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Crítica

Exposição cirúrgica da insensatez

16.3.2020  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Nereu Jr

Não matarás e Não cometerás adultério (este desdobrou no longa-metragem Não amarás) estão entre os filmes para a televisão que Krzysztof Kieslowski dirigiu na juventude a partir dos dez mandamentos bíblicos do Antigo Testamento. Considerada obra-prima do polonês, a série Decálogo foi rodada no final da década de 1980 em plena agonia do regime comunista no país do leste europeu. Os episódios tinham como pano de fundo um conjunto habitacional, microcosmo do esgarçamento do tecido social. A lembrança de Kieslowski é motivada pelo encontro com o espetáculo Tu amarás, que o grupo chileno Bonobo apresentou durante a 7ª MITsp.

A montagem expõe a cultura do ódio subjacente à convulsão social deflagrada há cinco meses no país sul-americano, portanto um ano e meio após a estreia da peça em abril de 2018. A capital Santiago e o interior vivem protestos de estudantes, trabalhadores e aposentados reprimidos por forças de segurança do governo Sebastián Piñera, submisso ao receituário neoliberal adotado por diferentes gestões desde o final dos anos 1980. Acuado, o presidente atendeu a uma das pautas dos manifestantes: reformar a Constituição que data da época do ditador Augusto Pinochet (1973-1990).

O espetáculo chileno ‘Tu amarás’ possui ainda uma camada mais complexa quando aprofunda a concepções do lugar de fala. Ouvir o vaivém de interpelações e dissuasões, por vezes em tom confessional, denota a gravidade dos tratamentos incutidos na formação do sujeito

Exceção à faixa estendida pelos atores ao final da sessão, no Teatro Porto Seguro, expressando que os direitos humanos não estão sendo respeitados nesse momento, sob democracia, Tu amarás não diz respeito diretamente às transformações em curso; antes joga luz sobre as relações interpessoais, outra importante maneira de apreender a realidade. No caso, a reprodução de atitudes segregacionistas sob o imperativo da competitividade ou da meritocracia em ambiente corporativo.

O título soa irônico ao emular o pensamento cristão em tempos de exacerbada intolerância com a ascensão da extrema-direita ao redor do globo. Afrontas à dignidade da mulher, dos povos indígenas, dos negros, da diversidade sexual e de gênero, dos imigrantes e refugiados, entre outras incongruências ressentidas, são replicadas no segmento de médicos participantes de uma conferência destinada a tocar na ferida do preconceito na prática da medicina. Cinco desses profissionais preparam uma exposição embasada na própria experiência deles numa comunidade onde vivem os Amenitas, seres extraterrestres marginalizados e, consequentemente, estigmatizados.

O estatuto da ficção abre flancos para uma narrativa da insensatez que condiz com modos de pensar, agir e proferir absurdos reconhecíveis por cidadãos de qualquer lugar. E proferido por médicos que, em geral, pertencem à elite econômica. Contudo, não espere respostas prontas às provocações que atingem o âmago.

Nereu Jr Cena do prólogo em ‘Tu amarás’, do grupo chileno Bonobo: nexo entre o processo de colonização e a estigmatização do outro na atualidade

A dramaturgia de Pablo Manzi, codiretor com Andreina Olivari, traz diálogos que aparentam transcorrer em banho-maria, assépticos até, mas quando os dilemas eclodem de um ato falho ou deliberado, o mal-estar instala-se violentamente. A discussão verbal evolui para a agressão física. É flagrante o desconforto dos personagens ao conhecer o ponto de vista diverso do seu por quem divide procedimentos comuns no cotidiano do trabalho com a saúde.

Nesse teatro da palavra, as objeções de ideias constituem força motora. Não há ansiedade no encadeamento dos discursos intimistas, pragmáticos e dissimulados. O prólogo, por exemplo, carrega tons farsescos que causam sinceras suspeitas da formulação poética que virá. Figuras de um índio e dois padres conversam sobre colonização, animais, sexo, genocídio e quem ali é inimigo de quem. Mas logo esse conteúdo fará nexo com os conflitos em jogo no país onde os mapuche resistiram aos conquistadores espanhóis no século XVI, apesar de a esmagadora maioria do seu território ter sido dizimada.

A trama permite reconhecer paulatinamente o DNA e o caráter do quinteto de médicos que caem em armadilha criada por si mesmos. No afã de expor aos pares da conferência anual a consciência humanitária no atendimento à comunidade de excluídos, eles acabam por revelar a porção monstruosa de cada um. Deixam cair as máscaras de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, traindo o código de ética do juramento de Hipócrates.

O espetáculo possui ainda uma camada mais complexa quando aprofunda concepções do lugar de fala. A origem, a crueldade, o dedo-durismo, o assédio (moral ou sexual), o bullying, a difamação e a descriminalização são fontes de discórdia ou de crime de fato, em retrospecto. Ouvir o vaivém de interpelações e dissuasões, por vezes em tom confessional, denota a gravidade dos tratamentos incutidos na formação do sujeito. O racismo ou a xenofobia não são natos, mas aprendidos e tornados estruturantes em sociedades permissivas, algumas religiosamente fundamentalistas.

Afinal, o que no conceito de humano distingue-se da natureza da vaca, do cavalo, do porco, do veado e do cachorro? A animalização é tema da conferência que os quatro doutores e uma doutora tentam elaborar coletivamente até a disrupção. Há entre eles quem faça piada com pacientes a quem atribuem características de animal para reduzi-los a seres de segunda classe.

Outro incômodo inicial é a disposição cenográfica das mesas e cadeiras em formato de quadrado, com as atuações se dando no interior ou fora dele, inclusive de costas para a audiência. Ao cabo, esse espaço que estorva e remete a salas ou auditórios típicos de grandes hotéis justifica-se pelo labirinto de assuntos e óticas que a obra escancara. Às vezes o desenho de luz sugere um ambiente suspenso de ficção científica, como se a encenação comentasse o alheamento dos personagens.

Essa é a terceira criação do grupo Bonobo, fundado em 2012. Trata-se de homônimo do parente vivo mais próximo dos homens, ao lado do chimpanzé, ambos primatas conhecidos pela generosidade em dividir sua comida voluntariamente com colegas. O desaparecimento do traço ancestral da fraternidade é legível nas entrelinhas da peça.

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.:. Acesse o site do grupo Bonobo

Nereu Jr Os desenhos de luz e de cenografia chegam a alterar a percepção da sala de conferência onde cinco médicos travam embate de ideias

Equipe de criação

Dramaturgia: Pablo Manzi

Direção: Andreina Olivari e Pablo Manzi

Com: Gabriel Cañas, Carlos Donoso, Paulina Giglio, Guilherme Sepúlveda e Gabriel Urzúa

Design de cenário, luz e figurino: Felipe Olivares e Juan Andrés Rivera

Música original: Camilo Catepillán

Coordenação técnica: Raúl Donoso

Produção: Horacio Pérez

Coprodução Espaço Checoeslovaquia e Fundación Teatro a Mil

Apoio: Dirac – Ministério das Relações Exteriores do Chile

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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