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Biocritica - Uma questão de conta...

BiocríticaHorizonte da Cena conta...

A vista alcança além

26.1.2021  |  por Luciana Romagnolli

Foto de capa: Ana Luisa Santos

O Horizonte da Cena nasceu em um salto das páginas de jornal para as páginas digitais. Estávamos, Soraya Belusi e eu, motivadas à escrita de crítica de teatro, mas já sem encontrar espaço satisfatório nos cadernos de cultura de veículos impressos. Trabalhávamos as duas no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, e entre as cadeiras das bancadas da redação tramamos nossa migração e nossa desejada independência.

Idealizamos um espaço onde pudéssemos exercitar um tipo de crítica de teatro que, àquele momento, interessava a nós duas, na fronteira entre o texto jornalístico e a pesquisa acadêmica. Outros sites haviam nos permitido vislumbrar essa brecha: a Questão de Crítica (RJ), primeira revista eletrônica de crítica teatral com a qual colaborei, ainda em 2010, ao chamado da editora Daniele Ávila Small; o Teatrojornal (SP), de Valmir Santos, e o Satisfeita, Yolanda? (PE), de Ivana Moura e Pollyanna Diniz, fundados poucos anos antes. Havia uma vibração convidativa a fazer das plataformas digitais um espaço mais autoral e experimental de escrita e reflexão sobre teatro, em diálogo com a teoria, na contramão dos jornais que praticavam sucessivos cortes nos cadernos de cultura e nas folhas de pagamento.

  

Desde as jornadas de Junho de 2013, com a ascensão dos discursos reacionários, em um contexto de crescente conscientização sobre o caráter estrutural do racismo e da misoginia na sociedade brasileira, urgia repensar qualquer pretensa neutralidade e em assumir posicionamentos públicos éticos e políticos – dos quais o estético não escapa. Nessa toada, a concepção de uma crítica analítica, que não se enredasse em juízos de valor, tornava-se insuficiente. Nos anos seguintes, com o golpe que depôs a presidente Dilma Rousseff, interrompendo o caminho democrático que o Brasil ainda construía, e com a posterior eleição de um projeto de poder conservador e autoritário – que se mostra também genocida –, o pensamento editorial do Horizonte da Cena sofreu transformações

Em setembro de 2012, o Horizonte da Cena entrou no ar como um blog. Naquele mês, publicamos textos sobre o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, de Santos (SP). A cobertura de festivais daria o impulso a essa primeira fase e permitiria, pouco a pouco, alguma sobrevivência financeira, ao permitir às idealizadoras receber convites de trabalho atrelados à atuação no site. Em oito anos de existência, o site nunca foi subvencionado.

No campo das ideias, ensaiávamos uma crítica que se desamarrasse das expectativas do senso comum sobre gosto e orientação ao consumo, preponderante na grande mídia, quando esta demonstrava algum interesse pelo teatro. As vivências acadêmicas no mestrado da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais atravessavam os textos. Particularmente, compreendo hoje que deixavam um rastro de citações, referências a outros autores, muitas vezes mal deglutidas pela inibição em assumir posições. Os dedos estavam apontados para outra direção: a investigação de modos de escrita a partir de um olhar para a cena que fosse indagador, problematizante, e encontrasse fôlego na análise ancorada em teóricos teatrais contemporâneos e na sensibilidade do espectador-crítico.

Desde o início, a interlocução com a Questão de Crítica, o Teatrojornal e o Satisfeita, Yolanda? nutriu as reflexões sobre crítica, sobre teatro e sobre a aventura digital. A afinidade entre as casas, guardado o respeito às especificidades de cada uma, mantinha minha motivação viva. Em setembro de 2013, a reunião de todas no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, para a escrita No Calor da Hora, plantou uma ideia de intercâmbio, que começou a tomar forma de projeto em 2014, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, quando integramos juntos o Coletivo de Críticos, uma formação temporária de prática da crítica. Essas trocas afetivas, de olhares, ideias, referências e perspectivas críticas se concretizariam no ano seguinte com a criação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.   

Desse modo, embora seguíssemos no Horizonte da Cena somente Soraya e eu, havia uma prática de coletivo permeando nosso trabalho e um movimento de desbravar um novo campo de atuação, em que a crítica fosse compreendida como parte integrante do circuito do teatro e estivesse no escopo das ações de mostras e festivais. A compreensão da proximidade entre crítica e curadoria embasou a proposição da ocupação Conexões, na Funarte-MG, idealizada por nós duas, e efetivada entre outubro e dezembro de 2015, com apresentações de espetáculos, abertura de processo e debates sobre a atividade do espectador.

Guto Muniz A partir da esquerda, Daniel Toledo, Luciana Romagnolli, Soraya Belusi e Julia Guimarães Mendes, integrantes do site Horizonte da Cena durante o Encontro DocumentaCena abrigado no centro cultural Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, em 2016

Aquele ano, além disso, marcou o início de uma segunda fase do Horizonte da Cena, com novo endereço e layout, e a progressiva maior abertura para outras vozes de Belo Horizonte. É importante dizer que o caderno de cultura do jornal O Tempo, o Magazine, então editado por Silvana Mascagna, havia sido uma espécie de incubadora para o site. Um ambiente surpreendentemente fértil para as artes da cena (embora as instâncias superiores passo a passo o podassem) onde Soraya e eu encontramos outros dois críticos de teatro parceiros, Daniel Toledo e Julia Guimarães Mendes. Em 2015, Toledo juntou-se a nós na edição do site e, logo depois, formamos um quarteto com Julia.

Interessados na produção de pensamento crítico sobre a cena teatral de Belo Horizonte, de uma maneira mais articulada à história dos grupos e aos contextos de produção do que somente nas críticas episódicas, gestamos o projeto Dossiês Críticos, que teve apenas duas edições, dedicadas a discutir, sob diversas perspectivas, o teatro do grupo Espanca! e da encenadora Cida Falabella. Alguns dos colaboradores convidados a escrever permaneceram na equipe do site nos meses e anos seguintes. Foi o momento da entrada do professor Marcos Alexandre [dos cursos de letras e de teatro da UFMG], até hoje nosso fiel integrante, e do crítico de cinema Victor Guimarães, que atualmente edita a revista Cinética, e, dali em diante, estabelecemos muitas parceiras provisórias, como a poeta e pesquisadora da performance Mariana Lage, os críticos e artistas curitibanos Henrique Saidel e Francisco Mallmann (fundadores do site Bocas Malditas, do PR), entre outros.

Nessa fase, portanto, houve um fluxo grande de colaboradores com passagens mais ou menos esporádicas pelo site. A multiplicação das vozes, contudo, esbarrava na impermanência, consequência previsível de um regime de colaboração voluntário, sem geração de renda. Ao mesmo tempo em que ambicionávamos atuar mais intensamente na cena teatral belo-horizontina, a precariedade das condições de trabalho não permitia a sustentação e a continuidade das ações. Ainda assim, esses movimentos legaram uma transformação no tecido crítico do Horizonte da Cena, que se tornou mais poroso a outras linguagens artísticas e a outros modos de escrita sobre a cena. Nem o modelo jornalístico nem o acadêmico reinavam mais, os colaboradores lançaram-se ora em direção à forma epistolar, ora à poética, por exemplo.

2016 foi também um ano-chave para o site – e, em proporção incomparável, para o país. Em fevereiro, realizamos o primeiro Encontro DocumentaCena, no Galpão Cine Horto, com o Satisfeita, Yolanda?, o Teatrojornal e a Questão de Crítica. Ouso dizer que fomos felizes naqueles dias de debate sobre teatro contemporâneo e sobre os nossos projetos de crítica, gestação de projetos e encontro com agentes públicos para afirmação da importância de as políticas públicas para arte abarcarem a esfera crítica. Entretanto, quando voltamos a nos encontrar em novembro, em Curitiba, no I Idiomas – Fórum Ibero-Americano de Crítica de Teatro, idealizado por Daniele Avila Small e eu, o governo havia sido destituído por uma ala conservadora (para dizer o mínimo) e – entre nós – a DocumentaCena estava reduzida às casas mineira, carioca e pernambucana. Ainda assim, o Idiomas concretizou-se como um episódio raro na história da crítica teatral brasileira, pelo convívio e troca de ideias entre profissionais da área de diferentes gerações, vindos de diversos estados do país, do Uruguai, Argentina, Portugal e Espanha. Podia-se, então, falar em um movimento de crítica de grupo no Brasil. 

Naquele mesmo ano, o Horizonte da Cena criou um novo projeto voltado a ultrapassar a comunicação escrita – os Diálogos Horizontais, encontros com artistas e público, que almejávamos tornarem-se semestrais, para debater a produção de teatro da cidade de Belo Horizonte nos meses anteriores, em uma troca mais direta e “corporificada” com outros agentes da cena teatral. Realizamos a primeira edição também no Galpão Cine Horto, duas posteriores no Sesc Palladium e a última novamente no Cine Horto, em torno da programação do FIT-BH 2018. Está por ser retomado.

Divulgação Registro da segunda edição do projeto Diálogos Horizontais no Sesc Palladium, em 2017: participantes do site moderam encontros presenciais com artistas e público com intento de ultrapassar o território da comunicação escrita

Desde as jornadas de Junho de 2013, com a ascensão dos discursos reacionários, em um contexto de crescente conscientização sobre o caráter estrutural do racismo e da misoginia na sociedade brasileira, urgia repensar qualquer pretensa neutralidade e em assumir posicionamentos públicos éticos e políticos – dos quais o estético não escapa. Nessa toada, a concepção de uma crítica analítica, que não se enredasse em juízos de valor, tornava-se insuficiente. Nos anos seguintes, com o golpe que depôs a presidente Dilma Rousseff, interrompendo o caminho democrático que o Brasil ainda construía, e com a posterior eleição de um projeto de poder conservador e autoritário – que se mostra também genocida –, o pensamento editorial do Horizonte da Cena sofreu transformações.

Em 2017, após a saída de Toledo e de Julia da edição, o performer e pesquisador Clóvis Domingos engajou-se como editor assistente, trazendo uma renovação das energias e desejos, que franquearam novos rumos para o site. Ao celebrarmos os cinco anos de atuação, em um Diálogo Horizontal especial realizado no Sesc Palladium em setembro daquele ano, já formávamos um grupo de uma dezena de críticos fixos e colaboradores – Soraya Belusi; eu; Clóvis Domingos; Marcos Alexandre; Victor Guimarães; o ator e curador Diogo Horta; a atriz, curadora e pesquisadora Soraya Martins; a atriz e jornalista Joyce Athiê; o ator e jornalista Bremmer Guimarães; o ator e pesquisador Igor Leal. A pluralização de vozes e olhares, trazendo distintas vivências do fazer artístico, acompanhou um maior comprometimento com os debates éticos do nosso tempo, sobretudo as questões raciais e de gênero, em seus atravessamentos estético-políticos. Não à toa, também, coincidiu com o período em que exerci a curadoria dos Olhares Críticos da MITsp, ao lado de Kil Abreu (2017) e Daniele Ávila Small (2018-2020), e conduzimos essa programação para o enfrentamento de questões políticas da arte.  

Em 2018, Clóvis assumiu a edição do Horizonte da Cena ao meu lado, abraçando o projeto como o grande responsável pela sua continuidade e reestruturação, enquanto eu me desdobrava entre maternidade, doutorado e a curadoria daquela edição do FIT-BH. Soraya Belusi se afastou para realizar outro projeto profissional, como editora de esporte de O Tempo, mas manteve seu posto inabalável de fundadora do site, e após uma série de saídas e entradas, um novo grupo se fortaleceu.

Divulgação Componentes do Horizonte da Cena em 2017: site nascido em setembro de 2012 empenhado em investigar modos de escrita a partir de um olhar para a cena que fosse indagador, problematizante, e encontrasse fôlego na análise ancorada em teorias teatrais contemporâneas e na sensibilidade do espectador-crítico

Ao longo de 2019, intensificamos nossos encontros e os debates internos, e encerramos o ano com a impressionante – ao menos para nós – regularidade de publicação semanal, com um corpo muito mais plural de críticos: Clóvis e eu, editores; e os críticos Marcos Alexandre; Diogo Horta; Soraya Martins; Victor Guimarães; a performer e escritora Ana Luisa Santos; o historiador e dramaturgo Mário Rosa; os atores e pesquisadores Guilherme Diniz e Felipe Cordeiro. Um coletivo com perfil de artistas-pesquisadores, que exercem também atividades de curadoria, dramaturgia, atuação e pesquisa acadêmica. Esse caldo espesso, composto de distintas referências, vivências e pontos de vista sobre a prática de teatro, fez da produção crítica do Horizonte da Cena um quadro mais complexo, aberto à escuta do nosso tempo e a encontrar modos de convívio com respeito às diferenças e ao dissenso.

Se houver um epílogo para este texto, neste atípico ano de 2020 ao fim do qual foi escrito, trata da resposta diante da pandemia e de suas consequências para a prática teatral. Na contramão do imperativo de produtividade, que nos pareceu insustentável diante da tragédia coletiva, liberamos a pauta e promovemos alguns poucos encontros em plataformas digitais. A formação atual já não conta mais com Mário, e tem novamente Julia Guimarães, recém-chegada após um período fora. Trouxe a proposição de uma série podcasts, com periodicidade espaçada, para experimentar a oralidade como prática crítica, refletindo sobre o teatro no contexto de distanciamento social.

Este não é o momento mais propício a enxergar longe. A nebulosidade da pandemia dificulta o exercício que o nome do site (mesmo que não tivéssemos consciência disso lá em 2012) propõe: lançar a mirada para o horizonte da cena e tentar discernir o que a vista alcança – sem ponto fixo, sempre além. Seguimos no movimento de questionar. As frases impressas nos marcadores de livro, em 2017, ainda não cessaram de reverberar por aqui: O que você faz com a sua crítica? Como você transforma o seu olhar? Para onde vamos agora?

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Divulgação Instigações aos participantes dos Diálogos Horizontais

Luciana Romagnolli (Curitiba, 1983) é crítica, curadora e jornalista. Bacharel em comunicação social (UFPR); especialista em literatura dramática e teatro (UTFPR); mestre em artes (EBA/UFMG); e doutora em teoria e prática do teatro (ECA/USP). Foi repórter nos jornais Gazeta do Povo (PR) e O Tempo (MG); e curadora de mostras e festivais como o FIT-BH 2018 e os Olhares Críticos da MITsp 2017-2020. É coordenadora de crítica do Janela de Dramaturgia e editora-fundadora do site Horizonte da Cena.

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