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Resenha

O sopro da arte no corpo de Ana Kfouri

30.3.2020  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Humberto Araujo

Era para acontecer hoje a 37ª edição do Encontro com Espectadores – ação do Teatrojornal que se configura como uma conversa entre artistas, críticos e público sobre um espetáculo previamente escolhido. O solo Uma frase para minha mãe, da atriz Ana Kfouri estaria em foco inaugurando um novo calendário: neste ano os encontros voltam a se dar nas noites segunda-feira, sempre a última do mês, em lugar das tardes de domingo, como vinha ocorrendo desde 2018, quando o evento passou a ser apoiado pelo Itaú Cultural.

Não foi um cancelamento, apenas ficou para mais adiante, quando pudermos nos reunir sem que isso signifique colocar a vida dos mais frágeis em risco. Então, a temporada paulistana talvez seja retomada, dando oportunidade a quem não viu devido à interrupção provocada pela pandemia. E, finalmente, Ana Kfouri e Marcelo Jacques de Moraes, o tradutor do texto do poeta francês Christian Prigent, autor de Uma frase para minha mãe, poderão conversar com os espectadores sobre essa criação.

No livro ‘Força de um corpo vazado’ a escrita não se configura como relato de trajetória e se há traçado é para observar os rastros que conduzem ao ponto de inflexão que se dá no encontro da atriz e autora com dois pares artísticos: o dramaturgo franco-suíço Valère Novarina e o irlandês Samuel Beckett

Por que não tentar realizar um encontro online? Toda pessoa que já tenha participado de alguma edição do EE pode avaliar a importância da presença que dá corpo às palavras para além dos significados que elas carregam. Ali, no calor da hora, diante dos demais, a enunciação se altera, por vezes sai elíptica, mas o corpo fala onde a palavra falha. E, sem que haja acaso nessa articulação, é possível dizer que o espaço aberto pela falência da língua é o campo investigado por Ana Kfouri em seu trabalho teatral.

Forças de um corpo vazado é o título de seu livro e também a imagem poética por ela encontrada para tentar dar conta de sua busca por um corpo que não seja depósito de identidade, o produtor de ideias acabadas, mas canal por onde passam os sopros das mais diversas alteridades. A publicação é fruto de sua tese de doutoramento em artes visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem prefácio da pesquisadora Angela Leite Lopes e divide-se em quatro capítulos que, segundo a autora, podem ser lidos em qualquer ordem. Neles, ela compartilha a autoanálise de seu processo criativo em articulação com pensadores do teatro e/ou filósofos.  

Ana Kfouri filia-se à vertente da cena contemporânea marcada pela desconfiança para com a linguagem que se funda na ideia de que palavras são ferramentas para a transmissão de um conhecimento. Em vez de compreender para falar, ela prefere acionar o inverso: falar para compreender, ampliando assim a margem de invenção do gesto criador.

Brecht e Beckett, cada a um a seu modo, são os grandes representantes da demolição das narrativas de sentido pronto e acabado. O primeiro por desmontar os elementos de sua composição revelando os interesses na origem dos arranjos e abrindo a possibilidade para outras combinações. Já Beckett trabalhou para o esvaziamento das palavras ao limite do silêncio, desvelando a consciência da finitude na gênese de toda fabulação. “É difícil, depois dessas duas grandes figuras, perguntar-se de novo e de maneira inocente ‘como narrar’? e o ‘o que narrar’”, avalia o teatrólogo Jean-Pierre Ryngaert (Ler o teatro contemporâneo, Martins Fontes).

Ana Kfouri parte de indagações similares que a inquietavam, inicialmente, de forma intuitiva, uma vez que no seu percurso de artista “a teoria esteve por um tempo atrasada em relação à prática”. Ainda assim, diz que sempre se sentiu atraída por uma dramaturgia “tecida em lugares outros que não o da linearidade e das relações intersubjetivas”. Vale lembrar que na década de 1980 ela atuou em espetáculos dirigidos por Gerald Thomas como Carmem com filtro e Mattogrosso.

Em 1992, realizou a sua primeira direção, e também assinou o roteiro do espetáculo A lua que me instrua, colagem de fragmentos de textos teatrais, literários e filosóficos. Com esse trabalho fundou a Companhia Teatral do Movimento e, com ela, encenou Volúpia (1997), sobre erotismo e com roteiro baseado na obra Hilda Hilst, e, de novo como coletânea de textos, Gula (1999) tendo voracidade como tema e Preguiça (2004) que aborda as relações de trabalho. No livro, ela comenta a espacialização inusitada deste último, cujos espectadores acompanhavam deitados a cena enquanto o elenco atuava suspenso um plano acima do público. 

Dalton Valerio A atriz, professora e pesquisadora Ana Kfouri num dos solos de Valère Novarina, ‘A inquietude’ (2007), produção carioca sob direção Thierry Trémouroux

Mas sua escrita não se configura como relato de trajetória e se há traçado é para observar os rastros que conduzem ao ponto de inflexão que se dá no encontro com dois pares artísticos: o dramaturgo franco-suíço Valère Novarina e o irlandês Samuel Beckett. “A experiência, com o universo de Valère Novarina, a partir de 2005, fez-me compreender latências – corpóreas, cognitivas, afetivas, filosóficas – fazendo-as presenças indeléveis no meu fazer diário, como artista, atriz, diretora, professora”, escreve.

Três textos de Novarina compõem o roteiro de Esfíncter (2005), da qual assina concepção, roteiro dramatúrgico e direção. O título pode parecer bizarro, mas se articula a uma imagem cara ao autor: a de que toda palavra cênica passa primeiramente pelo “orifício” do ator. Como atriz, ela retomará dois textos de Novarina que integraram a composição de Esfíncter e irá atuar com eles nos solos O animal do tempo (2007) e A inquietude (2009).

Pouco depois, entre 2012 e 2015, estará envolvida com o Projeto Beckett integrado pelos solos Moi lui e Primeiro amor (2012-2015). Não por acaso, o livro traz um contraponto entre Beckett e Novarina, leitura proveitosa especialmente para atuadores, uma vez que é feita do ponto de vista de uma artista em sua lida concreta com matérias tais como respiração, sonoridades, pulsações da carne. “O corpo em Beckett parece eclodir para dentro, encontrando o vazar de si num movimento de contenção”, diz Ana. “Já Novarina implica um corpo brincante, cujo pulsar interno parece realizar um movimento para fora (…). A fala salta em Novarina, cava, expande, explora”.

Outro ponto de interesse é aproximação que ela faz entre Artaud – outro mestre na crítica ao teatro textocêntrico – e Novarina. Deles, entrecruza pontos de vista para detectar afinidades como a “demanda por transgredir significâncias”. Por meio da análise do conceito de “corpo sem órgãos”, de Artaud, ela conclui que, mesmo lançando mão de procedimentos distintos, ambos buscam “atores de intensidade e não de intenção”.

Essa distinção é, sem dúvida, chave para a compreensão do conceito de corpo vazado por ela defendido e investigado por meio de um experimento no qual faz do espaço de um longo corredor – desses dos prédios de arquitetura mais antiga – um campo de atuação. Inicialmente pesquisa movimentos e sonoridades nesses espaços de passagem e, aos poucos, os recria em espaços abertos até ao ponto de poder vivenciá-los em si mesma, como “linguagem que faz pulsar uma poética no andarilhar a esmo, sem endereçamento, sem começo ou fim”.

Na última parte do volume, destinada simultaneamente à análise desse experimento-corredor, a origem acadêmica da escrita passa a ser predominante, tornando a leitura de interesse talvez mais restrito. Porém é importante reconhecer que a capacidade de afetar a sensibilidade do público está diretamente ligada à verticalidade com que os artistas se dedicam a ampliar seus recursos inventivos.

Em Uma frase para minha mãe, Ana Kfouri parece ter encontrado mais um par na arte de se colocar em ato, de tomar um texto para se colocar em jogo e propor ao espectador que faça o mesmo. Esperemos que, em breve, ela mesma, presencialmente, possa falar sobre os princípios éticos e estéticos que a moveram a escolher esse texto de Prigent como sopro para percorrer o seu corpo vazado.

.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de Uma frase para minha mãe, no âmbito do Festival de Curitiba de 2019

Dalton Valerio Cena de ‘Uma frase para minha mãe’ (2018): livro da atriz é fruto de tese de doutoramento em artes visuais na UFRJ e tem prefácio da pesquisadora Angela Leite Lopes

Serviço:

Forças de um corpo vazado (144 páginas, R$ 58,00)

Autoria: Ana Kfouri

Editora: PUC-Rio e 7Letras

Reprodução

Uma frase para minha mãe

Equipe de criação:

Texto: Christian Prigent

Tradução: Marcelo Jacques de Moraes

Direção e atuação: Ana Kfouri

Colaboração artística: Marcio Abreu

Cenografia: André Sanches

Iluminação: Paulo César Medeiros

Assessoria de comunicação: Rachel Almeida

Fotografia: Dalton Valerio

Programação visual: Taiane Brito

Direção de produção: Ana Paula Abreu e Renata Blasi

Assistência de direção: Tainah Longras

Operação de luz: Julia Requião

Redes sociais: Natalia Balbino

Idealização: Ana Kfouri

Produção: Diálogo da Arte Produções Culturais

Realização: Companhia Teatral do Movimento

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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