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Crítica

Guerra dentro da gente

7.4.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Eika Yabusame

Curitiba – A Armadilha Cia. de Teatro captou o sinal dos tempos ao estrear Dezembro (Diciembre, 2008) no festival nacional que acontece nesta época do ano em sua cidade. As questões traumáticas discutidas no texto do chileno Guillermo Calderón, traduzido e dirigido por Diego Fortes, são mais familiares ao público brasileiro do que em 2015, na montagem de Diego Moschkovich em São Paulo.

Se antes poderíamos observar o panorama geopolítico com certo distanciamento – a peça imagina uma América do Sul conflagrada por uma guerra envolvendo Chile, Peru e Bolívia, com outros países atingidos por estilhaços –, agora é possível mensurar o quanto um Estado beligerante convence até o mais bem-intencionado dos corações quando determina quem é inimigo de quem.

No cenário da sala de mal-estar da peça do chileno Guillermo Calderón, dirigida por Diego Fortes, pende do teto um pinheiro recheado de luzinhas e estrelas. Um cone com vértice para baixo, como o mapa da região Cone Sul hipoteticamente não pacificada

A polarização ideológica da sociedade que culminou no governo militarizado em Brasília torna mais nítido o maniqueísmo das duas irmãs gêmeas, e grávidas, na disputa pela narrativa do destino do irmão caçula. Ele é soldado do Exército chileno, visita a família por ocasião do Natal e tem 24 horas para voltar ao front.

Na ação fictícia que se passa em 2014, no Chile, o país está em guerra com o Peru e a Bolívia, ao norte. Uma irmã quer que o rapaz deserte e se junte ao movimento de resistência liderado por índios mapuches que marcham do sul para a capital. A outra, pelo contrário, deseja que ele volte à tropa para lutar pela pátria. O pêndulo das convicções políticas progressistas e reacionárias será quebrado quando elas finalmente ouvirem quais os sentimentos que realmente movem o jovem soldado.

Criada após Neva (2006) e Clase (Escola, 2008), a peça encenada numa sala do Museu Oscar Niemeyer prima por conciliar aspectos das vidas pessoal e nacional. Sujeito e nação, instâncias inexoráveis na dramaturgia de Calderón. Em Neva, por exemplo, mesmo nome do rio russo, há um levante popular, na São Petersburgo de 1905, e a viúva do escritor Anton Tchekhov, a atriz Olga Knipper, tenta ensaiar O jardim das cerejeiras com mais dois colegas. Eles se perguntam se vale a pena praticar o teatro quando milhares estão sendo massacrados a mando de um czar sanguinário.

Em Dezembro, o epicentro é a família. Pai e mãe são ignorados. Um tio e uma tia fazem aparições-relâmpagos, corroborando o instinto fratricídio que está no ar. Os três irmãos conversam em volta de uma mesinha redonda com refrigerante e aguardente. A disposição de arena da plateia guarda coerência com o caráter concêntrico do texto. Tudo converge para o olho de furacão nas relações. No cenário da sala de mal-estar, pende do teto um pinheiro recheado de luzinhas e estrelas. Um cone com vértice para baixo, como o mapa da região Cone Sul hipoteticamente não pacificada.

Curiosamente, a expressão “estar no olho do furacão” costuma ser usada como sinônimo de perigo. A ciência, no entanto, pensa diferente. A parte central do fenômeno que traz ventos de centenas de quilômetros por hora e enormes volumes de chuva é uma área de calmaria, ainda que enganosa. O pior da tempestade pode estar por vir.

Eika Yabusame

Elenco de ‘Dezembro’, de A Armadilha Cia. de Teatro, fundada há 18 anos: Alan Raffo, Ludmila Nascarella (à esquerda) e Fernanda Fuchs

Os irmãos interpretados por Ludmila Nascarella (Trinidad), Fernanda Fuchs (Paula) e Alan Raffo (Jorge) não chegam exatamente a bom termo em seus conflitos. É como se tivessem se dado uma trégua. Após o tour de force verbal, vem a suspensão para que observem a si mesmos. O trio desdobra ainda a representação dos papeis secundários dos tios e da namorada do caçula.

Eles são o retrato bem-acabado das incongruências da família, do Estado, da propriedade e da tradição, para mixar o corte crítico que subjaz na escrita de Calderón. Contrastar a realidade histórica e produzir ironia a partir dela – a corrosão do riso – é outra das perspicácias de sua obra como um todo.

A encenação de Diego Fortes enfatiza o humor para tourear a gama de informações e de ideias. Não se trata de condescendência, mas chave que o texto dá e é mantido em sua integridade. Essa escolha pede a contrapartida de introspecção implícita em diferentes momentos, requisito de comediante, no entendimento amplo e sofisticado do termo, que Ludmila cumpre a contento. Fernanda e Raffo, sobretudo este, têm mais dificuldade de transitar pelas circunstâncias obsessivas. Mais aferível em função da grande-angular instaurada na arena em que tudo é visto (e sentido) através de uma objetiva: a contiguidade de atores e espectadores.

.:. O jornalista viajou a convite da organização do Festival de Curitiba

Equipe de criação:
Texto: Guillermo Calderón
Tradução, direção e sonoplastia: Diego Fortes
Com: Alan Raffo, Fernanda Fuchs e Ludmila Nascarella
Iluminação: Nadja Naira
Cenário: Guenia Lemos
Figurino: Maureen Miranda
Direção de produção: Isadora Flores
Direção de comunicação: Luísa Bonin (Platea Comunicação e Arte)
Captação de recursos: Meire Abe
Programação visual: blanc.ag
Fotos: Eika Yabusame (e-photos)
Realização: A Armadilha

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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