Encontro com Espectadores
27.12.2019 | por Teatrojornal
Foto de capa: Agência Ophelia
Livre inspiração para o teatro do livro homônimo do filósofo francês Didier Eribon, o solo De volta a Reims foi objeto de debate da 29ª edição do Encontro com Espectadores, no dia 26 de maio de 2019, ação do site Teatrojornal. O ator Pedro Vieira e o dramaturgo Reni Adriano falaram sobre os caminhos percorridos desde o momento em que uma adaptação francesa desse ensaio autobiográfico foi vista no Festival de Avignon, passando pela conquista da liberação dos direitos após a resistência do autor com a versão brasileira, até a temporada em São Paulo. No fim do ano, em novembro, o solo ainda participaria da programação do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente (Fentepp).
Com direção de Cácia Goulart, a encenação mescla traços biográficos do ator nascido em Palmeira dos Índios (AL) ao texto original no qual o filósofo disseca o processo de formação de sua subjetividade movido pela experiência de retornar à cidade natal, Reims, após 35 anos de afastamento. Na análise de seu trajeto como acadêmico que se desloca de sua origem operária, discute homossexualidade e a guinada à direita da classe trabalhadora, entre outras questões, sempre em articulação com o campo social.
Eu fiz toda a primeira cena pensando no desconforto não da minha mãe [presente à sessão], mas no desconforto de toda mãe que se dá conta da humilhação que um filho gay sofre. É muito triste, os gays sofrem, mas não chegam perto da dor que sente a mãe que vê um filho sofrendo. Talvez a minha mãe nunca tenha ouvido um insulto em relação a mim, não diretamente, mas, naquele momento ali, acho que ela voltou 40 anos e pensou: ‘Foi assim que aconteceu com o meu filho?’
Pedro Vieira, ator
Temática muito apropriada para estar em foco em um domingo no qual a Avenida Paulista – onde está situado o Instituto Itaú Cultural que abriga e apoia a ação – foi tomada por uma manifestação convocada pelo próprio poder executivo recém-eleito. Nesse protesto “a favor”, os participantes se colocavam contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, em suma, contra o sistema de freios ao Executivo. Uma contradição em si, porque uma vez atendidos, a História demonstra, tal concentração de poder invariavelmente tem como efeito eliminar toda possibilidade de manifestação pública.
A seguir, a transcrição editada dessa conversa.
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Beth Néspoli
Boa tarde, todos e todas. Bem-vindos e bem-vindas, esse é o 29º Encontro com Espectadores, uma ação do Teatrojornal – Leituras de Cena, site de crítica teatral criado pelo jornalista Valmir Santos no qual escrevem, atualmente, eu, ele e Maria Eugênia de Menezes. Nós três passamos por redação de jornal. Daí, o que perseguimos é o rigor de análise e de apuração do [bom] jornalismo em textos que tenham a clareza necessária para atingir um amplo círculo de leitores. Criamos essa ação em 2016 com o objetivo de promover conversas entre críticos, criadores e espectadores tendo foco em espetáculos cujo critério de escolha é a perspectiva de que provoquem uma boa discussão. A partir de 2018 conquistamos o apoio do Instituto Itaú Cultural que passou a abrigar ação.
Para esta 29ª edição do EE escolhemos o monólogo De volta a Reims e, para conversar conosco, temos Pedro Vieira, ator e produtor, e Reni Adriano, dramaturgo do espetáculo. A dinâmica será: faço uma breve apresentação da dupla de criadores, do espetáculo e, logo depois, a palavra passa a estar com a plateia para perguntas ou comentários.
Quem viu o solo? [plateia se manifesta] Que bom, quase todos. Trata-se de um trabalho muito apropriado para ser discutido num dia como hoje, em que a Avenida Paulista, onde estamos, volta a ser tomada por manifestações antidemocráticas, uma contradição em si. Mas nós não vamos nos pautar pelo que ocorre lá fora, temos um motivo para estar aqui. Claro, a abordagem da peça necessariamente se articula com os acontecimentos do país, mas o nosso foco é a arte, por ela nos reunimos hoje nesse espaço.
Em 2016, Pedro Vieira foi indicado ao Prêmio Shell na categoria melhor ator pelo espetáculo Eu tenho tudo, dirigido por Cácia Goulart, que é a mesma diretora do solo De volta a Reims. Ele repete a parceria artística com ela e a explicação para isso é muito interessante, ele mesmo vai contar a vocês. Pedro atuou em obras como A morta (viva), texto de Oswald de Andrade dirigido por Luiz Fernando Ramos; Resto de cerveja em copo transparente e Três paredes e meia, ambas com dramaturgia de Sérgio Pires, a segunda baseada em Nossa Senhora das flores, de Jean Genet, e dirigidas por Emerson Rossini, que está aqui na plateia e é o assistente de direção de De volta a Reims; e Apocalipse 1,11, de autoria de Fernando Bonassi e direção de Antônio Araújo, do Teatro da Vertigem. Em cinema atuou em De cara limpa, Carandiru, Nina e Amanhã nunca mais. Formou-se pelo Teatro Escola Macunaíma, em 1992, e fez parte do núcleo de direção e concepção Teatral da Escola Livre de Teatro de Santo André, de 1999 a 2002.
O Reni Adriano é graduado em Filosofia pela PUC-SP, é escritor e consultor em leitura e literatura em projetos de formação de leitores. Pelo romance Lugar, recebeu os prêmios Governo de Minas Gerais de Literatura, em 2009, na categoria ficção, e Machado de Assis de melhor romance (3º lugar), da Fundação Biblioteca Nacional, em 2010, sendo ainda finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, em 2011.
Ainda não li o romance, mas li algumas resenhas, e todas comentavam sobre a radicalidade de sua linguagem. Reni é também redator e produziu material de educação para leitura e escrita nas campanhas Eu Quero Minha Biblioteca [correalização de instituições como Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Academia Brasileira de Letras, Conselho Federal de Biblioteconomia e Todos Pela Educação] e Dia Nacional da Leitura. É autor de Confiar no texto, habitar os livros: boas práticas de leitura em bibliotecas comunitárias [Instituto Ecofuturo, 2014].
Como se trata de um solo muito bem cuidado em todos os aspectos, vale citar a equipe de criação: Além dos já citados, temos Bruna Lessa, na concepção de luz; Carol Buček, na cenografia; Marcelo Pellegrini, na sonoplastia, e Cacá Bernardes e Bruna Lessa na fotografia e vídeos.
De volta a Reims é título de livro de autoria de um filósofo francês chamado Didier Eribon, publicado em 2009, uma espécie de ensaio autobiográfico, no qual relata seu retorno à cidade natal, Reims, e está na base do espetáculo. Depois de 35 anos afastado, Didier foi convocado a voltar por conta da morte do pai. Mas não se trata daquela narrativa já clichê da volta ao lar. Como filósofo, ele transforma esse retorno em objeto de estudo sobre sua subjetividade, sempre articulando sua história pessoal com o campo social no qual ela se dá.
Não por acaso, ele chama Reims de “cidade dos insultos” – ao abordar sua homossexualidade e o modo como ela era vista na Reims de sua infância –, mas o que vai analisar é a memória dele sobre essa cidade e o deslocamento provocado por sua formação acadêmica na relação com esse lugar. Ele é de uma família operária e é o único que se torna universitário, uma trajetória que permite a ele se reconciliar com a condição homossexual – não por acaso enveredou pelo campo dos estudos culturais –, porém, simultaneamente, o afasta de sua classe social de origem.
Ele, Didier Eribon, o autor do livro, realiza esse deslocamento de classe social interna e externamente, nas atitudes e na visão de mundo, porém só se dá conta realmente desse movimento ao retornar à Reims, quando sua carreira acadêmica já está consolidada. Em suma, o livro é a contextualização e análise desse deslocamento. Tomando sua própria trajetória como objeto de estudo, ele disseca o processo de formação de sua subjetividade, as alterações pelas quais passa e, mais ainda, a própria análise dessas transformações vai provocar novas alterações, a partir desse trajeto da volta para Reims.
É sutil, porém mais do que uma dramaturgia de retorno, é uma narrativa sobre um processo, sobre esse deslocamento à cidade natal e o que isso provoca de alteração interna, não pela viagem em si, mas pela dissecação do que ocorreu quando ele fez a viagem de saída de Reims; ou seja, a análise se volta para a passagem da origem operária à vida acadêmica. Nesse retorno à Reims ele percebe que saíra do armário da homossexualidade para entrar no armário da classe social, porém, ao mesmo tempo, analisa esse movimento e, ao fazê-lo, também cria um canal de escape.
Não conheço o texto original, mas sei que foi encenado na França, na Alemanha e na Bélgica. Vejam, um livro de 2009, já adaptado em três países e de formas diferentes. E tem também um filme baseado no livro. Penso que isso se dá porque a narrativa nos conduz a fazer juntos essa trajetória íntima e, ao mesmo tempo, entrelaçada ao campo social. Não é, portanto, um relato do ego, é algo que escapa ao estritamente individual.
A partir da década de 1960, as lutas identitárias sejam ligadas ao movimento LBGTQ+ ou aos movimentos negros e pretos ampliaram muito as questões sobre as subjetividades e sua relação com o campo social. Quem estava aqui, por exemplo, na 27ª edição do Encontro com Espectadores a respeito de Gota d’água {PRETA} talvez lembre que a cantora e atriz Juçara Marçal comentou sobre uma tia-avó que tinha um terreiro de umbanda, uma tia da qual ela, que estudara em colégio de classe média, ficara afastada, porque a sua educação formal acaba afastando-a por um longo período de suas raízes africanas.
O solo nos faz ver que paralelamente à luta operária marxista há uma outra luta no campo da cultura e há tensão entre elas. Reims é a cidade dos insultos e os insultos são culturais. Por que “puta” é insulto? Porque diz alguma coisa sobre mulheres, o lugar da mulher, sobre como a sociedade vê a sexualidade feminina. Cada xingamento carrega uma carga cultural e interferir no campo da cultura é também interferir na condição de existência na sociedade.
Porém, uma fatia da militância marxista muitas vezes despreza toda atuação não estritamente ligada à ideia do determinismo econômico, algo como nada muda se não muda a condição de classe. E há uma parte dessa militância que é sexista, machista, homofóbica e até mesmo racista. Didier Eribon toca nessas questões e no modo como vertentes distintas da mesma luta por melhores condições de existência se afastaram uma da outra. Ele comenta sobre a guinada à direita do operariado francês e faz indagações sobre as responsabilidades desse problema.
É muito interessante, porém, na adaptação de Reni e na atuação de Pedro, como jamais se aponta um dedo acusador para a plateia. Todas as indagações, Didier as faz a si próprio. Como espectador, a gente acompanha essa autoanálise e autocrítica feitas com muita honestidade intelectual da parte de alguém que não hesita em apontar, ao perceber, as próprias contradições.
O único momento em que ele realmente aponta o dedo para fora, ele o faz para cobrar da esquerda a sua parcela de responsabilidade na guinada do operariado para a direita. No solo, é também um momento em que o Pedro vai para a plateia e, na mesma posição do público, aponta a cobrança para o palco vazio, ou seja, é sutil, mas é um recurso para manter o tom de conversa com o espectador, para não despejar verdades sobre os espectadores.
É um espetáculo com muitos detalhes de criação. Alicerçado na palavra, poderia até ter sido abordado apenas pelo texto, porque o Pedro é um ator que dá conta das pausas, das intenções, das tensões, das imagens que as palavras carregam. Mas a cena é plena de outros elementos igualmente elaborados e expressivos como trilha sonora, iluminação, o movimento corporal muito marcado. E há o uso dos objetos postos no palco como, por exemplo, a bicicleta guardada num suporte na parede que ora remete à obra de Marcel Duchamp [1887-1968], quando a luz incide apenas sobre uma das rodas, ora é simples meio de transporte, usado pelo ator em cena.
Na apresentação de ontem, quando revi o solo, tinha uma professora da Faculdade de Direito [FMU] que realiza um trabalho voluntário no Capão Redondo. Ela chorou muito e eu estranhei porque, no meu ponto de vista, não é um espetáculo para comoção. Porém, conversando após a sessão, ela disse que viu nele alguns de seus alunos e a dificuldade que eles possuem de superar a condição de classe, o que só vai acontecer com um ou outro, como excepcionalidade. Como é que se supera um destino trágico, no sentido de ser inescapável para a maioria? Foi a pergunta que o solo provocou nela.
Outro elemento importante no espetáculo é o modo como a dramaturgia abre uma janela para a biografia do Pedro se entrelaçar à original. Ele é de Palmeira dos Índios (AL), terra do Graciliano Ramos, e saiu de lá aos 17 anos, mesma idade com que Didier Eribon deixou Reims. Gostaria que você falasse sobre esse deslocamento, Pedro, porque, me parece, não foi exatamente uma condição adversa no sentido a pobreza que fez você vir para São Paulo, mas cultural.
Em São Paulo você chegou a trabalhar no Teatro da Vertigem, mas acabou se inserindo nessa tradição brasileira de atores-produtores. Seria interessante se pudesse falar um pouco sobre a mudança de Alagoas para São Paulo e do interesse pelo teatro, como ele surge lá e como ele se concretiza aqui, completar a sua apresentação.
Por que não seguir a carreira inicial e se agregar a um grupo como o Teatro da Vertigem, uma vez que atuou no coro de Apocalipse 1,11? Ou outro grupo? Por que decide se autoproduzir? Paulo Autran, Maria Della Costa, Denise Fraga, Celso Frateschi, enfim, há uma imensa relação de artistas que resolvem se autoproduzir para escolher o que levar ao palco. Então caberia a pergunta: qual teatro é importante para você e como imagina que esse teatro pode interferir no campo da cultura?
Pedro Vieira
Boa tarde a todos e a todas. Quando comecei a fazer teatro em Palmeira dos Índios eu tinha uns 14 ou 15 anos, ainda na escola, e o que motivou a fazer teatro nessa idade foi a admiração que eu tinha por Lauro Corona [ator, 1957-1989]. Então, eu era um menino que comprava muitas revistas de fotonovelas e acompanhava sua carreira, eu o admirava, achava bonito, talentoso, de modo que quando eu era pequeno queria ser Lauro Corona.
Na escola, nas aulas de teatro e de educação artística as pessoas falavam que eu podia seguir a carreira – mas como, se não existia curso de teatro? Existia em Maceió, mas eu teria de mudar para lá [distante cerca de 135 km]. Mas eu havia colocado na cabeça que queria fazer teatro e foi quando decidi vir para São Paulo, aos 17 anos, com a ajuda da minha mãe porque o meu pai não queria que eu viesse.
Vim para São Paulo e depois de oito meses tentando me estabilizar, eu disquei 102 procurando uma escola de teatro e me indicaram o Macunaíma, a única na lista telefônica. Me matriculei na semana seguinte. Havia uma propaganda na televisão que falava da Escola Emílio Fontana, e quando liguei 102, eu havia pedido o telefone do Emílio Fontana, mas a moça falou que a única escola de teatro na lista era a Macunaíma.
Eu fui com uma amiga que era costureira, fiz a matrícula e ela toda animada, mais orgulhosa do que eu, na volta me disse: “Nossa, Pedro, quem diria que um dia eu seria costureira e você teatreiro”. Para ela tinha o mesmo peso, ser costureira ou de teatro, e para mim também tinha. Comecei a cursar, fiz os quatro anos, carga curricular da época no Macunaíma e, a partir daí, formado, fiz um espetáculo ou outro de forma esporádica porque eu trabalhava, e trabalho até hoje, durante todo o dia.
Diferentemente dos amigos que se formaram comigo, os que hoje ainda convivem comigo e vivem do teatro, dão aulas, de alguma maneira estão ligados ao teatro. Eu escolhi trabalhar para poder manter um padrão de vida que conquistei. Na verdade, eu queria viver de teatro, lutei a vida inteira para isso, mas chegou uma hora em que as coisas não aconteciam, então decidi não abandonar o trabalho e fazer teatro somente quando fosse possível.
As pessoas, às vezes, me chamavam para fazer um trabalho, mas seria preciso ensaiar durante o dia e eu não poderia. Eu comecei a produzir em 2000, com o Sérgio Pires. A gente montou um espetáculo de rua e ali criamos uma companhia, que era a Companhia Teatro do Pires. Depois montamos o segundo espetáculo, o terceiro e nesse meio-tempo aconteceu o Teatro da Vertigem. Eu não escolhi ser só ator porque não me foi possível, ninguém me chamou para ser ator, eu simplesmente passei lá cinco anos com o espetáculo Apocalipse 1,11, mas eu não era da companhia, eu fazia parte do coro, e as coisas são bem divididas, quem é núcleo e quem não é.
Após a temporada de Apocalipse 1,11, depois de todas as viagens, começou o processo do BR-3, do qual participei disputando um personagem, que era o barqueiro, pleiteado por mais cinco atores. Foi uma seleção que demorou três meses, parecia um Big brother, quem se desempenha melhor ia ficando. Ficamos eu e o [ator Sérgio] Pardal. No fim das contas, o Tó [o diretor Antônio Araújo], numa conversa, achou mais conveniente que fosse o Pardal e me ofereceu para fazer outros personagens.
Naquele momento eu estava com um projeto na cabeça de montar uma peça do [dramaturgo francês Jean] Genet e pensei que se não rolasse o BR-3 eu partiria para o meu projeto solo. Quando aconteceu essa conversa com Antônio Araújo, que disse que não faria outros personagens, fui tocar um projeto sozinho e, assim, levantei a terceira produção com o Sérgio Pires. Depois veio Resto de cerveja, a quarta produção.
Então, não seguir uma carreira de ator em grupo se deu mesmo por falta de oportunidade ou de empatia com um projeto que me interessasse. Isso de pegar o texto, decorar e levar para a cena, só isso, não interessava. É preciso ter interesse pela ideia do outro, por um projeto. Foi a partir daí que comecei a ter consciência de que era preciso pensar qual teatro eu queria fazer. Passei a escolher meus projetos.
Em 2010 viajei para a França e conheci o Festival de Avignon. Até então eu não tinha ideia da dimensão desse evento que teve 1.300 peças apresentadas em 21 dias. Na edição de 2014, fiz uma pesquisa somente de monólogos. Assisti a 26 monólogos e trouxe ao Brasil quatro textos, quatro possibilidades de montagem. E a que deu certo foi a quarta alternativa, porque em relação às primeiras não consegui os direitos de montagem.
Consegui negociar com o Thierry [o franco-argelino Thierry Illouz] os direitos de Eu tenho tudo [pelo qual foi indicado ao prêmio Shell 2016]e, em 2017, voltei a Avignon, mas não mais buscando monólogos, eu não queria mais solos, e fui atrás de um texto para três atores, porque seria possível de produzir. Voltei com uma dúzia de textos e também com De volta a Reims, que não era a primeira opção.
O Reni, a Cácia e o Emerson são referências, sempre os consulto para saber se vale montar um texto, saber o que acham. Eu trouxe de Avignon a versão de Reims na qual tem a mãe e o filho, uma montagem que vi seis vezes lá. A primeira foi no primeiro dia que cheguei e não tinha entendido absolutamente nada porque você chega com a escuta muito ruim, mas lembro de uma cena que falava de insulto e que falava muito de direita e esquerda [o espectro político que enquadra ideologias e partidos]. Eu pensei em voltar para ver se entendia um pouco melhor o texto, aí retornei no dia seguinte, mas a compreensão não ajudou muito.
Daí comprei o romance, consegui chegar na metade do livro no terceiro dia, e voltei para ver o espetáculo. Então eu já sabia do que se tratava e consegui entender. A versão do Laurent [Laurent Hata, diretor francês nascido em Reims] era “copia e cola”, ele simplesmente faz uma edição do livro, que tem a forma de um ensaio, e depois percebi que ele seguiu uma exigência do autor.
Quando recebi o e-mail da editora e do Eribon Didier perguntando se era isso mesmo que a gente ia fazer, eu respondi sim. Quando o Reni preparou a nossa versão, a gente contratou uma pessoa para fazer a tradução para o francês porque ele, o Didier, tinha de ler o texto, só que ele demorou quatro meses para dar retorno. Quando respondeu dizendo que não cederia os direitos, porque não fizemos conforme o combinado, não era apenas uma edição, nós já estávamos com estreia marcada, todo o investimento na produção já feito. O espetáculo tinha muita coisa do Reni, então o texto não era do Didier. Enfim, a história foi longa.
Depois de assistir à peça seis vezes, eu negociei diretamente com o Laurent e disse que iria trazer a versão dele ao Brasil. Chegando aqui, a Bibianne fez a tradução [Bibianne Riveros]. O Reni leu, o Emerson e muitas outras pessoas. Todas achavam o texto muito bom, as questões importantes, mas também diziam que não era um texto teatral, era muito palavroso, do tipo que só os franceses gostam.
A gente conseguiu uma versão em inglês na Amazon, demorou 40 dias para chegar. Daí o Reni leu e em menos de um mês ele sugeriu fazer uma nova adaptação, mas sendo um monólogo. Eu, que tinha hesitado em fazer monólogo, fui convencido pelas argumentações dele, topei, e a gente recomeçou um processo de estudo. Foi todo um percurso de muitas incertezas. Tinha um texto pronto para duas pessoas e teria de confiar na criação de um monólogo que eu não sabia se daria certo ou não. Mas aí foi confiar, e realmente foi um feliz encontro.
Então eu queria essa beleza, esse homem grato àquilo que o constitui, sem a ideia salvacionista, mas àquilo que o salvou, porque, na verdade, um livro nos salva a cada dia, a cada leitura. Nos salva inclusive desses horrores que a gente acabou de atravessar, desses búfalos de verde-amarelo na Avenida Paulista defendendo o fascismo, por exemplo
Reni Adriano, dramaturgo
Beth
Como é que se trabalha um texto acadêmico no palco? Nas citações [do autor sobre outros autores], você abre um livro e lê o fragmento que quer citar. É um recurso interessante e a gente fica tentando entender como é que foi feito esse trabalho de pensar a passagem do texto para a cena.
Vieira
Embora eu tenha entendido o texto depois da quinta, sexta vez, tinha muitas coisas de política e de filosofia que eu não consegui entender, mesmo depois de traduzido. Eu pedia ajuda ao Reni para, antes de decorar, entender com clareza. E não bastava estar claro para mim, precisava estar na forma oral, claro também para os espectadores. Então, muitas vezes a gente chegou num acordo dele mudar uma frase, mudar um parágrafo inteiro porque, embora eu estivesse entendendo, na hora de falar não cabia na minha boca. E ele, generoso, fazia todas as correções necessárias. A gente conversava, eu falava o texto em voz alta e eu dizia que estava entendendo do que estava dizendo, mas achava que não estava chegando no ouvido das pessoas e aí a gente ia refazendo o texto ou reconstruindo, sempre mantendo o núcleo das ideias, o pensamento. Então, o tempo inteiro a gente estava conversando para achar palavras que coubessem na minha boca.
Beth
E, por que repetir a Cácia Goulart na direção?
Vieira
A Cácia, como diretora e atriz, tem um direcionamento com o ator que é diferenciado, acho que ela se coloca em cena. Ela tem um percurso de monólogos, de textos com poucas pessoas, trabalha principalmente na palavra e era isso que eu precisava. Um fator que contou muito foi ela ter me dirigido no trabalho anterior. Eu poderia chamar outra pessoa para dirigir o espetáculo, só que estou vindo de um monólogo muito recente e uma coisa que eu não queria era trazer os mesmos vícios do monólogo anterior para esse. Nada melhor do que Cácia, que dirigiu o último trabalho, para poder parar em algum momento e dizer: “Você está se repetindo”. E isso de fato aconteceu, não só na minha condução, mas também na luz que era criada. E acho que repetir a Cácia pesou muito por conta de ela saber qual era o material que trago para a cena e leva a buscar algo diferente do que eu trouxe da obra anterior. Repetir a Cácia para não repetir.
Beth
Reni, eu não li o seu livro, mas pelo que entendi você trabalha com o tema da perda da memória no atrito entre a cultura interiorana e o processo de urbanização brasileiro, que se deu de forma acelerada e desordenada. Um processo que matou formas culturais, em vez de apenas alterá-las, o que seria inevitável. Se entendi, o seu livro retrata algumas gerações de uma mesma família e, na primeira delas, há ainda um certo encantamento do mundo, habitado por entes como Saci, Curupira, um imaginário ainda muito ligado ao sagrado, algo que vai se desfazendo.
Nesse sentido, a leitura me remeteu à narrativa do líder indígena Davi Kopenawa, em A queda do céu, livro no qual ele relata um cosmogonia, uma visão de mundo que permanece entre os povos originários, na qual tudo é anímico, os deuses, se é que podemos chamar assim, os espíritos talvez soe melhor, convivem com seres humanos, com animais e árvores. Daí não ser uma cultura destrutiva, porque tudo é vivo e não há diferença de valoração entre os diferentes seres vivos.
O desencantamento do mundo precede a mercantilização que torna tudo objeto de consumo, um modo de ver que interfere nas relações pessoais. Então, me parece que é um pouco essa trajetória que você refaz nesse livro. De acordo com os comentários que li trata-se de uma literatura muito autoral, de linguagem radical, tanto que alguns críticos dizem que nem dá para classificar como romance, sendo um texto difícil de rotular. Daí, eu pergunto como é trabalhar com o texto de outro autor, como a adaptação tensiona sua obra e o original? Pelo que sei, você brigou com o Didier e, segundo Pedro, foi graças a você que conseguiram liberar os direitos, porque ele teria acusado você de interferir.
Reni Adriano
Eu nunca senti necessidade de escrever para teatro porque o meu trabalho com a palavra é muito literário mesmo. Sobre o meu romance, o [escritor] Luiz Ruffato inclusive fala que é literatura pura porque só está preocupada em ser literatura, esse poder da palavra cortante mesmo. De volta a Reims eu escrevi para o Pedro, foi a pedido dele, foi da nossa relação estudando o livro. Acho que escrever para teatro só tem sentido se você escreve para um ator e agora estou no processo com a Cácia então, para mim, justifica escrever para teatro, senão vou resolver o resto todo em literatura.
No caso do Didier, essa abordagem, é meu texto ou não é, eu tive uma crise depois que terminei de escrever, chorei, estava emocionado porque aquelas questões me tocavam e tocam. Eu falei: “É meu esse texto, não é dele, não quero o nome dele acompanhando”. E ao mesmo tempo, claro que era, as ideias eram dele, os fatos que acontecem ali.
Eu me senti muito aviltado quando Didier falou que não ia liberar os direitos porque eu não fiz um “copia e cola” e, quando eu vi a equipe toda derrotada, falei: “Espera aí, mas a gente não vai brigar com ele? A gente vai aceitar? Então é isso e acabou? Fizemos este trabalho, o trabalho está ficando lindo, somos pessoas sérias, sabemos o que estamos fazendo. E vai ficar assim?”.
Já quando ele não quis que fizéssemos a primeira versão, a gente teve que convencê-lo, então eu tive que fazer um parágrafo lá justificando, foucaultianamente. Porque essa modificação que o indivíduo faz sobre si mesmo para escapar às garras do poder é um pensamento que o Foucault traz em sua obra. Formamos a nossa subjetividade numa relação de poder, e o poder nos sujeita. Para Foucault, essa resistência é muito cara. Quando o indivíduo consegue estratégias para recriar a si mesmo, desconstrói aquela sujeição do poder e se modifica, se reelabora.
Daí, eu não me conformava que a adaptação do Laurent Hata tivesse deixado escapar esse ponto e ainda que o Didier, como autor do livro, tivesse deixado o diretor fazer sua obra sem levar isso em conta, porque é central. Sem Foucault não existe o pensamento do Didier Eribon. Então, quando ele fala que não quer nossa visão, que queria que fosse um trabalho de copiar e recortar, que eu não poderia nem recontar, do meu jeito, certos episódios porque ele queria a historinha dele, contada do jeito dele, achei tudo isso um desaforo.
Fiquei dois dias puto da vida. Não conseguia sentar-me diante do computador porque estava indignado, pensando se ele tinha lido com cuidado, se não achava a gente sério, mas aí eu me sentei e pensei: “Vou ser contundente, mas vou ser elegante”.
Escrevi uma carta de duas páginas para ele – “Então, meu querido, deixa eu te contar uma coisa: temos aqui um escritor negro, latino-americano, convidado por um ator negro, latino-americano, para adaptar para o teatro a biografia de um filósofo europeu branco. É claro que faz sentido a gente colocar o preto latino-americano contando a vidinha do europeu branco que subiu na vida e deixou certas questões para trás. Nós queremos discutir questões nossas, é para isso que se faz teatro, eu não estou preocupado em contar a sua vida.
“Se for para contar a vida de alguém eu conto a minha, que é tão interessante quando a sua, ou até mais. Você sabe o que é ser viado, pobre, preto e de Diadema [cidade do ABC paulista]? Você sabe o que é isso? Se eu for te contar quantas pessoas morrem no Brasil todo ano, são 64 mil homicídios [65.602 em 2017; 57.341 em 2018 segundo dados do Ministério da Saúde e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública]. E sabe qual parcela é preta? 77% são pretos e pardos [75,5% de acordo como Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA]. Sabe quantos viados morrem por serem viados? O buraco aqui é muito mais quente. E mais, você fica aí no seu livro reclamando da Marine Le Pen, fica escandalizado com o extremo direitismo dela… Mas você sabia que o fascista que foi eleito aqui no Brasil constrangeu até a Marine Le Pen com os absurdos que ele falou?”
Fui incisivo. “O negócio aqui é muito mais quente, então não estou interessando em contar a sua vida no palco, eu estou querendo discutir questões nossas e não é só razoável pedir para você os direitos como é legítimo, porque você é um filósofo, e do filósofo o que se pede são as ideias. Então, eu tenho sim o direito de levar para o palco as suas ideias e debater questões nossas a partir das suas ideias, dialogando com você e inclusive discordando de você. Nós temos esse direito, é legítimo.”
A tradutora, que é uma amiga minha, vive muitos anos na França e gosta muito desse trabalho, ela disse: “Depois dessa é claro que ele vai liberar”. Eu não sabia se ele liberaria, mas imaginava que, no mínimo, terminaria de ler o e-mail debaixo da cama porque ia morrer de vergonha. E aí liberaram no dia seguinte, mandamos à noite e no dia seguinte estava liberado.
Abre para a participação do público
Valmir Santos – jornalista e crítico
E ele argumentou o quê?
Vieira
Ele não argumentou nada. Antes a gente havia ficado 15 dias tentando negociar com a editora. Eu não tinha falado com ele até então porque estava brigando com a editora que é quem estava intermediando. Eu já tinha proposto para ele colocar inspiração e não adaptação, propus outras coisas, já tinha mandado planilha de custos, de gastos, falei sobre a estreia marcada e nada tinha resolvido. E aí era tudo ou nada, mandei de novo toda a planilha, todos os gastos e a carta com duas laudas e falei: “Manda bala porque agora ou vai ou racha”. A gente mandou e no dia seguinte ele respondeu que tudo bem, só pediu que a gente usasse “livremente inspirado”.
Beth
Seria
legal que você falasse um pouco sobre essa operação que você fez
sobre o texto porque no original o comunismo tinha um peso na votação
do operariado, e aqui isso muda. Como você trabalhou no contexto
brasileiro essa guinada, esse operário que deixa de votar nos
comunistas?
Adriano
Muda,
mas não muda muito. Na verdade, a gente está na vanguarda do
fascismo, porque a gente conseguiu fazer o que eles queriam fazer lá,
que era eleger um boçal. Para mim, a construção mesmo era mais no
sentido de desintelectualizar o texto, mas sem desvalorizar o
conhecimento que é central, afinal, ele se modifica pelo
conhecimento. E foi uma exceção. Os seus pares, os seus irmãos,
eles não tiveram o mesmo acesso e isso deveria ser direito de todos.
O amor aos livros é constante no texto. Ele é muito grato às pessoas que ele leu e isso tinha que ter, mas não queria que fosse um intelectual falando, porque ao ler o livro, você não esquece em nenhum momento que é um intelectual pensando. O livro é incrível, mas às vezes ele quase cai no pecado de usar a própria biografia para ilustrar um pensamento filosófico. Então, de jeito nenhum queríamos isso.
O que eu queria era o homem de cara limpa, de cara lavada, simbolicamente nu, dizendo aquilo tête-à-tête, contando para as pessoas, queria ele muito humanizado. Então, os livros citados não são para distanciar, como ele inclusive admite na própria obra, no epílogo. Ele argumenta que, como era difícil abordar o pessoal, usa a teoria crítica para suportar aqueles afetos. Falei que a gente ia tirar isso, mas as citações vão surgindo como ocorre na vida de qualquer grande leitor, brotam. Eu estou falando com você e, de repente, o Guimarães Rosa escapa sem que eu nem esperasse porque me constitui.
Ele é muito grato a essas pessoas. Por exemplo, me tocou muito, já no começo do livro, quando ele cita aquela frase do James Baldwin [“Eu imagino que a razão por que as pessoas se agarram tão obstinadamente a seus ódios é porque, no fundo, elas sentem que, uma vez que o ódio se esvai, elas serão obrigadas a lidar com a dor”, escreveu em Notes of a native son, acerca do quanto resistiu visitar o pai prestes a morrer]. Quando li fiquei comovido e pensei: “Que texto é esse que eu não conheço?”. Fui buscar na internet, achei uma cópia em PDF péssima, li aquilo maravilhado e quase que eu vou para o Baldwin e esqueço o Didier, de tão bonito que é. E aquilo dispara nele todo o questionamento sobre o pai, aquilo é suficiente para ele pensar nos afetos dele, é um fio que repuxa e vai levando.
Essa frase para mim é tão maravilhosa que, lembro, nos ensaios o Pedro dava para alguém ler [no solo ele faz isso com algumas citações], mas, e se fosse alguém muito tímido e a pessoa não lesse a frase direito? Ela é essencial e as pessoas não podem não entender essa frase, e aí surgiu a ideia de projetá-la porque essa frase é muito importante, ela dispara tudo.
Então, meu cuidado era esse homem de cara limpa, um grande leitor, grato a esses autores, que cita muitos autores negros, dos quais eu acho que trouxe uns três ou quatro. Eu queria essa beleza, esse homem grato àquilo que o constitui, sem a ideia salvacionista, mas àquilo que o salvou, porque, na verdade, um livro nos salva a cada dia, a cada leitura. Nos salva inclusive desses horrores que a gente acabou de atravessar, desses búfalos de verde-amarelo na Avenida Paulista defendendo o fascismo, por exemplo.
Quando eu vinha no caminho para cá, abraçado à amiga Rosana, que está aqui, ela estava muito abalada e eu também. Falei para a gente não falar sobre isso e para nos lembrarmos do porquê estarmos indo [ao Encontro], que era por outra coisa, que era pela leitura, pelo pensamento que nos modifica. Resistimos com beleza, inclusive é um privilégio estar aqui hoje, tendo um lugar para ir e trabalhar contra isso. E o Didier é assim, a vida dele é o testemunho disso.
Beth
É importante o que está acontecendo aqui no entorno, mas também é importante tentar falar sobre o que nós queremos falar e não sermos pautados pelo que está acontecendo lá fora, e que sabemos todos o que é. Tem um anti-intelectualismo fortíssimo tomando conta do país e essa peça é muito apropriada para fazer um contraponto a essa atitude, para mostrar como o pensamento e como o conhecimento podem abrir horizontes em muitos sentidos. Por outro lado, também existe o risco oposto, ou seja, às vezes o conhecimento é usado como uma arma, e Didier também fala disso, do que é o sentimento de não saber, de ser ignorante, o como isso afeta.
Você fala de Foucault e imediatamente me dou conta de que não tenho o seu conhecimento sobre a obra de Foucault. Então, às vezes a pessoa usa o conhecimento como instrumento de opressão, o que pode provocar ressentimento. Isso é um fio de navalha na peça. E dá para perceber como vocês buscam uma relação muito honesta com o pensamento exposto ali, mas sem serem arrogantes, sem fazer do conhecimento um exercício de poder.
Adriano
Só queria fazer um reparo sobre a questão política, quando eu disse que tive que recriar tanto, na verdade, tive de cortar porque uma coisa que eu não gostava na adaptação que o Pedro trouxe era um tom de palanque: “Ah, a esquerda, ah a direita”. Era chata aquela parte, parecia panfletagem. A terceira parte do livro é totalmente essa discussão, é a parte mais longa, ele faz uma análise muito apurada desse movimento, mas para chegar a conclusões que nós já sabemos. Ficaria muito enfadonho aquilo, então eu trouxe essa questão da direita e da esquerda em um único parágrafo porque já estava sendo discutida, já estava posta ali.
A crítica que ele faz à esquerda vem do fato dela ter tomado para si o discurso neoliberal e, assim, fez o trabalho da direita e, tragicamente, isso aconteceu aqui no Brasil, quando um governo se elegeu com uma bandeira de esquerda e depois disse ao trabalhador que teve acesso a direitos que ele não era mais trabalhador, era a nova classe média. Isso é muito trágico porque o trabalhador deixou de se identificar com essa bandeira que garantiu, inclusive, aqueles direitos que ele estava usufruindo naquele momento. E esse trabalhador órfão dessa identidade, esse trabalhador que se sente classe média é trágico, e isso me toca muito.
Então,
o papel da esquerda, segundo ele, seria recriar esse traço
identitário, unificá-lo de novo. E isso pode ser dito em um
parágrafo porque a gente não está fazendo sociologia ou filosofia
no palco, está também, mas é arte, então em um parágrafo a gente
resolve. E é contundente, mas a gente não podia ir jogando na cara
das pessoas. Como você muito bem observou, o Pedro vai para a
plateia, acompanha junto com o espectador e comenta sobre aquilo que
se passa.
Sérgio
Eduardo Courel – historiador
Conheço
o Reni já tem um tempo e eu fui ontem ver a peça. Fui com a minha
esposa e comentei com ela o quanto para mim foi tão chocante, porque
eu já me deparei com todos aqueles dilemas, menos o da
homossexualidade. Pensei no Reni e fiquei imaginando o que é juntar
todos os elementos, deve ser ainda pior. Eu sou historiador e, pela
minha formação, fui tentando entender as questões e o modo como
estavam sendo colocadas, porque a todo momento a peça é construída,
desconstruída e questionada. E o nosso desejo é achar resposta, eu
preciso da resposta.
Os questionamentos são maravilhosos, a questão da identidade, do conflito em família, que muitas vezes não é uma coisa aberta. E, acredito eu, todo mundo que, de certa forma, começa a lidar com questões intelectuais, começa a ampliar questionamentos, encontra uma certa barreira para lidar com o outro, e não só na família. Encontra também dificuldade para lidar com o próprio círculo de amigos, porque os seus interesses mudam, o seu ponto de vista muda, os seus questionamentos mudam e você se pergunta sobre o mundo em que você está.
Não é incomum que se tome antidepressivo devido à sensação de que se está errado, e o mundo está correto. E eu estou pensando em ir de novo assistir à peça, porque preciso tentar entender aquele negócio melhor, porque todos os dilemas ali são incrivelmente maravilhosos. E qualquer parte que o Reni, ou o próprio ator, gigantesco no palco, pudesse desenvolver um pouco, alguma cena, aprofundar, para mim qualquer cena, do começo ao final, eu gostaria muito.
Vieira
Vou
fazer um comentário por cima do seu comentário que talvez
potencialize o começo da conversa. Ontem minha mãe foi assistir ao
espetáculo e eu nunca me senti tão desconfortável no início da
sessão. Ninguém da plateia ouviu ou percebeu, mas, quando eu
comecei o insulto olhando para a minha foto pequeno [que é
projetada], minha mãe começou a chorar. Só eu ouvia porque a
conheço muito bem e sabia que aquela respiração era dela. Uma
respiração sofrida, e eu tinha que continuar fazendo o espetáculo,
porém o meu receio é que ela chorasse em voz alta.
Então, eu fiz toda a primeira cena pensando no desconforto não da minha mãe, mas no desconforto de toda mãe que se dá conta da humilhação que um filho gay sofre. É muito triste, os gays sofrem, mas não chegam perto da dor que sente a mãe que vê um filho sofrendo. Talvez a minha mãe nunca tenha ouvido um insulto em relação a mim, não diretamente, mas, naquele momento ali, acho que ela voltou 40 anos e pensou: “Foi assim que aconteceu com o meu filho?”.
Não sei o que passou na cabeça dela, só sei que respirava muito fundo e demorou para ela ficar confortável. Demorou tanto para ela quanto para mim porque na hora que eu olhei de rabo de olho, ela ainda estava se recuperando. Foi uma situação terrível, comentei com o Reni agora há pouco sobre isso, mas foi importante e talvez tenha sido a única ocasião que a minha mãe teve de entender o que de fato aconteceu e o que acontece com pessoas que são insultadas, e acho que ela compreendeu, de certa maneira.
Adriano
O texto fala da sujeição da subjetividade a uma moldura social determinante na formação do sujeito, mas fala também de uma rebeldia. Não dá para não falar das estruturas sem falar de como a subjetividade está em crise constante. Então realmente você vai ter que sair abalado do teatro, eu não posso te ajudar, não é confortável porque é de uma crise que estamos falando, de uma crise permanente de sujeição. E sujeição porque eu também sujeito o outro, muitas vezes do mesmo modo como ele, Didier, fazia com relação à família.
Mas eu queria pegar um pouco do que o Pedro falou sobre estar em cena com a mãe assistindo à peça. Eu chorei em dois momentos: quando escrevi o texto, porque me tocava ao ler em voz alta para mim mesmo, e no dia em que a minha mãe assistiu à peça. Nesse dia, chorei na plateia. Eu fui criado em Diadema e quando o pessoal de lá soube que eu tinha escrito uma peça, todo mundo se alegrou. Quando eu escrevi o livro foi a mesma coisa. Porém, para muitos, meu livro é considerado difícil, em especial para quem não é habituado com a literatura.
Minha mãe não leu o livro, ela tem o livro com a dedicatória, mas ela não leu; a minha irmã não entendeu bem, talvez, os meus amigos de infância muito menos. Então é muito triste você ter um reconhecimento pelo seu trabalho, perceber os seus se orgulharem, mas sem poder usufruir porque não tiveram a formação que você teve, que eu tive.
Quando foram ao teatro, vieram em comboio. O Emerson não acreditou quando eu pedi para ele separar 20 ingressos. Tinha minha mãe, minha irmã, meus sobrinhos, amigos de infância, alguns com filhos. E quando o Pedro começou a falar, aí o texto ficou completamente diferente para mim, no sentido de que tudo que eu não disse para eles eu estava dizendo naquela hora. Tudo que eu não disse para a minha mãe, tudo que eu não disse para esses meus amigos, eu estava dizendo ali, e aí eu chorei o espetáculo inteiro.
Valeu a pena ter feito. A cada vez que chega algum participante dos projetos de leitura pelos quais passei, por exemplo um que leu Guimarães Rosa comigo quando era adolescente, assiste à peça e se reconhece também naquilo, porque se tornou um leitor, eu sinto que vale a pena. Deu certo humanizar esse intelectual e colocá-lo a serviço de uma subjetividade que pode ser restaurada ao entrar em contato com ela.
Santos
O Pedro citou Jean Genet e eu queria fazer duas perguntas. Primeira, se você pode compartilhar o que faz como profissional fora do teatro, que também não deixa de ser uma profissão, claro.
Vieira
Eu trabalho na mesma área desde que cheguei em São Paulo, há 29 anos: uma empresa que importa aviamentos da China – tudo é made in China. Essa empresa começou com 500 m² e hoje ocupa uma área de 6 mil m² na zona oeste de São Paulo. A gente distribui mercadoria para o país inteiro. Então, eu tenho contato há quase 30 anos com o país inteiro, conheço gente de todas as regiões do país, lido com essas pessoas, me decepciono o tempo inteiro politicamente, tenho que levantar a cabeça, respirar e respeitar a opinião porque é meu ganha-pão. Nessa empresa eu trabalho como supervisor de vendas e sou comprador também.
Santos
A outra questão é que você citou Jean Genet e eu queria saber, a partir da experiência do trabalho de vocês, se é possível fazer uma associação ou mesmo um contraste com a obra do Genet, que é bastante conhecida no Brasil pela obra de dimensão sociopolítica contundente [Pedro atuou em Três paredes e meia, que era baseada na peça Nossa Senhora das flores, de Genet]. Percebem outras sutilezas, outras camadas em termos de poética, de escrita, se lembrarmos que os textos do autor de As criadas abordam o submundo, os seres considerados marginalizados, além de tratar da homossexualidade sem papas na língua?
Vieira
Toda a dramaturgia do Genet, como você mesmo disse já muito montada aqui no Brasil, sempre me interessou e não só por ser mais marginal, mais de gueto, mas porque é uma dramaturgia muito política. Se a gente pega o texto mais conhecido dele que é o Diário de um ladrão, é absolutamente interessante por falar de classe social, mesmo não sendo dito com essas palavras, mas ele fala exatamente de um grupo de pessoas marginalizadas, que está ali sobrevivendo.
O
Didier leu muito Jean Genet. Inclusive, tem um ensaio dele que fala
do Genet, e acho que tem uma influência, os dois autores se
relacionam muito, têm muita coisa em comum, sobretudo um Genet do
final dos anos 1970 engajado aos Panteras Negras. Depois de uma
década lutando em favor dos Panteras Negras ele se engaja na causa
da Palestina. Então, a gente tem um Genet até os anos 1970, que não
está tão diretamente preocupado com a questão social, e outro
Genet depois de 1972, 1973, até meados dos anos 1980, quando toda a
carreira dele é ligada às temáticas política e social, primeiro
nos Estados Unidos e depois na Palestina.
Adriano
O
que me agrada no Genet, particularmente, é a dimensão sagrada a que
ele chega por meio do abjeto. Ele afirma o abjeto, assume aquela
condição abjeta de tal maneira que chega à santidade, e isso que
eu adoro no Genet. No livro De
volta a Reims,
o Eribon tem também uma parte totalmente dedicada à cultura gay.
Então ele fala que existe um saber que se distribui ali na
clandestinidade. Uma diva pop fica conhecida e se torna um ídolo e
eles vivem aquilo. O autor diz, inclusive, que graças a isso ele se
tornou articulista de uma revista.
Ele tinha um namoradinho que o apresentou para uma amiga que era editora de uma revista e assim ele começa a publicar. Mas eu não trouxe isso à tona porque a gente tinha que focar numa coisa que é: a subjetividade atravessada pelos dispositivos de poder e a subjetividade como resistência, o que também demanda novas construções políticas. Por isso não explorei tanto essa questão da cultura gay, porque a subjetividade que estava no palco, em cena, que eu queria abordar é de uma dimensão política nem um pouco pequena.
Anette Fucks – aposentada
Eu vi a sua peça uma vez e gostaria de ver de novo porque o emocional me pegou e agora, com vocês falando, percebo que perdi algumas coisas. Eu também chorei e acho que quando a gente chora é porque se identifica, tem essa coisa da transferência. Então, eu gostaria de ver de novo. Ainda bem que você fez o texto desse jeito porque se fosse do jeito do Didier ia parecer aqueles filmes franceses em que os personagens ficam falando, falando e, ao fim, você não lembra mais como era o começo. Eu não sou negra, não sou homossexual, mas como me pegou essa peça de vocês na questão social, de relacionamento com a família.
A maior parte dos meus amigos é gay e na minha família o filho de uma prima é gay, então eu fiquei pensando que a sua mãe não chorou só porque ela viu que você sofreu, pode ser, e agora estou lembrando da minha prima, de quando recebeu a notícia de que o filho era gay, acho que ela sentiu vergonha, sentiu revolta, tinha críticas ao filho e depois ela teve que aceitar. É uma peça que mexe não só com gays, com negros, com professor de história, mas eu sou mãe e mexeu muito comigo.
Queria
que você falasse sobre o Eu
tenho tudo,
porque tenho uma turma de umas 30, 40 pessoas que vão ao cinema,
teatro, concerto, ópera, e um telefona para o outro e fala o que
viu, se é bom ou não, e eu fui uma das pessoas que vi primeiro e
saí falando para todo mundo que a peça era maravilhosa, com o
melhor ator do ano, fiquei impactada. Alguns
foram e outros disseram que não acharam tudo isso. E agora que tem
essa distância do Eu
tenho tudo
para o De
volta a Reims,
gostaria
que
você falasse um pouco sobre Eu
tenho tudo.
Vieira
Só
voltando um pouco na questão do produtor porque agora eu pego um
gancho. O
último trabalho, Eu
tenho tudo [de
2016],
foi
sucesso de crítica, mas também foi um fracasso de público. É
impressionante, as pessoas gostavam, mas não ultrapassava a média
de 15 espectadores
por
sessão. Eu
ainda tive a cara de pau de reestrear porque as pessoas ficavam
pedindo e reestreei no mês seguinte no Viga [Espaço
Cênico]
também com a mesma média de 15 pessoas, embora todo mundo saísse
no fim da sessão falando mil maravilhas. E cadê esse povo que não
aparece? E De
volta a Reims
não é diferente, as pessoas falam muito bem, sai crítica, sai
resenha, mas o público continua muito reduzido.
A gente entende que tem mais de 200 espetáculos em cartaz na cidade de São Paulo e escolher é muito difícil. Mas Eu tenho tudo foi um processo não diferente do De volta a Reims, só era um trabalho muito exaustivo, cheguei a cancelar duas vezes por conta de gripe. Eu não conseguia fazer o espetáculo, peguei uma sinusite durante a temporada e em duas ocasiões eu tive de parar o espetáculo na metade, porque eu não conseguia respirar. Era muito intenso, era muito físico o espetáculo.
Era a história de um homem que falava a um outro interlocutor invisível o tempo inteiro; era megalomaníaco, um cara que dizia que tinha tudo, que era o homem mais poderoso do mundo, tinha trabalho, tinha dinheiro, emprego e 40 mil na conta, e esse era o bordão dele, que eu usava no espetáculo o tempo inteiro. Na obra, na montagem original, terminava o espetáculo dando um tiro na boca. Na nossa encenação a gente terminava o espetáculo com ele atirando contra o espelho e a gente meio que fez uma morte coletiva.
Véronique – espectadora
Eu sou filha de franceses. Queria dizer que fiquei muito mexida com a peça, tanto que estou voltando hoje. E fazendo um gancho com isso que você falou sobre público, imediatamente ao sair da sessão, a primeira coisa que fiz foi ter postado no grupo de comunicação não violenta a respeito do quanto eu via pontos de contato entre essa peça e toda a filosofia da comunicação não violenta que é baseada na nossa humanidade em comum.
Resumindo
bastante, no fato de que toda a humanidade compartilha os mesmos
valores básicos e que os comportamentos diferentes, as agressões
entre as pessoas são uma expressão trágica dessas necessidades
comuns. Então, eu adoraria que você comentasse um pouco, já que
você também faz parte desse grupo, viu o meu comentário e entrou
em contato comigo, como você vê pontos de contato entre essa peça
e a comunicação não violenta, se é que você se interessa em
fazer esse comentário.
Adriano
Eu
adoraria ouvir você falando. Na verdade, a comunicação não
violenta é algo novo e que estou descobrindo agora, lendo o livro
agora e por influência de uma amiga, a gente se interessou pelo
assunto. Eu não saberia fazer essa ponte, mas agradeceria muito se
você fizesse e imagino que está todo mundo aqui interessado nisso.
Eu acho muito séria essa proposta e acho que você seria muito
generosa se pudesse fazer essa relação, como você vê e por que
você quis compartilhar lá. Quando vi, eu nunca tinha pensado que
pudesse me interessar por essa filosofia, me surpreendeu, e eu ia
mesmo te perguntar que ponte é essa quando te encontrasse depois.
Véronique
É
aquilo que eu estava começando a explicar. No
fundo, toda a humanidade compartilha determinadas necessidades e
valores. Quando você reúne um grupo de pessoas e pergunta para elas
o que é realmente importante, o que é elencado é parecido em todas
as culturas do mundo: amar e ser amado, respeitar e ser respeitado,
dignidade, liberdade, se sentir protegido e proteger a quem nós
amamos. Mas, infelizmente, na relação que se estabelece entre as
pessoas, perde-se de vista esses pontos de contato tão básicos e
comuns a todos nós. O teórico da comunicação não violenta, o
Marshall Rosenberg, tem uma frase que é muito contundente: “Toda
agressão é a expressão trágica de uma necessidade não atendida”.
Quando começa a peça, e começa justamente com essa citação do James Baldwin sobre o ódio, o que a comunicação não violenta faz é que ela te ajuda a fazer uma reflexão que desconstrói o seu ódio olhando por trás das manifestações de ódio, suas e as que você vê nos outros. Quais são os pontos comuns que podem existir entre você e essa pessoa que você supostamente odeia ou essa pessoa que supostamente te odeia e você agride e ela também te agride.
Eu poderia falar muito mais tempo sobre comunicação não violenta, que é um assunto que me apaixona, mas a minha sugestão é que todos vocês comecem procurando no YouTube E sobre Dominic Barter, uma pessoa que trabalhou muitos anos com o Marshall, que mora aqui no Brasil, e é um disseminador da cultura da não violência no país, inclusive criando a justiça restaurativa, que é uma aplicação especialmente interessante da comunicação não violenta.
Adriano
Agradeço você pela contribuição e por mais uma leitura possível da peça. Obrigado.
Maria Eugênia de Menezes – jornalista e crítica
Existe uma costura que me pareceu muito delicada da biografia do Pedro na obra e eu queria saber como esses episódios foram escolhidos e de que maneira vocês fizeram essa amarração e por quê. Me parece que ele já estava muito apropriado daquele texto. Por que ele toma aquilo como um sujeito e autor?
Adriano
Por isso, acho que tinha que ser um ator se posicionando com a sua própria subjetividade, isso estava em jogo, temos um intelectual se desnudando. Então acho que tem que ter um ator também fazendo isso como condutor dessa ideia, e não como intérprete de uma biografia alheia. Porém, dramaturgicamente falando, eu não fiz praticamente nada, nesse sentido. Eu chamava a atenção para isso, desde o começo era uma defesa que eu fazia e conversava isso com o Pedro, com a Cácia.
E sobre a Cácia, é uma pena ela não estar aqui, porque creio que é preciso ressaltar uma inteligência cênica extraordinária que ela tem. Ela é precisa, é cirúrgica na condução quando ela coloca um espetáculo em pé. Além disso, sou amigo da Cácia, acompanhava a criação no dia a dia, quando você vê o que se fala sobre o texto que vai ser montado: “Podia fazer assim, talvez ele de cueca, explorar essa coisa meio andrógena”… Então a Cácia tem uma inteligência cênica incrível e ela foi construindo com o Pedro, provocando o Pedro para trazer esses elementos icônicos da cultura dele. Por exemplo, essa parte biográfica, na qual claramente é ele quem está falando, se pondo como ator. Aquilo eu não escrevi e nem poderia escrever, tinha que ser ele fazendo.
A
Cácia falou para mim que tinha uma surpresa na estreia e eu pensei:
“O que vai ser? O que fizeram com o meu texto?”. E quando eu vi
aquilo fiquei maravilhado, alegre por
eles
terem
encontrado
essa solução. A Cácia é uma atriz autoral, ela pensa cenicamente
e tem muita facilidade de metabolizar um texto e de responder
cenicamente muito rápido. Essa
parceria com o Pedro foi muito feliz em
Eu
tenho tudo e
agora estou participando dessa alegria junto. Nós três somos
amigos, então acho que ela foi esse catalisador e, claro, isso muda
a dramaturgia também, mas é uma criação cênica, não é textual
e não podia ser, não tinha como ser.
Vieira
Tem
uma coisa interessante: a gente levantou o espetáculo, construiu,
mas depois começou a desconstruir. A ideia inicial era montar o
texto do Reni, mas a gente conversou e sabia que tinha que ter esse
traço biográfico nas entrelinhas, o Reni deixava os parênteses,
estava tudo aberto. Só que a gente levantou o espetáculo inteiro
sem nenhuma inserção, sem nada. Primeiro porque eu tive que tirar o
sotaque, o máximo que eu pude, para manter no começo uma certa
arrogância desse intelectual, construir ele mais pedante, com muita
pompa. E
depois a gente começou a desconstruí-lo, mas, de qualquer maneira,
a gente conversou e viu que faltava uma coisa que a gente precisava
encontrar.
Então, a Cácia me cobrou, eu tinha que levar alguma coisa, mas era o ensaio geral, o último ensaio, e na estreia ela não estaria porque em cartaz [na cidade com outro trabalho em que atuava].
Tem um vídeo que eu nunca tinha visto projetado, o da criança lá meio triste, amuada. Fazendo a cena eu olhei para a projeção e na mesma hora em que vi a criança eu interrompi e contei a história. Eu não tinha elaborado a história, mas sabia que em algum momento eu podia colocar qualquer coisa, mas alguma coisa que não causasse vitimização. É muito difícil fazer essa escolha. A ideia era a de que eu não escolhesse, era a de que isso acontecesse. Então, aconteceu justamente no ensaio geral. Eu contei aquela história rezando para que ela gostasse e ficasse, e ficou.
Beth
As fotos já estavam? Porque são fotos suas, na escola.
Vieira
As fotos já estavam, era a única coisa que tinha minha, mas que acaba entrando como dramaturgia de qualquer jeito. Mas acho que o processo de construir e depois desconstruir esse personagem tinha que ser considerado também, para dar uma limpada sujando.
Beth
De alguma forma a sua primeira fala, quando você começa a falar, ainda tem um pouco desse tom do intelectual, uma entonação mais enrijecida que logo depois muda.
Emerson Rossini – Assistente de direção
Tudo que está em cena é fruto de resistências e proposições, põe ou não põe, coloca ou não coloca. No primeiro pensamento, no meu, como também produtor, e no da Cácia, como encenadora, era para ser um cara fazendo uma palestra com mesa e lousa. Era só isso, porque a gente queria viajar e tal. Tanto é que, nos ensaios, a foto era entregue para o público, não tinha projeção, não tinha nada, o Pedro lia o texto e não tinha toda essa ideia de encenação.
A Bruna Lessa e a Cacá Bernardes são fotógrafas e fazem vídeo de teatro para a maioria dos grupos de São Paulo, e a Cácia sugeriu de chamá-las para fazer a luz também. E eu falei que elas nunca tinham feito luz de teatro, porque uma coisa é você criar e outra é saber qual o holofote que você vai precisar ali. Mas tentamos e elas toparam. Elas vieram com uma ideia de quatro projetores, era para ser tudo iluminado com projetores porque elas vinham do universo da projeção, mas a gente não tinha dinheiro para isso, então foi adaptando.
No cenário seria só uma lousa, a gente já tinha essa ideia, mas foi transformando porque se tem projeção, então a escrita poderia estar na projeção também. Essas coisas foram aparecendo já no último mês, nos últimos 20 dias e aí o espetáculo foi tomando forma. Eu queria também dar os créditos a esse trabalho conjunto, o som do Marcelo Pellegrini também foi incrível. A gente ensaiava com uma música que o Didier gostava e a gente usava essa música no final com ele andando de bicicleta, mas o Marcelo veio com uma composição própria. A gente tinha ensaiado a vida inteira com a outra música, mas essa escuta e generosidade de todo mundo envolvido, essa liberdade de poder sugerir, se não tem dinheiro para isso, faz de outra forma, isso faz acontecer o teatro.
Eu
acredito nisso do grupo todo trazendo suas criações, mas também
sabendo dar um passo atrás quando necessário. Isso foi muito bonito
de ver nesse processo, claro que com grandes tensões e discussões
às vezes, brigas, mas tem de dar esse crédito para o grupo, para
todo mundo que trabalhou.
Beth
Você,
Emerson, foi diretor de dois outros trabalhos do Pedro e está como
assistente de direção nesse. Falando em generosidade e
cumplicidade, imagino que tenha sido muito importante esse papel de
alguém que já foi diretor e está ali o tempo todo como assistente
de direção e entra também nos embates.
Rossini
Vai além, a minha relação com o Pedro é amorosa, a gente é companheiro há 20 anos. Então, conheci o Pedro na Escola Livre [de Teatro de Santo André] e dirigi duas peças com ele: Três paredes e meia e, depois, Resto de cerveja. E eu senti uma necessidade do Pedro, e até hoje eu ainda falo isso para ele, quando repetiu a Cácia, eu sugeri que ele chamasse outra pessoa para dar um novo olhar sobre o trabalho dele. E, não desmerecendo a Cácia, mas vocês viram o grande ator que ele é. Acho que para a formação dele é preciso escutar outras pessoas, se submeter à direção de outras pessoas. Eu saí de cena por isso, porque já tinha dirigido dois espetáculos, eu já sei dos seus cacos e ele também já sabe dos meus e a gente não vai andar mais do que isso. Então, deixa outras pessoas botarem o dedo. Aí a Cácia pediu que eu fizesse a assistência porque ela não estaria o tempo inteiro.
Adriano
Sobre o Genet, Valmir, tem uma frase linda do Sartre que o Didier recupera e está no programa da peça, algo como: “Não importa o que fizeram conosco; importa é o que fazemos com aquilo que fizeram conosco”. E essa frase do Sartre ele fala sobre o Genet, é do Genet que ele está falando quando ele cria essa frase maravilhosa.
Rossini
Uma
coisa genial e sensível do Pedro como artista… Quando a gente
montou Três
paredes e meia,
baseado em Nossa
senhora das flores,
era o Genet criando os seus personagens dentro da prisão. O Pedro
teve essa ideia numa viagem com o Teatro da Vertigem, quando eles
fizeram Apocalipse
1,11
numa prisão na Polônia e Pedro viu um dos presidiários lendo uma
versão de Nossa
senhora das flores,
em alemão.
Vieira
E
ele me falou algo
assim: “Se você tiver oportunidade de ler Jean Genet, você leia,
principalmente esse aqui, porque, como ator, pode fazer um bom
espetáculo a
partir desse
texto”.
Beth
Você
falou que as pessoas gostam muito, mas que tem sempre 15 pessoas.
Talvez um dos motivos da resistência esteja no fato de ser monólogo.
Acho que existe uma resistência, eu mesma tenho, aos solos. Claro
que é ótimo ter mais pessoas em cena, mas também há o medo de se
deparar com um espetáculo nascido da vaidade do ator. Talvez a
resistência seja essa. E são tantas as peças em cartaz todo fim de
semana. Talvez, estou especulando, isso pese na escolha.
Quando Denise Fraga participou da 14ª edição do Encontro com Espectadores lembro de ter comentado sobre essa tradição de atores produtores e dela ter comentado que produz peças sempre com muitas pessoas, mas entendo que ela consegue outras condições para isso [a atriz fez esse comentário ao participar da 14ª edição, que girou em torno de A visita da velha senhora; curiosamente, ela retornaria na 35ª edição, para discutir o primeiro solo de sua carreira, Eu de você]. Você já não queria mais um monólogo, como você mesmo falou, ao decidir por De volta a Reims.
Anette
Os monólogos que vi com Paulo Autran, com Cacá Carvalho tinham plateia lotada. Eu não tenho nada contra monólogo, eu gosto muito, eu vou ver. Você falou, Pedro, que temos 200 peças em cartaz, mas na minha listinha para ver só tem meia dúzia, o resto tudo para mim é lixo. Nem os meus amigos que são cinéfilos, que gostam de teatro, por que eles também não vão?
Vieira
A gente acha que o teatro que a gente faz é um teatro mais autoral, não é um teatro comercial. Os monólogos de Paulo Autran, de Cacá Carvalho, eles lotam porque os espectadores conhecem eles muito bem, às vezes não precisa nem de um release, as pessoas vão ver. Não é o caso de Pedro Vieira, que tem de ler o release, tem de ler críticas, tem de saber se é para rir ou se para chorar, tem de ler a ficha inteira para ver o espetáculo.
Beth
Público se faz ao longo da caminhada, o Paulo Autran tinha um público que não era no primeiro espetáculo dele, ele fez um público, como a Denise Fraga fez um público, como imagino que o Reni e você vão fazer o seu público se continuarem.
Catarina – espectadora
Eu sinto que as pessoas fogem do monólogo e das peças que tocam profundamente, o problema é esse. Quando a gente vê a peça, a gente fica com a peça e vai falando sobre a peça e muitas vezes as pessoas não querem, por isso que estamos nessa situação política que estamos.
Adriano
Da minha parte eu só tenho a agradecer a presença de vocês, ao convite, a esse papo maravilhoso. Quero agradecer também ao texto lindíssimo que o Valmir publicou ontem sobre a peça, uma crítica de alto nível, alguém que se dispôs a pensar mesmo, a pesquisar, se demorou no texto e prestou esse serviço maravilhoso a quem quer pensar através do teatro. Sou muito grato a vocês por terem saído de casa para falar de teatro e ainda mais nesse dia. Eu estava tão mal no caminho para cá, mas agora estou pleno e não vou deixar tirarem isso de mim, tirarem a nossa alegria. Ninguém vai conseguir tirar a nossa alegria.
Vieira
Quero também agradecer muito por vocês terem vindo. Muito obrigado à Beth, à Maria, ao Valmir, estou muito feliz de estar aqui e compartilhar e falar do espetáculo com vocês.
Beth
A gente também agradece a participação de vocês. Quero agradecer também ao André e à Carol, que fizeram a tradução em Libras. Ao Itaú Cultural pelo apoio que nos dá desde 2018. Agradecer a presença de todo mundo num dia como hoje, é muito bom ter vocês aqui, muito bom a gente poder estar aqui discutindo teatro.
.:. Leia crítica de Valmir Santos a partir de De volta a Reims neste Teatrojornal
Equipe de criação:
Direção: Cácia Goulart
Dramaturgia: Reni Adriano (livre inspiração para o teatro do romance Retour à Reims, de Didier Eribon)
Com: Pedro Vieira
Assistência de direção: Emerson Rossini
Luz e vídeos de cena: Bruna Lessa e Cacá Bernardes – Bruta Flor Filmes
Cenografia: Carol Buček
Figurinos: Cácia Goulart e Emerson Rossini
Música original e desenho de som: Marcelo Pellegrini
Assistência e operação de luz, som e vídeos: Michele Bezerra
Cenotécnico: Wanderley Wagner da Silva
Fotografia: Cacá Bernardes
Projeto gráfico: Osvaldo Piva
Colaboradoras: Bibianne Riveros e Maria Betânia Ferreira
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques
Produção: Pedro Vieira e Emerson Rossini
Agradecimentos: André Spinola e Castro, Bira Nogueira, Daniel Ortega, Evill Rebouças, Marília de Santis, Rever – Estudos em Fotografia e Tom Dupin.