BiocríticaMaria Eugênia de Menezes conta...
O trajeto percorrido pelo site Teatrojornal durante sua primeira década está exemplarmente exposto em seu próprio nome. Valmir Santos, Beth Néspoli e eu, que compartilhamos a edição da plataforma, fomos seduzidos inicialmente pelo teatro. Depois, passamos ao universo do jornal, com suas técnicas e regras. Para mais adiante, encerrados nossos ciclos dentro das redações, habitarmos um lugar de síntese, onde pretendíamos que os dois universos se comunicassem.
Teatro-jornal é o nome de uma técnica desenvolvida por Augusto Boal nos anos 1970. O título escolhido para o site, portanto, presta esse explícito tributo ao diretor e dramaturgo. Mas sua escolha está também declaradamente ligada ao desejo de transportar para uma plataforma digital – senão os regramentos do jornalismo – ao menos alguns de seus valores: a honestidade na abordagem, a recusa das práticas de compadrio e favorecimento, a tentativa de evitar preconceitos e pré-julgamentos. Além da pretensão de falar a um público amplo, sem se ater a vícios de linguagem e a jargões técnicos.
À primeira vista, trata-se de uma conceituação simples – escrever de forma razoavelmente clara e capaz de atingir o leitor que não necessariamente está ligado ao meio cênico. Essa ambição do Teatrojornal, porém, mostrou-se invariavelmente um desafio para seus editores, pedindo revisitas aos seus preceitos, reflexões e ajustes de rumo. Enquanto um veículo de imprensa chega a um público de interesses e formações diversas, um site destinado à crítica teatral não possui o mesmo alcance nem está aberto ao encontro fortuito e não programado com o leitor, o que ocorre, por exemplo, quando alguém abre o jornal pela manhã e percorre um “cardápio” variado de notícias e artigos.
Sabemos o que a crítica não é – nem mera opinião nem análise totalizante. E conhecemos o desejo dos que a praticam na contemporaneidade: criar um discurso que seja, sobretudo, diálogo, tanto com os criadores como com a sociedade. Estamos, contudo, ainda no meio do caminho para forjar os traços dessa crítica que se pratica em espaços livres. Um caminho que só se fará caminhando
Aliás, o próprio consumo de informação nos meios midiáticos se transformou enormemente nos últimos anos, tornando um tanto anacrônica essa imagem de alguém que folheia um jornal. Mesmo dentro de periódicos de grande alcance, a maneira de navegar pelos conteúdos se dá hoje de maneira muito mais segmentada. Repete-se a lógica das bolhas das redes sociais, em que os interesses e crenças se retroalimentam.
Alguns representantes de outros blogs, sites e revistas eletrônicas de crítica teatral também apontaram nos ensaios que escreveram para o projeto Biocrítica a transição que tiveram que fazer entre a prática jornalística e a escrita para espaços virtuais. No caso do Teatrojornal, esse trânsito deu-se entre o regozijo pelo desaparecimento dos constrangimentos de prazo e espaço, e a incerteza trazida pela implosão de balizas de estilo, regras de comportamento e fontes de financiamento. O crítico não mais precisa temer a verticalidade de suas análises ou a pressão dos prazos. Mas ganha, de quebra, a responsabilidade por obter – sem intermediários – apoio financeiro para viabilizar o seu trabalho. Tudo isso em uma época de vertiginoso fluxo de informação, em que se resiste à ideia de pagar pelos conteúdos que circulam pelas redes.
Não foram poucas as vezes, portanto, em que se precisou ponderar e repactuar os limites da síntese pretendida: entre os pressupostos do jornalismo e os da nova crítica que estava a nascer. Tivemos que reinventar preceitos de atuação, criar meios de resguardar a independência da linha editorial do site de suas recentes buscas por apoio, além de procurar – sem a pretensão de chegar a uma resposta única – a melhor maneira de se colocar diante de uma obra de arte contemporânea.
Voltemos no tempo. A crítica moderna está ligada ao florescimento das cidades-estados na Itália e a retomada de autores gregos clássicos, como Aristóteles. No contexto renascentista, a Poética foi reabilitada, tornando-se objeto de diversas traduções e sendo utilizada como meio de definir critérios e parâmetros para o julgamento das obras teatrais. O crítico, nesse momento, colocava-se como um legislador, a apontar se determinada peça cumpriu exemplarmente a obrigatoriedade das unidades de tempo, espaço e ação, as distinções entre tragédia e comédia ou as regras para o comportamento das personagens.
Em desuso hoje, a figura do crítico “juiz” tinha uma importante função em um mundo onde a arte expandia seus domínios e códigos. A obra de arte deixava de ser apenas aquilo que era feito para apreciação da nobreza, tornava-se também território a ser descoberto e usufruído pelas classes médias emergentes. O mesmo crítico que julgava se um espetáculo havia sido “corretamente” executado, também tinha como missão fazer a mediação entre esse público neófito e as formas artísticas. O criticismo ainda chegava para se contrapor ao poder da Igreja, que até então resguardava para si a exclusividade nesse papel de legisladora, além de tentar propagandear os poderes pedagógicos das peças na difusão de valores morais.
Dois séculos depois, os ideais românticos, de valorização do eu e da subjetividade, vieram demandar uma nova maneira de se relacionar com as criações. A celebração da criatividade individual e dos direitos do indivíduo levou a crítica a mirar uma peça sob nova perspectiva. O julgamento não mais deveria se dar com base em razões externas, mas a partir de estruturas e pressupostos orgânicos, lançados pela própria obra de arte.
Antes que essa divagação se alongue demais, cabe dizer que a pretensão aqui não é a de se traçar um panorama da história da crítica, mas apenas explicitar que não existe uma maneira correta de se fazer crítica, mas muitas – constantemente atreladas às incontáveis transformações vividas pela história do pensamento, da arte e também da imprensa.
A crise (ou possibilidade de renascimento) que vivemos hoje é, portanto, de múltipla natureza. Uma crise dos discursos totalizantes, que demanda uma nova maneira de aproximação do fenômeno teatral. Mas também uma crise de autoria, com a implosão dos suportes tradicionais de escrita e a democratização do acesso aos meios de expressão.
“Todos nós sabemos que a arte não é a verdade”. A sentença de Pablo Picasso deixa patente como os artistas do século 20 se viram obrigados a repensar o conceito de mimesis. Com os artistas da cena, não foi diferente. A reprodução verossímil do real deixou de ser um objetivo; os princípios do drama, até então inabaláveis, tiveram que ser todos revistos. Como então analisar e criticar os espetáculos do presente? Se desapareceu o teatro da projeção de sentido e da síntese, desapareceu também a possibilidade de uma interpretação sintetizadora.
Um crítico que não legisla, nem julga nem tem uma interpretação definitiva a entregar. O que diferencia o seu discurso de outros? Até o surgimento da internet, críticos eram aqueles que detinham o monopólio de um suporte de fala. As últimas décadas, porém, são de implosão sistemática desse monopólio, com a dissolução do espaço da crítica nos jornais. “A crítica brasileira se vê reduzida a pequenos comentários opinativos sobre espetáculos isolados, ainda tolerados, mais do que valorizados e prestigiados, em alguns raros diários e revistas semanais. Vários órgãos da imprensa que tinham tradição no ramo desapareceram; outros extinguiram suas colunas de crítica”, comentava o crítico Yan Michalski, em um depoimento de 1984. “O teatro só consegue ganhar espaços mais extensos quando serve de assunto mais informativo do que crítico, ou seja, quando o jornalista é mero transmissor dos pontos de vista expressos por artistas ou por frequentadores, sem posicionar-se ele mesmo enquanto autor de enfoques pessoais.”
Contrapeso à ruína dos antigos canais de difusão da crítica foi o feliz fortalecimento dos espaços de pensamento nos centros universitários. Enquanto a crítica praticada nos espaços jornalísticos tornava-se ligeira, cada vez mais valorativa do que analítica, a academia seguia na direção contrária com um florescimento, nos últimos 40 anos, de cursos e publicações. A crítica ultra especializada, contudo, está por natureza apartada do público. Quem unirá as duas pontas?
A proliferação dos meios digitais de expressão parecia ser o Fio de Ariadne dessa história. Mas a própria mudança do suporte mostrou o alcance do labirinto do qual tentamos escapar. Uma pesquisa da rede de venda de ingressos Ticketmaster, realizada na Inglaterra, mostrou que cerca 20% dos espectadores, após assistirem a um espetáculo, tinham o hábito de usar as redes sociais para postar seus comentários e impressões sobre a obra. Se todos podem ter opiniões, todos podemos ser críticos?
Trata-se de uma provocação certamente exagerada. Sabemos o que a crítica não é – nem mera opinião nem análise totalizante. E conhecemos o desejo dos que a praticam na contemporaneidade: criar um discurso que seja, sobretudo, diálogo, tanto com os criadores como com a sociedade. Estamos, contudo, ainda no meio do caminho para forjar os traços dessa crítica que se pratica em espaços livres. Um caminho que só se fará caminhando.
.:. Leia mais sobre o dossiê Biocrítica que abriga a trajetória de 11 casas de crítica na internet, além de textos analíticos do panorama que perpassa oito estados.
Maria Eugênia de Menezes (Vitória, 1980) é jornalista, crítica teatral e uma das editoras do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Há mais de dez anos, escreve para O Estado de S.Paulo. Também trabalhou na Folha de S.Paulo, onde atuou como repórter e editora. Assinou a curadoria de programas e festivais de teatro, é autora de capítulos de livros e publicações e participa do júri de importantes premiações do setor.
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.