Crítica
15.5.2019 | por Valmir Santos
Foto de capa: Lenon Cesar
Itajaí – Como os sujeitos podem se tornar intérpretes competentes da própria experiência a despeito dos obstáculos da vida? O discurso amoroso pode dar pistas ridículas, como o poeta Fernando Pessoa lia as cartas dos seres enamorados. E propiciar ressignificações subjetivas, como o semiólogo Roland Barthes tocou o coração da linguagem. Digna de figurar como objeto de estudos culturais, por mexer nas bases complexas e idiossincráticas de dois casamentos em que as pessoas são heterossexuais e octogenárias, Ilusões é uma peça em que o escritor russo Ivan Viripaev bagunça as expectativas a partir do título, para deleite estético da La Vaca Companhia de Artes Cênicas.
Os artistas de Florianópolis agiram como antropófagos diante dessa dramaturgia de 2011 que aborda peripécias afetivas universais com estilo narrativo engenhoso. Uma das características de Viripaev é o modo como induz seus personagens ou figuras à enunciação direta ao público. A comunicação é indispensável nessa escrita. Sugestiona economia na troca de olhares e dizeres entre os próprios atores, como em Oxigênio.
Esta foi a primeira montagem de um texto seu no país, em 2010, pelas mãos do diretor Marcio Abreu, da companhia brasileira de teatro (PR). Patrícia Kamis e Rodrigo Bolzan pulsavam falas e corpos no tablado inclinado, como se precipitassem à plateia. No enredo, homem recém-casado matou a mulher de quem se dizia loucamente apaixonado. O feminicídio instiga a repensar o que é essencial nos planos da intimidade, da política, da religião, e assim por diante.
A desenvoltura com que os artistas da La Vaca Companhia de Artes Cênicas operam os refletores móveis e suportes multiusos no tablado semidesnudo reacende o conceito artesanal valorado de maneira angular no projeto em torno de ‘Ilusões’, do russo Ivan Viripaev
Na peça em pauta – que fez parte do 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, encerrado no domingo, e abriu a Mostra Cena Sul do Sesc Belenzinho em São Paulo, em março –, o prosaico mote de dois velhos casais passando a limpo suas uniões e respectivas amizades correria sério risco de cair na monotonia. Contudo, o autor nascido na Sibéria há 44 anos e atualmente radicado na Polônia produz um retrato corrosivo e devidamente cômico da condição humana.
A proeza formal está no modo como estrutura o tempo. Muita gente pode associar Sandra, Dennis, Albert e Margaret ao poema Quadrinha, de Carlos Drummond de Andrade. Na rede tecida por Viripaev, porém, a retrospectiva e a projeção dos fatos não são lineares ou circulares. No jogo de revelações e omissões, de negociação de desejos inconscientes e que por vezes explodem em pleno leito de morte, a ação se faz descrição e a personagem, voz, requerendo um nível de performatividade que o quarteto da La Vaca atende à altura.
É aqui que os monólogos blocados pedem (e são atendidos) variações de uma comédia física sutil o suficiente para não desmanchar nuances e duplos sentidos no travo intermitente desses homens e mulheres adoráveis em suas falhas românticas. O texto não julga. Não se trata apenas de decompor os mecanismos terríveis do amor romântico, mas de verificar o quanto os ruídos de percepção e de entendimento da vida a dois (ou três, quatro ou mais) ainda chacoalham corações e mentes no século XXI.
Livres para sapatear sobre o cadáver das desilusões, Anderson do Carmo, Drica Santos, Milena Moraes e Renato Turnes combinam distanciamentos e comentários verbais, gestuais e musicais que abrem o jogo para a complementariedade ou edição do público. A experiência, afinal, é de acumulação.
Como a identificação com os assuntos são atávicas – quase todo mundo que pensa em casamento quer amor, carinho e reconhecimento –, os atuantes fazem do artifício de colocar-se em cena, metateatralidade. Até para subverter premissas da autoajuda e complexificá-la, por exemplo, numa linha rosa que serpenteia na lateral de uma montanha, confundida com o pôr-do-sol.
O diretor Fábio Salvatti, por sua vez, potencializa a materialidade cênica ao investir com muita coragem no que as sombras escondem do caráter e da perversidade de cada um, e no que a luz é capaz de arquitetar enquanto estatuto da arte.
A desenvoltura com que os artistas operam os refletores móveis e suportes multiusos no tablado semidesnudo reacende o conceito artesanal valorado de maneira angular no projeto. Uma apropriação orgulhosa e desapegada de procedimento que poderia ser interpretado como arcaico e resulta em atitude desencanada e coerente com uma dramaturgia penetrada pela tradição russa sem trair os anseios mais recônditos de quem escreve, em termos de poética.
Esses corpos e rostos nem sempre estão iluminados. Tornam-se paisagem no claro e escuro, a disposição crua que dá substrato às reflexões sobre identidade de gênero, homofobia, antirracismo e gordofobia. Vieses inscritos nos corpos “diferentes” que performam os casais cis (pessoas cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi atribuído no nascimento). Esse balaio sociocultural singulariza e tropicaliza a montagem brasileira.
Outro componente genuíno dessas Ilusões é a música a capella. O canto competente e a dancinha avacalhada equivalem a passagens esclarecedoras/escurecedoras. Ritmos e melodias de uma presunção de alegria que o cidadão deste país já encampou com mais veemência e, no momento, tenta caminhar e reexistir como se atravessasse um nevoeiro espesso.
Ivan Viripaev e La Vaca, que está no seu 11º ano, entregam o que prometem nos quesitos alteridade e criticidade. Uma aliança transcontinental, quem sabe transiberiana, de bom humor e inteligência.
.:. Texto originalmente publicado no âmbito do 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, realizado em Itajaí-SC de 1º a 12 de maio de 2019. O jornalista viajou a convite da organização e prestou serviço de escrever críticas dos espetáculos da cidade.
.:. Visite o site da La Vaca Companhia de Artes Cências
Equipe de criação:
Direção e tradução: Fabio Salvatti
Com: Anderson do Carmo, Drica Santos, Milena Moraes e Renato Turnes
Cenografia: Sandro Clemes
Figurino: Renato Turnes
Desenho de luz: Fabio Salvatti
Orientação vocal: Jefferson Bittencourt
Coreografia: Anderson do Carmo
Revisão de tradução: Vera Seregina
Arte gráfica: Renato Turnes
Produção: Milena Moraes e Renato Turnes
Realização: La Vaca Companhia de Artes Cênicas
Projeto realizado com o apoio do Estado de Santa Catarina, Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, Fundação Catarinense de Cultura, FUNCULTURAL e Edital Elisabete Anderle/2017.
Outros apoios: SESC -Serviço Social do Comércio em Santa Catarina, Gruta Acessórios
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.