Não há respostas nessa peça, só uma grande, visceral, verborrágica e sangrenta imagem de recusa da narrativa dominante sobre o que é ser África.

Leia mais sobre o espetáculo no site da MITsp

Guto Muniz/Foco in Cena

A narrativa em torno de dois irmãos em disputa por uma mesma mulher abarca questões de territorialidade, identidade e pertencimento a um lugar

Serviço:

Onde: Sesc Pinheiros – teatro Paulo Autran (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo, tel. 11 3095-9400.

Quando: Última apresentação domingo, dia 17, às 18h

Quanto: R$ 20 a R$ 40

Equipe de criação:

Dramaturgia e direção: Dieudonné Niangouna

Com: Sthyk Balossa, Dorient Kaly, Papythio Matoudidi, Arnold Mensah, Lazare Minoungou e Dieudonné Niangouna

Músico: Pierre Lambla

Vídeo: Aliénor Vallet

Cenotécnico: Nicolas Barrot e Laurent Vergnaud

Iluminação: Laurent Vergnaud

Som: Félix Perdreau

Cenografia: Ludovic Louppé, Papythio Matoudidi e Dieudonné Niangouna

Figurinos: Ulrich N’Toyo

Equipe de produção: Antoine Blesson, Emilie Leloup e Allan Périé

Produção: Compagnie les Bruits de la Rue

Coprodução: Théâtre Nanterre-Amandiers, La Villette – Paris, Festival International des Francophonies en Limousin – Limoges, Théâtre de Saint-Quentin-en-Yvelines e ARCADI

Suporte : DRAC Île-de-France, Centre National du Théâtre, Fonds SACD Théâtre, Institut Français, ADAMI e Espace Tiné – Brazzaville

Apoio: Institut Français Paris, Institut Français du Brésil e Consulado Geral da França em São Paulo

 

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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