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Crítica

Feridas da flor da idade

2.4.2019  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

Como se viu em boa parte da programação da MITsp 2019, Paisagens para não colorir, espetáculo da Compañía de Teatro La Re-Sentida, do Chile, parte de episódios e histórias verídicas. Nesse exemplar de teatro documentário, foram considerados os testemunhos de adolescentes entre 13 e 16 anos. Durante mais de um ano de workshops e entrevistas, a equipe do diretor Marco Layera investigou não apenas as violências a que são submetidas as garotas de seu país, como também garantiu que seus questionamentos e subjetividades tivessem espaço.

Em uma peça dirigida por adultos – e direcionada também a um público dessa faixa etária – tenta-se evidenciar o que seria uma visão “adultocêntrica” do mundo. Supostamente redutor, esse ponto de vista buscaria normatizar os comportamentos de diferentes seres humanos a partir dos pressupostos de um único grupo: adulto, masculino e heterossexual.

No espetáculo chileno ‘Paisagens para não colorir’, que passou pela MITsp com elenco composto exclusivamente por mulheres adolescentes, os discursos não se direcionam apenas a culpar uma difusa incompreensão dos ‘adultos’, mas a desvelar mecanismos sociais de controle e disciplina

Ao tentar dar voz a uma parcela social marginalizada – além de mulheres, tratam-se de adolescentes – a La Re-Sentida buscou o que seria um modo coletivo de criação. Ainda que as funções dentro da equipe técnica estivessem claramente delimitadas, Paisagens para não colorir incorporou as adolescentes em diferentes etapas de seu processo criativo. Mais de cem foram ouvidas como fonte de inspiração, nove foram selecionadas como intérpretes e duas atuaram também como mediadoras do processo dramatúrgico.

O alcance dessa participação fica evidente pela propriedade e desenvoltura com que as jovens se apropriam das histórias apresentadas. Sem formação prévia como atrizes, mobilizam-se a partir de certos nós narrativos: o desinteresse dos pais, os preconceitos em relação à sexualidade, as situações de assédio e o menosprezo dos mais velhos por suas opiniões e desejos.

Para traçar esse panorama das dificuldades enfrentadas, a encenação opta por um revezamento entre cenas individuais e aparições conjuntas. Sozinha, uma atriz dirige-se diretamente ao público para relatar como se dão os encontros com a namorada e de que maneira esses diferem de tudo o que havia experimentado até então. A seguir, outra adolescente relata a incompreensão geral em torno de sua postura agênero. Nesta passagem, o restante do elenco representa o que seria o olhar estereotipado dos adultos e cria a mais emblemática cena da montagem. Aos poucos, os trajes neutros da menina em questão são substituídos por peças de inegável feminilidade: vestido, salto alto, adereço nos cabelos. Instantaneamente, o espectador traz à mente as imagens de tantas outras mulheres que passam por semelhante objetificação.

Guto Muniz/Foco in Cena

O processo criativo de ‘Paisagens para não colorir’ (2018) partiu da da interação com mais de cem adolescentes chilenas, das quais nove não-atrizes de 13 a 16 anos estão em cena

Parte-se do princípio de que personagens invisíveis e silenciadas ganhariam, enfim, voz. Certa ingenuidade do pressuposto dissipa-se à medida que os discursos não se direcionam apenas a culpar uma difusa incompreensão dos “adultos”, mas a desvelar mecanismos sociais de controle e disciplina. A quem interessa a dominação da mulher como objeto reprodutor? Um dos méritos da montagem está em direcionar esse questionamento de maneira mais ampla. Não apontando apenas determinados indivíduos como motores dessa dinâmica de coerção, mas evidenciando sua competência e complexidade ao se estender por instituições como família e escola.

Ao lidar com episódios reais e depoimentos, o espetáculo se insere na vontade desta MITsp de lidar com diferentes vertentes do teatro documental. Processos históricos de exclusão e violência foram abordados na mostra em diversos títulos que investiram, justamente, nesse tensionamento entre os limites da realidade e da ficção. Em Paisagens para não colorir (Paisajes para no colorear), porém, a aproximação com o eixo curatorial da 6ª edição não se dá apenas na confusão entre o verídico e o inventado, mas na maneira como são mobilizados os corpos em cena.

Recolhidos e trabalhados dramaturgicamente, os relatos de violência das adolescentes participantes deram origem a cenas que lembram as feições do psicodrama – técnica de psicoterapia em que ações traumáticas do passado são representadas tendo em vista uma catarse. Na cena em que uma filha tenta conversar com o pai enquanto esse lê o jornal, sem lhe dar atenção, a falta de visibilidade dessas jovens é problematizada em uma interpretação que prioriza o viés dramático realista, em um crescente de gritos e choro.

Guto Muniz/Foco in Cena

A encenação é assinada por Marco Layera, da Compañía de Teatro La Re-Sentida, fundada em 2008: a visão de corpos adolescentes adquire insuspeita potência quando a reinvindicação em pauta é o direito de habitar em paz aqueles mesmos corpos

Na cena de abertura do espetáculo, os realizadores explicam que, quando prospectavam apoio para o projeto entre órgãos governamentais, foram alertados para o fato de as adolescentes serem “loucas, dramáticas e histéricas”. O destemor em trazer à tona tamanha dramaticidade pode soar como comentário irônico a esse início da apresentação. Mas, essa atração pelo exagero não livra a proposta de certo achatamento, impedindo que os temas lançados ao longo da encenação avancem para além do senso comum.

A dificuldade em problematizar algumas das questões engendradas faz, por vezes, a montagem girar em falso, convocando situações que vêm apenas reiterar passagens anteriores. Essa carência encontra um contrapeso justamente em depoimentos diretos. Ainda que funcionam quase como testemunhos, esses trechos que são apenas narrados e não representados parecem trazer um salutar distanciamento em relação às feridas expostas.

Como único elemento cenográfico, há uma casa de bonecas. O local é referenciado como espaço de recolhimento – lugar que uma das meninas procurava quando queria estar só. Na peça, contudo, aparece transmutado em confessionário coletivo, espaço da já referenciada catarse, mas também dos melhores momentos performáticos de Paisagens para não colorir. A visão de corpos adolescentes adquire insuspeita potência quando a reinvindicação em pauta é o direito de habitar em paz aqueles mesmos corpos. O direito à própria imagem e à própria identidade.

.:. Leia mais sobre o espetáculo Paisagens para não colorir no site da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp

Equipe de criação:

Criação coletiva baseada nos testemunhos do elenco e de mais de cem adolescentes chilenas
Direção: Marco Layera
Com: Ignacia Atenas, Sara Becker, Paula Castro, Daniela López, Angelina Miglietta, Matilde Morgado, Constanza Poloni, Rafaela Ramírez e Arwen Vásquez
Assistente de direção: Carolina de la Maza
Dramaturgia: Carolina de la Maza e Marco Layera
Assessoria dramatúrgica: Anita Fuentes e Francisca Ortiz
Assistente de cena: Francisca Hagedorn e Soledad Escobar
Psicóloga: Soledad Gutiérrez
Cenografia e iluminação: Pablo de la Fuente
Figurino: Daniel Bagnara
Diretor técnico: Karl Heinz Sateler
Música: Tomás González
Som: Alonso Orrego
Produção: GAM (Centro Cultural Gabriela Mistral)
Coprodução: Compañía de Teatro La Re-Sentida

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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