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Crítica

A mãe de todas as perguntas

1.12.2019  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: André Cherri

O corpo atravessa Stabat Mater. É a partir dele que surgirão as imagens e ideias manipuladas por esse espetáculo concebido e atuado por Janaina Leite. O corpo será espaço para o real – evocado constantemente nessa criação. O corpo será o símbolo da sacralidade e da profanação: o corpo imaculado da Virgem Maria, o corpo eviscerado das mulheres assassinadas em filmes de terror, o corpo da mãe.

Em dois corpos presentes em cena – o de Janaina e o de sua própria mãe, Amália Fontes Leite – dá-se a fricção entre duas feminilidades. Uma eloquente, outra silente; uma potente, outra retraída; uma dolorosa, outra speciosa (conforme as definições dos dois hinos da tradição católica chamados de Stabat Mater, que louvam tanto as dores quanto as alegrias da mãe de Jesus).

Em ‘Stabat Mater’, a violência masculina contra as mulheres surge como tema e a forma performática convida a atriz e pesquisadora Janaina Leite a expor o corpo a situações-limite. A princípio, a proposição mira uma subversão de dois eixos: a vítima do estupro, o corpo antes supliciado, agora estará no controle. E a mãe na vida real, sempre silente em cena, será instada a chocar-se, a mover-se

Não é a primeira vez que Janaina explora questões biográficas para construção de uma dramaturgia. Assim se deu em Festa de separação: um documentário cênico, quando a atriz e um ex-marido expunham um ritual que marcava o fim da relação conjugal e, mais recentemente, em Conversas com meu pai, na qual examinava o vínculo familiar partir de uma série de bilhetes por meio dos quais o pai, após uma traqueostomia, se comunicava com ela.

Por diversos motivos, Stabat Mater pode ser entendida como uma obra de desdobramento de Conversas com meu pai. Não apenas por explorar a dualidade paternidade/maternidade, mas por repetir (e radicalizar) uma série de procedimentos que foram utilizados na criação de 2014, cuja dramaturgia e direção foi dividida com Alexandre Dal Farra. Em ambos os títulos, o mergulho na própria biografia se dá por um discurso endereçado diretamente à plateia. Tudo o que está em cena é desdramatizado – não existe um enredo a ser encenado, mas cria-se a ideia de uma experiência a ser partilhada.

Nesses casos, o espectador não se vê confrontado com a representação de um determinado episódio, mas com a situação em si, plasmada no corpo da atriz e na elaboração de suas memórias. Uma das críticas mais comuns endereçadas a essa vertente de trabalho – que pode ser denominada como teatro do real ou teatro documentário – é sua pretensa ambição de apropriar-se de uma verdade e trazê-la à cena, como se isso pudesse se dar sem uma mediação. O que Janaina Leite faz nas duas peças, contudo, é desconfiar de sua versão dos fatos, tensionando de maneira interessante os limites entre ficção e realidade.

Mãe da atriz, Amália Fontes Leite é enredada à criação, surgindo silente ou à margem da cena em determinados momentos: nova temporada no Teatro de Contêiner Mungunzá
André Cherri

Importa pouco saber se determinada informação é verídica. Mesmo o desfecho da obra – aparentemente determinado por um acontecimento desestabilizador, que não fora planejado durante o processo de criação – não será impactado pela veracidade ou não dos fatos. Mas pela decisão de incluir aquele dado. A própria definição de verdade está sob escrutínio. Ela pode variar para cada uma das três figuras presentes em cena: a palestrante, a mãe e Príapo, um homem mascarado. Assim como também vai sendo construída e desconstruída pela narradora\autora conforme os pedaços de seu quebra-cabeça são dispostos para a plateia. Objetos, relatos de conversas, imagens de sonhos, documentos, trechos e citações de obras não teatrais, como é o caso do ensaio de Julia Kristeva (que empresta nome ao espetáculo), da ideia de ato psicomágico de Alejandro Jodorowski e de algumas passagens bíblicas.

Nesse emparelhamento com a estrutura de uma palestra, a criação se posiciona em um interessante meio de caminho das teatralidades atuais. Como se pudéssemos situá-la entre os teatros do real, que costuma se caracterizar pela natureza política do que é trazido à cena e por uma estreita relação com o contexto social, e as produções de autoficção, gênero cujo conceito importamos da crítica literária e que nos remete a situações em que as figuras do autor, narrador e personagem se confundem.

A opção cênica em questão soa especialmente feliz por permitir que o trato com um material tão íntimo, como são as reverberações da relação entre uma filha e sua mãe, descole-se de uma moldura de investigação individual e encontre ressonância nos lugares sociais em que dispomos mulheres – sempre atravessados pelos ideais de maternidade, que por sua vez esbarram invariavelmente na santidade e na abnegação da virgem mãe de Jesus.

Em sua encenação/palestra, Janaina nos apresenta os vínculos entre processos psíquicos muito arcaicos e manifestações da cultura de massa. O desejo pelo retorno ao útero, do qual o avesso é o pavor de ser tragado ou fundido ao corpo feminino, ajuda a entender os procedimentos típicos dos filmes de terror, por exemplo. Às imagens dos corpos destroçados das personagens dessas obras sobrepõem-se as filmagens da própria atriz no parto. Ali, uma manipulação no material gravado permite que o bebê não apenas saia de sua mãe, mas retorne a ela.

São muito interessantes as conexões que Stabat Mater propõe de maneira explícita, mas também poderosas aquelas que o espectador pode construir segundo sua própria experiência e referenciais. O bebê que entra na mãe não é o falo perdido, reencontrado, ambicionado? A proximidade entre o dar à luz e o ato sexual não deixa o ideal de santidade da maternidade ainda mais estranho? Por que a presença da mãe da atriz, mesmo quando trazida ao centro da cena, permanece incomodamente discreta?

Enquanto o corpo de Janaina se expõe como objeto de fetiche e sacrifício, o corpo de sua mãe se esconde sob um manto vermelho. De rainha ou de demônio? Assim como não conhecemos a história de Maria – ela vive para e por seu filho – nada adivinhamos de Amália como indivíduo. Sabemos que teve um casamento infeliz, que sofreu para criar as filhas, que se sentiu impotente e que permaneceu a cumprir a sua função materna apesar de qualquer empecilho em seu caminho.

É essa insistência uma pista para entender a representação da mãe. Aquela que segue o calvário do filho e não arreda pé da cruz durante sua agonia. O salto dado no espetáculo se dá no reposicionamento dessa presença, que deixará de ser lida como abnegação.

Lucas Asseituno e Janaina Leite: o fetiche da ‘pole dance’ e as imagens gravadas do set de cenas pornográficas aproximam a atriz e pesquisadora da arte da catalã Angelica Liddell
André Cherri

Um facão é usado para rememorar um episódio em que Janaina foi vítima de um estupro. Mais adiante, o objeto retorna em outra cena, dessa vez em suas mãos, para degolar a mãe. Na degola do corpo materno colocam-se muitas chaves para leitura (cênica, social ou psicanalítica?). Cortar a cabeça da mãe, aqui, é matar a passividade, é diferenciar-se da mulher “frágil” que lhe deu origem.

Curiosamente (ou sintomaticamente) pouco retratadas pela literatura, as mães, quando aparecem, costumam representar forças conservadoras contra as quais é preciso lutar. Nos romances da ingelsa Jane Austen, por exemplo, a figura materna costuma representar a permanência, a prisão. Sua morte, portanto, é condição para o desenvolvimento da subjetividade.

A proposta de criação de uma cena de sexo explícito entre Janaina e um ator pornô endossa a evidente filiação de Stabat Mater com o teatro de Angelica Liddell. Tal como nas criações da multiartista catalã, a violência masculina contra as mulheres surge como tema e a forma performática convida a atriz a expor o corpo a situações-limite. A princípio, a proposição mira uma subversão de dois eixos: a vítima do estupro, o corpo antes supliciado, agora estará no controle. E a mãe, sempre silente, será instada a chocar-se, a mover-se.

A expectativa de sua partida eminente, tantas vezes referenciada, pode ser decerto vista como desejo. Se a mãe for degolada, a atriz poderá, enfim, gozar a morte dessa memória constante da vulnerabilidade. Se Amália for embora, um impasse poderá ser resolvido – seja ao aprofundar a sensação de abandono desta filha, seja ao livrar-se da máscara de impotência que lhe parece presa ao rosto.

Quando o ator pornô abandona o projeto, a imobilidade da mãe será ressignificada. Exposta a constrangimentos, simbolicamente “violentada”, instada a partir, ela não se move. Talvez pela consciência do abismo que a filha abre debaixo dos próprios pés em cada um dos seus movimentos. Mas o fato é que a mãe pode, então, deixar de ser rastro de passividade para tomar o lugar de pedra de resistência.

Como fazer para atravessar essa pedra que se coloca no meio do caminho? Como desviar-se dela, sem carregá-la às costas ou implodi-la? Talvez essas sejam perguntas para um próximo projeto.

.:. Participe do Encontro com Espectadores que no domingo, 1º/12, às 15h, recebe Janaina Leite e a dramaturgista e coassistente de direção Lara Duarte para conversar acerca de Stabat Mater. No Itaú Cultural, entrada franca.

Serviço:

Onde: Teatro de Contêiner Mungunzá (Rua dos Gusmões, 43, Santa Efigênia, tel. 11 97632-7852)

Quando: terça e quarta, às 20h. Até 11 de dezembro

Quanto: R$ 5 (moradores), R$ 20 (meia) e R$ 40

Duração: 105 minutos

Classificação indicativa: 18 anos

André Cherri
André Cherri Montagem estreou em 21 de junho de 2019 na 5ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo

Equipe de criação:

Concepção, direção e dramaturgia: Janaina Leite

Performance: Janaina Leite, Amália Fontes Leite e Príapo

Participações especiais: Lucas Asseituno (Príapo amador) e Loupan ( Príapo profissional)

Dramaturgismo e assistência de direção: Lara Duarte e Ramilla Souza

Colaboração dramatúrgica: Lillah Hallah

Direção de arte, cenário e figurino: Melina Schleder

Iluminação Paula Hemsi (ultraVioleta_s)

Videoinstalação e edição: Laíza Dantas (ultraVioleta_s)

Assistência geral: Luiza Moreira Salles

Sonoplastia e operação de som e vídeo: Lana Scott

Operação de luz: Jhenifer Santine

Preparação vocal: Flavia Maria Campos

Provocação cênica: Kenia Dias e Maria Amélia Farah

Concepção audiovisual e roteiro: Janaina Leite e Lillah Hallah

Direção de fotografia: Wilssa Esser

Participação em vídeo: Alex Ferraz, Hisak, Jota, Kaka Boy, Mike e Samuray Farias

Identidade visual, projeções e mídias sociais: Juliana Piesco

Fotos: André Cherri

Assessoria de imprensa: Frederico Paula – Nossa Senhora da Pauta

Direção de produção e circulação: Carla Estefan – Metropolitana Gestão Cultural

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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