BiocríticaKil Abreu conta...
Neste momento não se pode começar um texto sobre crítica e sobre críticos senão reafirmando o estado atual das coisas. Que alcança a crítica mas vem antes e está além. Para nós que não nos sentimos capturados pelas políticas da morte (o que não nos faz melhores), a sensação é de que o humano está sendo devastado pela doença e pelo assassinato como política de Estado. Ponto crítico. É um momento da democracia em que se pode parafrasear os versos daquela canção falando sobre o aqui que ainda era construção, mas já é ruína. Os mais politizados perguntarão, com razão: “Mas quando não foi assim?”. A diferença fundamental é que no agora, como em poucos outros agoras, a ordem autoritária monta estratégias próprias. A matança, como sempre, tem endereços prioritários. Não cabe descer aqui a pormenores, não é o tema, mas cabe lembrar – não é questão de querer ou não – que este é forçosamente também o sítio da crítica. E a crítica não deve querer estar em suspenso sobre a nervatura do real, deve fazer parte dela.
Sistema estético, História e quintais
No meio dessa devastação a tarefa, um presente, uma promessa de aprendizado, era visitar a casa das parceiras e parceiros de ofício – blogs, sites, revistas eletrônicas. Para escrever. Feito isso uma pergunta se impõe: como olhar? Como olhar e escrever, em síntese, a vastidão do já olhado? A primeira conclusão a que se pôde chegar é sobre uma dificuldade: a de totalizar minimamente projetos e procedimentos, a de tecer, obedecendo não a idealizações, mas aos aspectos materiais postos à vista, um panorama que, de qualquer maneira, não alcançaria nem de longe todos os aspectos relevantes no repertório de atitudes e modos de linguagem oferecido. Pensei então em seguir a recomendação de Antonio Candido para o enfrentamento do objeto, observando o contexto específico. Encontrar, como dizia o mestre, recorrências que pareçam indispensáveis, linhas de força que definem a coisa essencialmente, as “dominantes”. Então vamos, não é?
Ainda não. É que a partir daqui algumas questões nada acidentais se colocam no caminho. Cada “casa”, como disse bonitamente o Valmir Santos, tem a sua chave própria, ainda que lá dentro o habitar, os sotaques, as maneiras de ver o mundo do teatro e algumas práticas de existência possam ter coisas em comum com a vizinhança. Usar uma só entrada não daria certo. No caso brasileiro em particular, não dá certo pelo óbvio das razões históricas: já não há projeto de leitura do teatro que responda a um sistema estético e crítico em que possamos identificar termos amplamente compartilhados. Este acordo que nos dava chão e referências acabou, esgotou sua função, ao menos naqueles termos, com a nossa importante crítica moderna. Já faz tempo, é certo. Mas a memória da experiência continua inspirando práticas – legítimas, por óbvio –, aqui mesmo neste conjunto de sítios sobre os quais conversamos. Este movimento que é a um só tempo ruptura com parâmetros de apreciação já parcialmente superados e ao mesmo tempo a recorrência eventual às formas vindas deles, é parte da coisa. Então isso que chamaríamos de “dominantes”, no sentido de um esperado repertório mais ou menos comum de instrumentos, diversificou-se enormemente. Foram abertos quintais onde essas trupes (às vezes moradas de um, nem tão trupes, às vezes verdadeiras repúblicas) buscam respiros. É o que nos dizem de pronto estas 11 portas. Cada uma delas tem na entrada uma plaquinha de “Bem-vindo”, mas escrita à sua maneira.
No debate espontâneo que se pode intuir lendo, ouvindo, vendo os sítios, há outra coisa bastante apontada, que é a da valoração, quase sempre tomada como algo negativo, que deve ser evitado. Novamente o confronto com a tradição. E aqui a perspectiva histórica talvez ajude a compreender o meio de campo um tanto embolado. Porque, salvo engano, o problema não é a valoração, que enfim ajuda a distinguir a crítica de outras disciplinas. A questão é que a valoração tem função e tem linguagem. Valeria a pena então pensar sobre quais têm sido as funções e linguagens do valor, quando estão presentes. O que as constitui? A que elas servem? O que dão a ver, o que escondem?
Tradição, migração
Os traços fundamentais da migração que uma parte destes críticos e críticas fizeram e continuam fazendo – dos pressupostos daquela crítica moderna aos modos atuais – têm como uma das características a fragmentação de projetos. A tentativa de diluição do que seria em outro momento “o” método e a atitude crítica esperados é, muitas vezes, salvo um ou outro caso pontual, anunciada como uma negação deliberada. Mas nem sempre nosso desejo de negar formatos já assimilados e considerados ultrapassados encontra saídas em que se note deslocamentos fundos no sentido que mais interessa, que é o da produção de pensamento em bases realmente frescas. Às vezes ficamos por conta de um formalismo up-to-date, que no entanto não passa muito disso mesmo, formalismo, apresentação fora das caixinhas. O que já não é pouco, mas também não é tudo. É como se nossos projetos apresentados permanecessem reféns voluntários, no melhor e no pior sentido, do fantasma de Barbara Heliodora. Ela, shakespereana, certamente não se aborreceria com essa imagem de fantasma. O problema é que nem sempre conseguimos não ser Bárbara quando esta é a intenção. E também não conseguimos ser, porque não é fácil. No Cena Aberta, que tento construir dia a dia com o meu parceiro Rodrigo Nascimento, também é assim. Há um chamado à autonomia que segue em plena construção, e certamente seguirá com suas arestas, lacunas e novidades expostas. Tudo ao mesmo tempo agora.
Então leio o quadro da seguinte maneira: a negação aqui e ali é indício de um reposicionamento em geral intuitivo e necessário de quem está cuidando do ofício, em termos novos, cheios de contradições. O que não é bom nem ruim, por princípio. São formações. De um jeito ou de outro, neste processo há duas variantes que estabelecem paralelas bem visíveis entre as quais esta produção digital circula: a quase falência do jornalismo cultural nos jornais impressos (levada às suas extensões em rede) e o papel das universidades ou ao menos de certo espírito de especialização que colocaram estas pessoas – nós – às vezes mais, às vezes menos, no meio dos estudos teatrais nas últimas décadas. Boa parte das práticas referenciam-se, por recusa ou influência, nesses campos.
A revista Questão de Crítica, por exemplo, fez nestes anos uma trajetória notável em que desenha projeto que é quase uma defesa contra a crítica jornalística, ao tempo em que deseja discutir a parte mais fresca da cena. A ideia de qualificar a reflexão e fugir o quanto for possível da análise impressionista está na origem. A redefinição do olhar inclui a entrada de colaboradores que observam a produção teatral com repertório exercitado na academia, sem que isto leve os textos ao que costumamos identificar como o padrão da crítica acadêmica. Daniele Avila Small diz algo que se repete em outros agrupamentos: “a criação da revista foi uma consequência direta da minha vivência no curso de Teoria do Teatro na UNIRIO. Desde 2006, eu vinha escrevendo críticas em um blog pessoal e queria fazer um projeto maior, que envolvesse mais gente”[1]. No mesmo contexto, não se pode deixar de notar que o aproveitamento da experiência universitária traz efeitos colaterais: “As vivências acadêmicas no mestrado da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais atravessavam os textos. Particularmente, compreendo hoje que deixavam um rastro de citações, referências a outros autores muitas vezes mal deglutidas pela inibição em assumir posições”[2], diz Luciana Romagnolli, do mineiro Horizonte da Cena. Ao norte, o projeto Tribuna do Cretino, sob comando do professor Edson Fernando, segue sob abrigo da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará. A UFPA forma atores e atrizes desde os anos 1960, mas nunca formou críticos. Pedagogias necessárias, para fora e para dentro, pois.
Quanto ao desembarque parcial ou total dos jornais impressos que se deu nos últimos anos (em alguns casos a escrita alterna-se entre os dois espaços, o impresso e o virtual, próprio); ou quanto a uma geração que já nasce desembarcada da grande imprensa, as perspectivas abertas são de várias ordens. O que se ganha de imediato é a liberdade editorial. E espaço. Nunca mais o texto reduzido a três parágrafos porque o departamento comercial mandou para a página, na hora do fechamento, o anúncio das Casas Bahia. O rareamento do espaço, recorrente nas falas, tem síntese no que diz Michele Rolim, do Agora Crítica Teatral de Porto Alegre: “Inaugurada de forma sistemática e permanente no jornal Zero Hora, a crítica teatral em Porto Alegre, de 1978 a 1990, era assinada por Claudio Heemann. Depois de Heemann, a Zero Hora abandonou o sistema de uma coluna periódica e passou a solicitar crítica por demanda, realizada, ultimamente, de maneira esporádica no jornal”[3].
Desta ida de malas e cuias para o céu generoso, porém mais instável e menos visível em que estão as nuvens, fazem parte não só os novos e novas como também jornalistas veteranos e veteranas da cobertura teatral, que trazem na bagagem enorme contribuição acumulada, ao registro e à crítica, no impresso. Como Macksen Luiz, Beth Néspoli, Valmir Santos, Ivana Moura. A concentração e insuficiência do impresso alcança o esquema editorial ou é consequência dele. A queixa geral tem vocalização contundente com o pessoal da revista Barril, de Salvador, que lista entre os princípios que alimentaram os primeiros anos a vontade de “alimentar a cidade com uma revista dedicada à crítica, pois a semirreflexão jornalesca daqui estava caducando em ritmo desenfreado”[4]. A caduquice percebida não é algo acidental, atinge o núcleo duro do trabalho de reflexão, da relação cada vez mais distanciada com os artistas e, pode-se dizer, do sentido mesmo de existência da profissão nestas circunstâncias. Ivana Moura e Pollyanna Diniz, do pernambucano Satisfeita, Yolanda?, desdobram essa visão angustiante de rua sem saída em termos de vida ou morte: “O instinto de sobrevivência pode nos salvar de perigos, de ameaças de extinção. O Satisfeita, Yolanda? nasceu desse desejo de reexistir num mundo em que a arte e o pensamento crítico estavam na mira do aniquilamento”.
É como se Foucault soprasse no ouvido da gente aquela ideia de que a crítica é antes de tudo um gesto de leitura que se for amplo vai levar o leitor a interpretar-se a si mesmo. Como dizem as mulheres do Recife, enxergar a condição própria naquele momento, neste momento, era, é, questão de sobrevivência.
Coletivos, frentes
A necessidade de permanência fora do esquema fordista que orientava e orienta a produção crítica concentrada no impresso leva, segundo a maior parte dos relatos, à busca de modos coletivos de produção, ao menos quanto à criação dos espaços. É evidente que a reunião das pessoas será por algum tipo de afinidade, mas a regra quase absoluta é que os agrupamentos não apagam as tonalidades individuais quanto à escrita. Os sites, blogs e revistas tendem a apresentar-se com programas mais ou menos fluidos (nem todos), sustentados em propósitos comuns que podem gerar, nas reflexões, caminhos diferentes.
O efeito mais imediato dessas re-uniões é a abertura do arco de ação da crítica, que se amplia da avaliação estrita de espetáculos em busca das outras possibilidades de ocupação que o teatro pode oferecer. Há o surgimento de prêmios a partir daqui (Questão de Crítica) e um acento relevante nas atividades pedagógicas como as que, por exemplo, o Teatrojornal (Encontro com Espectadores), Tribuna do Cretino (no âmbito da extensão universitária), Horizonte da Cena (Diálogos Horizontais) e outros promovem. Alcançam também a discussão da própria crítica, influenciando o fomento de ações novas dentro dos festivais, promovendo o encontro de coletivos (DocumentaCena) ou eventos como o Idiomas, com participação de estrangeiros.
No meio desse movimento todo o intercâmbio entre ideias, que também é pedagógico, é bonito. Por exemplo, as maneiras como em determinado momento da trajetória, o Tribuna do Cretino encontra o livro de Daniele Avila Small (SMALL, 2015) e começa a mudar as formas de atuação. Ou de como o Parágrafo Cerrado, de Mato Grosso, surge a partir da oficina de Beth Néspoli. Para um ofício que estava morrendo já não é pouco. É quase uma re-formação e uma reaproximação ao corpo do teatro em ações espontâneas.
E, como no teatro, a ideia de agrupamento não é de fácil contorno. Raras exceções à parte, o grupo é uma reunião por necessidade e por afinidade, mas não é família. Se forma e reforma com frequência. Normalmente mantém-se em um núcleo duro e com o passar do tempo colaboradores eventuais entram e saem. Assim o coletivo se renova sem deixar de manter fundamentos. Um relato dos mais ricos que reverbera outros e dá conta deste movimento é o de Valmir Santos a partir do Teatrojornal. Nos diz sobre como, ao núcleo formado por ele, Beth Néspoli e Maria Eugênia foram agregados, nestes dez anos, escribas de vários lugares do país. E de como a certa altura foi preciso retornar ao grupo inicial. Uma operação que ele traduz na necessidade de ‘diminuir para verticalizar’: “As etapas anteriores foram importantes para se perceber que ampliar o território implicava afastamento da verticalidade necessária a quem se dedica ao ofício (…) Dessa forma, tornou-se essencial recolher-se nesse momento para avançar mais fortes”[5].
O mais promissor destes ajuntamentos de pessoas que se conhecem e reconhecem no interesse pela crítica não é a possível iconoclastia da escrita ou o eventual combate a modos julgados velhos de leitura e atuação, ainda que estes sejam disparadores. O mais alentador é a percepção de que a crítica pode acontecer de vários modos sob uma regência razoavelmente compartilhada, cuja ética é também percebida num raio coletivo. Como diz a psicanalista Rita Almeida em outro contexto: “como algo que se instala no laço entre as pessoas e não apenas dentro delas” (ALMEIDA, 2019).
Apresentação, subsistência
Na área mais imediata da editoria, pode-se dizer que a regularidade das publicações é variável e depende fundamentalmente de apoio. Assim como o acabamento visual dos sítios. No Brasil de hoje o apoio público à arte e suas produções já está, na prática, interditado, por conta de uma não-política movida pelo ódio vingativo contra artistas. Quanto aos projetos de reflexão, nem é preciso esforço para constatar o deserto. Mas é preciso dizer que antes da atual onda conservadora já era assim. O país não tem política para a publicação de conteúdo cultural, é algo entre nós menos que incipiente. Os festivais de teatro continuam aqui e ali sendo lugares de trabalhos eventuais – mas, mais do que isso, eventos em que se pode enriquecer o repertório vendo espetáculos de outras praças que não a sua, inclusive os de fora do país. A docência e, onde há fomento público remunerado, os próprios projetos teatrais podem ser fontes de renda.
Por isso mesmo é notável as diferenças quanto à regularidade das postagens e à apresentação, entre os poucos espaços que conseguiram apoio. É perceptível, por exemplo, a continuidade dos trabalhos em sítios como o pernambucano Quarta Parede, subvencionado por editais públicos, o Teatrojornal, apoiado por órgãos privados (Sesc, Itaú Cultural) ou a revista Antro Positivo, em comparação ao que é possível fazer nos outros espaços, mantidos fundamentalmente sob o amadorismo (não no sentido de qualidade editorial, mas de sustentação econômica, que não conta com rendimentos). Exemplar nesta questão é o depoimento de Macksen Luiz, um veterano a quem devemos – em um resumo que não resume tudo – a imensa contribuição de quase 50 anos de registro e pensamento em torno da cena. Depois destas décadas de militância crítica regular; depois de encerrar colaboração com o Jornal do Brasil e, adiante, manter por alguns anos a publicação de suas críticas simultaneamente em O Globo e no blog próprio, ele afirma: “O que se modifica é a relação voluntarista e amadora, determinada pela ausência de monetarização (profissionalização) da matéria produzida. Não há qualquer meio de financiamento ou patrocínio para blogs individuais, centrados em um nome e que têm como única credencial o acervo de credibilidade e o lastro jornalístico”[6]. Não é, pois, um panorama alentador. E mesmo assim seguimos.
Blog, site, revista eletrônica. Textos, vídeos, áudios. Dossiês-panoramas, videocasts, podcasts, videospots. As apresentações e os veículos por onde circulam os materiais são diversos, por vezes mesclando características de plataformas diferentes. De uma página mais simples tipo blogspot – que no entanto pode guardar os conteúdos mais fundos, como a de Macksen Luiz –, ao fino acabamento da Antro Positivo, há muitas soluções. Nesta última chama a atenção a “busca da singularidade” por via, no entanto, de uma apresentação tradicional, que reproduz o formato da revista impressa. O singular, salvo engano, é o contraste. Tem apelo e os artistas adoram serem chamados e chamadas a frequentar suas páginas. Ali também são comemoradas “metas de acesso” que repercutem uma pauta mais internacionalista que a maior parte dos outros espaços.
E quem é o leitor, a leitora? Se no impresso temos o indicativo suposto de um perfil de leitor – aquele mesmo do jornal em que se publica – nas edições digitais é mais difícil essa aferição. Os números referentes ao acesso não alcançam distinções. Pelos relatos e pela visita aos espaços conclui-se que se por um lado a reflexão ganha profundidade, liberta da concorrência com o departamento comercial e da tesoura editorial, por outro perde-se de vista a cara do leitor, agora mais volátil.
Mesmo diante de um estado de coisas bastante precário há em geral muita vitalidade nos quintais. A ponto de fazer os frutos inventarem-se pelo avesso. De fazer a periferia política do país virar centro, através de um empenho na investigação da cena que vai além dos terrenos imediatos. Seja através da abertura da pauta a outras linguagens (como fazem os baianos e baianas da Barril), seja através de uma pauta que acompanha o movimento teatral sempre que possível olhando longe. É o caso das moças do Satisfeita, Yolanda?, que acompanham e costuram a cena pernambucana aos outros polos da cena nacional. São misturas gostosas e sustentadas, que diluem separações históricas e desfazem simbolicamente o “cada qual no seu lugar” através do que, como sabemos, a historiografia do teatro brasileiro foi sendo escrita sob a hegemonia do olhar sudestino. Ivana e Pollyanna bagunçam esse coreto com a maior vitalidade possível. Vão e voltam numa trança justa (uma lição), que registrou até aqui além da crítica de montagens, conversas e reflexões de Eugenio Barba a Antonio Cadengue (salve Cadengue!), de Magiluth ao Teatro da Vertigem. Sem financiamento. E então tem que haver espaço para o espanto. É o que acontece em boa parte dos outros sites. As condições ruins não impedem a firmeza das respostas. Nesse sentido, as casas em foco aqui, e neste tempo de morte, não deixam de ser de algum modo casas nas quebradas. Como as outras. Sim, os sites, revistas e blogs por vezes são quebradas onde se experimenta o desamparo sem muito reclamo. Mas também a ida para cima. Como disseram Ivana e Pollyanna, talvez porque “poder escrever sobre teatro é um exercício de liberdade”[7]. Com ou sem condições, é algo que ainda não nos arrancaram.
Políticas, poéticas
De Macksen Luiz, um crítico por excelência, a um coletivo que não quer ser chamado de grupo de críticos como o pessoal do Parágrafo Cerrado, os programas são variados. Os pontos de vista, superfícies em que se adere ou que se combate, também. Mas algumas recorrências são notáveis. Por exemplo, a vontade de negação dos modelos de análise “instituídos”, considerados autoritários. E o desejo de desierarquização, de aproximação entre crítica e criação, entre crítica e artistas, crítica e público. Só estas duas coordenadas já carregam consigo uma infinidade de práticas, muitas delas bem aventurosas, a ponto de em certo momento termos de perguntar se ainda é de crítica que estamos falando. De uma ou de outra maneira a aproximação aos artistas e a disposição para horizontalizar as relações são propostas recorrentes.
Isto aparece, por exemplo (mas não o único exemplo), na Quarta Parede, quando se discute a pauta quase como projeto de militância em torno de uma sociologia que o teatro abarca, nas questões que estão sendo levadas à cena ou que derivam dela, como a censura. Daí o interesse por discutir e, não sem motivos, defender trabalhos como La bête, performance de Wagner Schwartz; ZOE, de Francini Barros; Abrazo, dos Clowns de Shakespeare; ou O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, de Renata Carvalho. Anunciam através dos textos uma deliberada aproximação entre estética e política na qual o debate artístico não aparece dissociado dos contextos. Ao contrário, é regido por ele. Se por um lado corre-se sempre o risco de sociologização da crítica, por outro ganha-se em politização da escrita, na correção de muitos anos de pensamento anódino, descompromissado das marcas do tempo. Ganha-se na compreensão, enfim, de que a forma teatral é todo o seu processo.
Na Antro Positivo a aproximação com os artistas se dá na alternância entre o uso da resenha e do diálogo, uma forma sem dúvida muito viva de prospectar a estética ao tempo em que se diminui distâncias. Na Barril, a abertura acontece por via da pauta ampliada a outras linguagens além do teatro. Talvez não rigorosamente no sentido de conexões entre elas, mas ao menos de justaposições que dão à revista um menu mais próximo da crítica cultural no sentido amplo.
Certo espírito iconoclasta e a tentativa de fugir ao que se reconhece como padrão de análise é recorrente. No Tribuna do Cretino, por exemplo. A disposição socrática que inspira com bom humor o nome do site já indica questionamento quanto ao lugar de poder do crítico. Há experimentos que levam o texto a limites interessantes, às vezes quase chegando ao depoimento íntimo. Sem entrar no mérito dos resultados, aqui e além, o importante é verificar em que medida já se avança, pelos caminhos da linguagem, em direção não só a outras formas, mas a outros ofícios da escrita. Perguntar-se a respeito não das similitudes, porque elas são muitas, mas das diferenças essenciais entre a crítica – por aberta que seja – e a construção literária. Por exemplo, a crônica e a prosa poética avizinhadas nos textos lidos nos sites quando se trata de escritas mais experimentais.
Valor, mercadoria
No debate espontâneo que se pode intuir lendo, ouvindo, vendo os sítios, há outra coisa bastante apontada, que é a da valoração, quase sempre tomada como algo negativo, que deve ser evitado. Novamente o confronto com a tradição. E aqui a perspectiva histórica talvez ajude a compreender o meio de campo um tanto embolado. Porque, salvo engano, o problema não é a valoração, que enfim ajuda a distinguir a crítica de outras disciplinas. A questão é que a valoração tem função e tem linguagem. Valeria a pena então pensar sobre quais têm sido as funções e linguagens do valor, quando estão presentes. O que as constitui? A que elas servem? O que dão a ver, o que escondem?
No projeto da crítica moderna a distinção entre o que era “bom”, consequente do ponto de vista estético, tinha como base um sistema mais ou menos firme, um acordo implícito entre crítica, artistas e plateias, que dava conta de um processo formativo em andamento. Daí a ideia de um “Teatro em progresso” que titula uma das obras de Décio de Almeida Prado. A valoração estava então antes de tudo a serviço de uma pedagogia. Quando o crítico dizia que aquela atriz não estava interpretando bem porque naquela tragédia “x” a gestualidade, a vocalidade não parecem trágicas e sim dramáticas, é do valor aplicado a uma formação necessária para aquele momento que se está falando. Com a relativa diluição do sistema e suas coordenadas e o avanço nos processos de mercantilização da vida, a valoração transformou-se em outra coisa, em serviço, em placa indicativa sobre se o leitor da crítica deve comprar ou não o produto-espetáculo. Daí as simplificações. Os bonequinhos que dormem ou aplaudem nos cadernos de cultura, as estrelas de um a cinco, e por aí vai. A pergunta que interessa talvez seja: como resgatar o valor de volta, tira-lo da função venal, colocá-lo a favor do jogo de ideias?
Por que isso seria importante? Porque é preciso perceber que, no limite, do ponto de vista da mercadoria, não importa de que lado o crítico, a crítica está. O capital não tem interesse nessas veleidades. Você pode perfeitamente estar do lado que julga justo, revolucionário, desde que continue na boca dentada da mercantilização. Desde que o juízo seja categórico, reconhecível, comprável (e de preferência, que suscite polêmica), desde que esteja pronto para circular está tudo bem. Nesse sentido, tanto faz que se trate de um texto formalista ou de militância de alguma causa particular. A crítica revolucionária, de comportamento ou o que seja, constitui apenas departamento entre outros e é bom que exista. Este é o modelo dos jornais, a que em geral essa nova produção digital, não remunerada, em princípio independente portanto dos ditames do rendimento, parece querer evitar. Então há de fato razões para o combate.
No entanto, a leitura dos nossos textos, que desejam descartar esse esquema, aponta em muitos casos que talvez a criança esteja sendo jogada junto com a água da bacia. Porque é evidente que o rechaço à valoração, quando não dilui o argumento totalmente em impressões fugidias, está levando a reflexão algumas vezes para um relato em que a aderência ao objeto é quase certa. E aí talvez já não estejamos falando de crítica, mas de depoimentos empáticos através dos quais nos irmanamos às posições que interessam. Haveria, quem sabe, um déficit de um elemento importante para o núcleo da crítica: a negatividade. É óbvio que esta é apenas uma perspectiva entre outras, mas talvez seja relevante pensar nestes termos. A palavra “negatividade” não é chamada aqui, óbvio, para indicar o juízo, a expressão de gosto que costumamos normalizar através da adjetivação (bom, ruim, promissor, extraordinário, péssimo). Não é discriminação entre o que serve ou não serve, o que deve ou não ser visto. É o exercício básico de autonomia no discurso crítico. Negatividade como princípio produtivo, que tem como fim não anular e sim colocar as coisas em movimento. Sem nenhuma pretensão, nem de longe, de tocar com o repertório adorniano, a negatividade, vista ao menos como disposição para percebermos contradições e paradoxos a partir das obras, já seria uma maneira de resistência ao enquadramento, sem que percamos o espírito de militância, mas também sem que nos percamos na militância. Nos sítios em que esta percepção aparece de algum modo mais apontada é possível notar que o juízo de valor, quando mostrado não como universal e sim como fruto das circunstâncias, é assumido desde logo como provisório, capaz de rever-se dialeticamente no próprio movimento.
Por isso é importante verificar como o valor vem sendo aplicado na disputa entre narrativas. Não entre narrativas de campos políticos rigorosamente opostos, mas avizinhados, o que torna as coisas mais interessantes. O mesmo gosto pelas aproximações entre vida social e fatos estéticos do teatro é objeto de disputas. Para ficar em uma única questão importante, podemos citar os embates entre relatos que reivindicam para si a politicidade, hoje tomada por posições que vão além do discurso a respeito da luta de classes. Vão das tendências micropolíticas aos desdobramentos das lutas identitárias. Não à toa um espetáculo como Stabat mater, estreado em São Paulo, suscitou posições díspares. Mas não só quanto aos seus aspectos políticos e morais, o que era o esperado. As diferenças de abordagem mais marcantes em torno da montagem, a valoração, os pontos de vista a respeito da performatividade, não se dão no campo das publicações eletrônicas. Aparecem mais contrastadas se compararmos este campo aqui com o da grande imprensa, com sua sempre determinante orientação de “proteger” o leitor ou, senão isto, de adotar parâmetros de análise em que se pode encontrar, mais que rigor crítico, a defesa de projetos poéticos que nem sempre coincidem com a obra que está, enfim, em debate. Um bom exercício, nesse sentido, é ler as críticas de Paulo Bio Toledo no jornal Folha de S.Paulo e de Luciana Romagnolli no Horizonte da cena. Se observados os contrastes, renderiam uma tese inteira sobre uma sociologia da crítica. É quando, como disse o poeta Arnaldo Antunes, as coisas não têm paz. Mas esta é a melhor notícia possível. Tanto no texto do Paulo quanto no da Luciana há o debate de ideias. Há valoração no sentido que interessa. Já não há resquício daquele formalismo despreparado, em que a descrição da cena dá um salto direto e mortal na direção do valor, sequestrando o que mais interessa, a discussão, o pensamento. É o que chamo “olhos de aluguel”, aquela crítica que, não faz muito tempo, “via” através do texto o que nós, espectadores, poderíamos ver com os próprios olhos e avaliar com o próprios sentimentos.
Grupos, pulsões de vida
Macksen Luiz, Satisfeita, Yolanda?, Horizonte da Cena, Parágrafo cerrado, Revista Barril, Agora Crítica Teatral, Quarta parede, Tribuna do Cretino, Antro Positivo, Questão de Crítica, Teatrojornal. Sem querer idealizar, o movimento mais bonito, mais vivo e significativo que se pode perceber ao olhar essa paisagem de blogs, sites, revistas e suas gentes é o de uma pedagogia para a crítica, ou através dela, que não se ergue em torno do próprio umbigo. Parcerias, coletivos, agrupamentos estão sempre respondendo a uma necessidade fundamental que aqui só pode ser justificada pela vocação, se observarmos a insistência na tentativa de fazer a crítica sobreviver quase sem apoio. Por isso há sentido em pensar que nas relações, escutas e influências entre crítica e cena os termos se inverteram. Se até ao menos final dos anos 1970 a atividade esteve em geral assentada na avaliação, mas também no apontamento de caminhos para o teatro, agora é a cena quem mostra à crítica as veredas necessárias. Não apenas quanto à compreensão dos gestos técnicos e artísticos, como também políticos. Se este argumento estiver sustentado, podemos dizer que o atual espírito de coletivização do trabalho analítico experimentado na maior parte destes sítios virtuais segue orientado direta ou indiretamente por algo central na história do teatro brasileiro das últimas décadas: a experiência do teatro de grupo. Pois é naqueles termos que aqui também as coisas seguem. Pela política reinventada além do empreendedorismo neoliberal, são os grupos – artísticos e de críticos – que estão criando os espaços livres, os laboratórios mais importantes em que a arte do teatro pode ser levantada e debatida.
Mas os agrupamentos de críticos e críticas seriam apenas resposta ao instinto de sobrevivência? Provavelmente, não. Não é demais dizer, pelas pistas dadas neste conjunto de tantas narrativas: há algo ainda não suficientemente explicitado que talvez tenha a ver aproximadamente com um conceito de difícil aproximação, o de “estruturas de sentimentos”, de Raymond Williams. Algo que não pode ser reduzido nem à ideologia nem às clássicas relações que os marxistas fazem entre base e superestrutura para explicar ou desejar o deslocamento dos fenômenos, inclusive os de pensamento. Nas palavras de Maria Elisa Cevasco, são estruturas que dizem sobre “a articulação do emergente, do que escapa à força acachapante da hegemonia que trabalha sobre os processos de incorporação através dos quais transforma muitas de suas articulações para manter a centralidade de sua dominação” (CEVASCO, 2001, p. 158). Que essas pulsões comuns não sejam organizadas, deliberadas, não as desqualifica. Bem ao contrário, é condição para que se operem de fato, sob o risco de já nascerem como “programa” ou como ideologia. De qualquer modo parece tratar-se de uma intuição mais ou menos comum na direção de uma crítica que se ergue em uma ainda precária mas sem dúvida muito visível vitória do discurso vazado pelo coletivo sobre o discurso rigorosamente pessoal. “Coletivo” não se refere apenas aos coletivos críticos propriamente ditos e sim à própria ideia de vida coletiva como pauta subliminar. O compartilhamento dos fazeres, a relativa desierarquização das posições, a provocação do público, leitor ou artista para que venha não atrás, mas junto; a audição atenta às outras áreas do saber. Todas essas coisas nos dizem que há caminho vivo e resistente neste tempo difícil em que vivemos. O Brasil passa por um daqueles momentos angulares (nada de novo, mas sem dúvida é um momento angular), em que ressurge, límpido, algo que somos levados a esquecer: o poder avassalador de destruição do capital na disputa das consciências. A doença, o moralismo, a perseguição à arte e aos artistas, o sequestro de direitos do andar de baixo, o arrocho estrutural da economia sobre os já empobrecidos, o Estado tornado refém – toda a pauta conservadora tem o efeito de explicitar isto com traços firmes. É um momento em que se mostra que o capital, nessa sua face, consegue ser mais mortífero que a própria morte. Este é o lugar em que atualmente nós, críticos e críticas do teatro e no teatro, nos movimentamos. Onde vivemos contingências, mas também podemos retomar, mais que nunca, a função de testemunhas com dever de intervir. Ainda que não haja consenso quanto às atitudes críticas, felizmente em geral creio que este é um sentimento compartilhado entre estes coletivos. Como nos lembrava Deleuze (parafraseio), temos sempre a verdade que se merece de acordo com o sentido do que se diz e de acordo com os valores que se faz falar. Que as nossas falas tenham entradas no tempo e sejam justas. E vamos.
São Paulo, março de 2021. Até aqui, momento mais grave da pandemia e da necropolítica no Brasil.
.:. Leia mais sobre o dossiê Biocrítica que abriga a trajetória de 11 casas de crítica na internet, além de textos analíticos do panorama que perpassa oito estados.
Kil Abreu (Belém, 1968). Radicado em São Paulo há 25 anos. Jornalista, crítico, curador e pesquisador do teatro. Pós-graduado em artes pela Universidade de São Paulo. Foi diretor do Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Crítico do jornal Folha de S.Paulo e coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris de vários prêmios, como Shell e APCA. Fez a curadoria de diversos festivais, entre os quais os de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto e das atividades reflexivas da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, Crítica e Política das Artes. É curador no Centro Cultural São Paulo.
Referências:
ALMEIDA, Rita. Jornal GGN. A eletroconvulsoterapia em pauta: o cérebro como fetiche. Acessado em 10 de fevereiro de 2021.
CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e terra, 2001.
SMALL, Daniele Avila. O crítico ignorante – uma
negociação teórica meio complicada. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.
[1] SMALL, Daniele Avila. Tão pessoal, tão coletivo. Acessado em 8 de Janeiro de 2021.
[2] ROMAGNOLLI, Luciana. A vista alcança além. Acessado em 26 de Janeiro de 2021.
[3] ROLIM, Michele. Uma crítica fora do eixo. Acessado em 5 de Fevereiro de 2021.
[4] GUERRA, Daniel. ALBUQUERQUE, Igor. Papaya power. Acessado em 9 de Fevereiro de 2021.
[5] SANTOS, Valmir. Teatrojornal. Reverberar o gesto crítico. Acessado em 12 de Janeiro de 2021.
[6] LUIZ, Macksen. Quem está diante da tela?. Acessado em 19 de Janeiro de 2021.
[7] MOURA, Ivana. DINIZ, Pollyana. Ao futuro, atravessadas por memórias. Acessado em 15 de Janeiro de 2021.