BiocríticaRosa Primo conta...
Inicio esse texto no dia “D”, na hora “H”, como batizou o gênio da logística, ministro da saúde Eduardo Pazuello naquele 11 de janeiro. O enigma do “D”, contudo, não foi anunciado pelo ministro. À frente, o governador de São Paulo, João Doria, se antecipou e desfila hoje seus mocassins Ralph Lauren como quem encena o antigo mito grego no misterioso ultimato de Tebas: “Decifra-me ou te devoro”. O dia “D”, era o dia de Doria. As imagens da TV me atropelavam junto com as mensagens de amigos que, tomados de emoção no “H” da hora cênica, compunham o coro daqueles que desconheciam o distanciamento brechtiano. O distanciamento do teatro épico reserva uma certa frieza se comparado ao distanciamento como medida para reduzir o avanço da Covid-19. A vacina chegou! E junto com ela o imperativo da emergência: lutar pela vida ameaçada pelo vírus. Era domingo, dia 17 de janeiro, seis dias depois que Pazuello lançou o enigma.
Diante de tantas mortes, um pensamento crítico e reflexivo como Brecht desejava era por demais ressoar na dura realidade do jogo político em guerra eterna por popularidade. A vacinação é espetáculo. Coube ao general fazer cara feia no dia “D” da hora “H”, enquanto Doria encenava um clássico do teatro elisabetano, fazendo referência ao humanismo e cientificismo, mostrando-se como herói renascentista, em meio à comoção popular já considerada e contabilizada no “V” de vitória, e não de vacina, nas próximas eleições.
Não fosse por esse desfiladeiro desfigurado que vem ladeira abaixo se estrebuchando desde 2016 – quando o funcionamento de uma verdadeira máquina misógina não somente foi acionado por meio do poder violento do patriarcado contra as mulheres, na figura de Dilma Rousseff, mas contra a democracia como um todo – iniciar um texto talvez fosse mais brando. Contudo, não posso me furtar à sensação desafiadora que vem no vórtice entre falar e o que ainda é dizer. Mas deixemos de coisas e cuidemos da vida… Como diz Leminski: vamos nos apressar antes que tudo se torne mercadoria. É disso que trata: dizer. E dizer diariamente, de muitos modos. A minha ideia é propor um jogo com os modos de dizer das casas. Cada compartimento, uma infinidade de formas de ler o pensamento. Habitar espaços por vezes tão diversos, com tanta força política, dignidade e sutileza – ainda mais hoje, agora, diante do país devastado a todos os lados – é como presente de Natal ganhando corpo no movimento curioso de uma criança.
A vida, assim, perpassa toda a compreensão de lugar. Entendi: a casa sou eu. Assim, fui tomada por um estado de atenção no qual o sentido nele se desdobra e nele se perde, como um labirinto onde o próprio corpo traça os caminhos – quase como entrar num processo de improvisação: uma presença tão excessiva que me retira de mim. Esse estado, com suas devidas diferenças, dada a materialidade do contexto, vivenciei junto às casas. São espaços não restritos a formas determinadas sobre uma superfície de registro. Mas tecem processos de transformações, engendrados a algo que chamo de sensibilidade do tempo
Cada casa, e suas escrituras: a segurança de que é possível pensar um arejamento de leitura que ainda permita desequilibrar hierarquias e conjuntos para propor alguma irregularidade díspar. As casas são como linhas de fuga, tecendo existências singulares, investindo em deslocamentos, construindo tessituras de lugares e políticas de proximidade. São elas: Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Crítica e Estudos Teatrais; Teatrojornal – Leituras de Cena; Satisfeita, Yolanda?; Macksen Luiz; Antro Positivo; Horizonte da Cena; Tribuna do Cretino; Agora Crítica Teatral; Revista Barril; Quarta Parede; e Parágrafo Cerrado.
Recebi o convite para estar em cada uma dessas casas em dezembro de 2020. Exausta por carregar dias e dias desse tempo condensado de medo e isolamento, no qual meu lugar de descanso passou a ser lugar de trabalho – insistindo em mim questões do que entendia ser casa –, esse convite me chegou como um possível respiro, que tomava espaço na voz doce e carinhosa de Valmir Santos, idealizador e editor do site Teatrojornal. Tratava-se de um convite para celebrar os dez anos do site, que delicadamente expressava-se como “casa” nas palavras de Valmir e instigava um certo aconchego generoso de compartilhar esse momento abrindo-se a outras casas para, juntos, construírem modos de pensamentos desde si com outros.
A cada casa visitada tantas outras memórias de casas passavam por mim: a peleja em minha graduação em jornalismo na PUC de Campinas (SP), num período onde a falácia da imparcialidade pontuava a ética jornalística; meus desarranjos como crítica de dança na redação do jornal O Povo (CE); o trabalho como atriz no grupo de teatro Tempo, com Roberto Mallet (SP); minhas aulas no Teatro da Universidade Católica, o Tuca-PUC (SP), a fim de entender o corpo em cena a partir da voz; meus trabalhos cênicos nas críticas jornalísticas em diferentes estados do país; as aulas como professora da graduação em dança na Universidade Federal do Ceará…. O doutorado em Paris, onde de fato tive outra relação com o sentido de casa.
Em Paris, longe de minha compreensão de casa como lugar objetivo, tijolo por tijolo, casa passou a ser um conceito vazio. E, portanto, aberto – cujas forças imprimem vibrações, ressonâncias e cavam caminhos. Eu estava à deriva, gravitando entre uma miríade de questões, percorrendo diversos escombros do meu pensamento entregue às incertezas, algo que adensava ainda mais minha vulnerabilidade. A vida, assim, perpassa toda a compreensão de lugar. Entendi: a casa sou eu. Assim, fui tomada por um estado de atenção no qual o sentido nele se desdobra e nele se perde, como um labirinto onde o próprio corpo traça os caminhos – quase como entrar num processo de improvisação: uma presença tão excessiva que me retira de mim.
Esse estado, com suas devidas diferenças, dada a materialidade do contexto, vivenciei junto às casas. São espaços não restritos a formas determinadas sobre uma superfície de registro. Mas tecem processos de transformações, engendrados a algo que chamo de sensibilidade do tempo. Uma década de existência dessas casas – Teatrojornal; Satisfeita, Yolanda?; Macksen Luiz; e Antro Positivo; ou mesmo Questão de Crítica, que já passa de dez anos; ressaltando também Horizonte da Cena, que completa dez anos daqui a uns meses – nos coloca diante da percepção fina, uma atenção diferenciada, que o tempo intensifica e desdobra-se no corpo. Explico: a atenção em Henri Bergson não é utilitária, se caracteriza por um mergulho na duração. Portanto, para apreender a duração bergsoniana é preciso senti-la fluindo em nós. Trata-se do efeito que o escoamento do tempo produz sobre a sensibilidade. As casas duram e ainda duram em mim.
Tomada por essa sensação do tempo fazendo-se tempo em mim, qual não foi a minha alegria ao ver que aportara diante dos meus olhos Iracema, no da Quarta Parede. Em uma das críticas de dança de Henrique Rochelle: “Iracema de Rosa Primo, com direção de Clarice Lima…”. Com fotos minha, ali em cena… Ainda que sendo para o público infantil, Iracema é uma das tantas obras cuja temática percorre grande parte das casas: racismo, misoginia, homofobia, violências de classe. Dizer… E dizer diariamente de muitos modos. O momento político grita nos palcos, nas ruas, enredado num desenhar de gestos contidos e adequados às medidas de isolamento social. As máscaras entram em cena não apenas como figurino: compõem a história de nossos rostos. São desdobramentos poéticos de uma realidade por demais “in-carnada”, em sua crueldade – que nas palavras do filósofo e escritor francês Clément Rosset (1939-2018) vem de cruor, de onde deriva crudelis (cruel), assim como crudus (cru, não digerido, indigesto), designando a carne escorchada e ensanguentada, reduzida assim à sua única realidade, tão sangrenta quanto indigesta.
da Quarta Parede, grafado assim, é um site especificamente de crítica de dança, criado em 2013 como parte da pesquisa de doutorado de Henrique Rochelle em São Paulo. Contudo, seu quase homônimo, o Quarta Parede, do Recife, também é um site de crítica, produzido em 2015 como um portal informativo sobre teatro, compartilhando notícias, entrevistas, críticas, podcasts e videocasts relacionados ao fazer teatral em Pernambuco.
O apoio da política pública cultural do Estado de Pernambuco, a partir de 2017, intensificou no Quarta Parede pernambucano a produção de textos de caráter mais reflexivo, trazendo mais abertura em sua linha editorial, acolhendo profissionais, artistas, estudantes, pesquisadoras e demais públicos para o exercício da produção de pensamento sobre as artes da cena – algo que impulsionou a criação de uma revista digital. Atualmente no 16º número, a revista, que tem a designação de dossiê no site, investe numa pluralidade de vozes. Nessa última, a temática “urgências do agora” traz a realidade do ano incomum que tivemos em 2020. Salta aos olhos a consistência da casa diante da intensa produção de falas, mobilizando articulações coletivas, parcerias, debates e coberturas em festivais e mostras de artes da cena. Aqui de perto, num Ceará ainda árido de produções como essa, a cena em Pernambuco diz muito e fortemente acerca da potência de sua existência, instigando leitores a entrar na casa mesmo que seja apenas para ver, como mero visitante, a temática do último dossiê. Contudo, difícil sair de lá somente como um observador. Tornámo-nos leitor e habitante constante da casa, produzindo um deslocamento onde insiste a potência da cena restrita aos muros do sul e sudeste – descentralização geográfica que tem na casa justamente a força de romper a Quarta Parede e seguir tecendo conexões mais intensivas entre artistas e público, norte e sul do país.
Satisfeita, Yolanda? Mais uma casa em Pernambuco. Mas aqui algo muito singular: a força delicada dos poemas da potiguar Iracema Macedo, um modo de enfrentar furacões com vestidos claros, a leveza densa que escapa de toda dureza, um jeito manso de insurgir-se contra o caos. Sim: jornalismo-cultural-teatro-crítica. Ainda lembro da disciplina de teatro na graduação em jornalismo. Hoje não sei, mas esse encontro sempre foi potente. Não falo de todo jornalismo, mas esse vestido, investido, dentro da redação. As Yolandas, Ivana Moura e Pollyanna Diniz, me dizem desse lugar. Desde lá, a peleja de dar a ver o teatro de Pernambuco, processos de criação em deslocamento, potentes, ausentes, atrelados aos modos de produção de um nordeste brasileiro sempre envolto às desigualdades. Um Brasil largo demais para acolher. Mas elas acolhem. E acolhem cuidadosamente, sabiamente.
Elas acolhem as palavras, as imagens, as relações e seus movimentos. Enxergam e dão a ver a potência de dizer do teatro pernambucano. Abrem as janelas da casa, constroem sentidos. Realizam a tarefa curatorial, tanto no jornalismo cultural quanto na crítica, em sua artesania diária. Um desafio. Uma iniciativa independente, desviante das mesmas linhas que insistem no editorial do jornal cotidianamente; contudo, sem nunca dele abandonar. Estudantes de jornalismo, jovens estudantes, escutem as Yolandas: “O jornalismo e o teatro são as nossas formas de acessar o real, de reagir ao mundo; a nossa lente para compreender o que vivemos passa obrigatoriamente por esses dois campos, as nossas escolhas primeiras”.
Daí a força do dizer, do manter-se no que acredita, de ir para guerra com vestidos esvoaçantes. São dez anos de Yolandas. Dez anos de Jornalismo independente. I N D E P E N D E N T E – desses que não está na moda; está na potência do desejo. Os hiatos que surgem por questões financeiras impulsionam as insurgências. Assim, a mobilização, a força do coletivo, todo o registro histórico pulsante do episódio de censura à arte no Brasil na figura da atriz trans Renata Carvalho. Um dossiê. Material que das Yolandas confirmam: “memória é resistência”.
Na casa nada em excesso. A clareza dos espaços dá conta do necessário. Dizer deve ser audível, num tom acessível, de modo a ressoar no corpo. As coisas estão nos lugares. Percorremos corredores, labirintos, saídas e entradas. Todas as passagens nos levam facilmente aos lugares que queremos. Um ordenamento lá onde Dionísio intervém. Creio que esse modo de se mostrar vem sempre do que somos e construímos dos outros, com os outros. Das Yolandas, digam: “Ao longo desses 10 anos, nos reconhecemos em muitos parceiros. Mais uma vez, as relações e o afeto ajudaram a elaborar pontes fundamentais na troca de experiências, de conhecimento, na intenção de ampliar perspectivas sobre a arte. (…) Estamos aqui, falando de crítica, de teatro, do jornalismo. O Satisfeita, Yolanda? é o nosso xodó. Um projeto que é casa, que é liberdade, que é reinvenção, que é amor. Que possamos nos visitar muitas vezes na próxima década, trilhando caminhos juntos, renovando afetos, nos querendo bem”. É disso que trata: dizer. E dizer diariamente, de muitos modos.
Ainda fora dos muros do sul e sudeste, as casas Tribuna do Cretino e Revista Barril, respectivamente ancoradas no Pará e na Bahia, carregam em si um certo frescor e leveza – talvez por uma espécie de postura em lidar com a crítica sem o imperativo da sacralização, fruto de um processo histórico-social de uma rede de relações que consagra e mistifica a obra de arte e o artista. Nesse sentido, as casas parecem dispor espaços mais largos à experimentação, algo curioso, inteligente, instigante, mas ao mesmo tempo perigoso, sobretudo se houver insistência num caminhar leve em pisos que nem sempre sustentam propósitos nessa direção – uma questão de experimentação, mas também de prudência.
Essa postura aberta tanto afirma a força da singularidade que compõe a Tribuna do Cretino e a Revista Barril, quanto pode possibilitar brechas à dispersão ou dificuldade de compreensão. Daí o aparato das linhas, cores, traços na composição de suas entradas e saídas. Alguns momentos me perdi, sem saber se determinada imagem correspondia ao título acessível à sua descrição. Certamente, se perder, deambular sem destino, tem na figura do flâneur, em Baudelaire como Benjamim, um sujeito dotado de perspicaz habilidade no olhar. Contudo, não há gozo em perder-se na multidão de informação. Ao contrário da flânerie, a internet é um convite para nos encontrarmos e para ser encontrado, a serviço de uma gigantesca base de dados eficaz ao mundo dos negócios – aqueles dois lados das tecnologias que remetem à complexidade da realidade em que todos estamos enredados.
Tribuna do Cretino é projeto de extensão da Universidade Federal do Pará (UFPA) e sua produção, que envolve desde deslocamentos na arrumação da casa, oficina de produção textual, publicação de revista, engaja-se em recursos da universidade. A Revista Barril, por sua vez, teve apoio de editais das artes em 2017 e atualmente busca modos de tentar subsistir. Louvável a resistência da casa que, ao contrário de sucumbir aos devires do mercado, pluraliza-se na tentativa de encontrar linhas de fuga que a sustente em sua leveza e inteligência. A casa encara ditos e escritos não somente nas artes cênicas e tem movimentado diferentes linguagens artísticas contando com uma equipe numerosa e afinada.
Por falar em afinar, a afinidade entre as casas, guardadas as especificidades de cada uma, mantém uma espécie de motivação viva em seus modos de dizer. Em setembro de 2013, juntas em reunião no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, a ideia de intercâmbio começou a tomar forma de projeto, viabilizando em 2014, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, o Coletivo de Críticos, uma formação temporária de prática da crítica. Essas trocas afetivas, de olhares, ideias, referências e perspectivas críticas se concretizariam no ano seguinte com a criação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.
O primeiro encontro do DocumentaCena em 2016 – o ano do desfiladeiro desfigurado – trouxe para a casa Horizonte da Cena modificações em sua estrutura. De Minas Gerais, a casa surgiu como desejo de uma escrita jornalística em ressonância com a pesquisa acadêmica – um olhar que pudesse partir do jornalismo sem nele fincar-se. Um olhar que pudesse suspender as afirmações, as verdades, os caminhos preestabelecidos. Mesmo sem nunca ter tido subvenção, Horizonte da Cena sustenta-se no desejo potente de instigar, movimentar, impulsionar a cena artística que reverbera de Minas em extensão aos devires que o palco atualiza – fazendo desse lugar um espaço de acontecimento, de invenção. Daí os deslocamentos, as envergaduras, os cortes, o traço diagonal que contrapõem as linhas retas – figuradas no “H” de sua marca, sua certidão de nascimento. Assim como as Yolandas, os Horizontes veem-se em infinito, sem nunca negar a finitude que somos todos nós.
Nessa mesma direção, a casa Agora Crítica Teatral, do Rio Grande Sul, possui um histórico em que os deslocamentos e cortes pontuam seus modos de dizer. Aqui, no entanto, a crítica no veículo impresso teve importância determinante para alguns artistas. No Ceará, essa realidade inexiste. O lugar da crítica na cena sempre me pareceu um caminho um tanto tortuoso em Fortaleza; e as relações pessoais no campo das artes ainda carecem de entendimento do lugar da crítica a instigar as proposições. Chamam a atenção as parcerias estabelecidas com o Agora Crítica. Ao longo de sua trajetória o Goethe-Institut, a Aliança Francesa e o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS mobilizaram junto à casa ações importantes na cena gaúcha: festivais, experiências internacionais, mostras… A dança também compõe os espaços do Agora Crítica. Uma rede de colaborados é tecida na casa. O jornalista Carlinhos Santos, mestre em dança e educação pela Universidade de Caxias do Sul (UCS-RS), fez parte dessa colaboração e contribuiu na produção do pensamento em dança, em seus processos de criação e modos de dizer.
Em Mato Grosso, a casa Parágrafo Cerrado iniciou suas ações na esteira do projeto Cena em Questão, do Sesc, em 2016. Os participantes do projeto, grande parte profissionais do teatro na cidade, viram ali a possibilidade de exercitar o pensamento desdobrando-se da cena. Trata-se de uma casa colaborativa. Os escritos se experimentam sem a experiência das redações dos jornais, mas alcançam os artistas da cena em seus múltiplos olhares. A pluralidade de vozes ressoa na composição da casa. As imagens pululam entre as letras, num incessante movimento de se saber como entradas e saídas. Curioso que esse barulho intenso consiga a clareza de seus ditos. Certamente, o excesso de movimento pode por vezes dificultar algum entendimento lógico de percurso. Contudo, a casa desde já integra em si esse balançar, que vai aos poucos contextualizando os espaços e deslizando no ritmo de suas proposições. Tudo parece uma conversa. Longa conversa de muitos. Mas todos se escutam. O teatro é para a vida!
Chegamos no sudeste – tirante a capital mineira mencionada há pouco. As casas são rotas turbilhonarias. Há muito o que fazer – o que dizer. As dificuldades são gigantescas. Contudo, a força é inesgotável – e em coletivo, mais ousados em romper padrões, seja de pensamento ou modo de escrever. A produção transversal na região aponta não apenas para os artistas locais, mas como são seus trânsitos, como se compõem seus relatos, suas narrativas, seus discursos. Há sempre uma escuta no dizer da cena-sudeste, demandando uma historiografia crítica e reflexiva. Daí uma escrita que se articula a partir de uma teia de relações complexas; que exercita o pensar e dá o que pensar. O movimento ganha impulso em encontros imprevisíveis, embora cada detalhe seja preparado com meticulosidade. A cena nas casas Questão de Crítica, Macksen Luiz, Antro Positivo e Teatrojornal é campo vasto de conhecimento e produção de sentido.
Macksen exerceu a crítica em jornal por quase cinco décadas. Um conhecimento vivo, bem dizer, da produção cênica carioca. No formato de blog, a casa é um cantinho, um jeito de ser. Os textos: leves, quando necessário, e profundos, sempre em movimento, sempre para pensar; mas não instalados no pensar. Uma escrita que exige sair de onde estamos, criando espaço desde a cena – um jornalismo que conecta dedos e cabeça.
Nesse movimento, em coletivo, uma região de relações expandidas. Aberta a atravessamentos, a casa Antro Positivo parece dilatar-se para dar conta às urgências imediatas, conclamando artistas e amigos a comporem campanhas públicas de mobilização. Estando nela, alguns, outros e muitos saem transformados, tanto quanto as relações de uns com outros e de cada um consigo mesmo. Além de instigar a criação de acontecimentos na cena paulista, mobilizando artistas e público, a casa e suas proposições estimulam a discussão e problematização em torno de diversas questões que permeiam a cena contemporânea, criando pontes entre cidades e a produção de outras regiões do Brasil e exterior. Essa articulação possibilita a criação de um pensamento e a invenção de espaços diferenciais, dando ensejo à construção de novos conceitos, de “novas caixas de ferramentas”, a serem utilizadas na maquinação de atos de resistências.
Questão de Crítica. Cheguei, me aproximei um pouco mais. Aquele gesto de curiosidade e receio. Se tem algo que me deixa absorta em meus pensamentos é essa escuta do momento diante da cena. Como a cena vai sustentar o encontro público-e-platéia-pós-Covid-19? Um mundo de coisas. E Questão de Crítica traz logo ao entrar na casa esse mundo para dentro dela. Mais ainda, um texto bomba, desses que revira o pensamento, colocando o corpo ao avesso e, depois, se desdobrando dele. Um “atentado no nosso inconsciente habitacional” – para usar termos do próprio texto. A leitura me fez lembrar uma amiga que passou dias comendo a mesma fruta. Lá pelas tantas, ela e a fruta mantinham diálogos intermináveis. Viraram superamigas. Nada de doidice não!!! Devir banana, por exemplo, compreende um entendimento da vida no corpo. Talvez não fôssemos tão produtores de lixos, devastadores de vidas, se pelo menos indagássemos o que pode o corpo? – uma filosofia prática, tal qual Spinoza propunha.
Para minha surpresa, o texto-atentado tem tradução de Gyl Giffony, meu brother do sertão cearense, artista da Cia. Inquieta e que compõe a lista daqueles que deixam o nordeste para doutorar-se em artes da cena. Doutor da cena. Precisamos mesmo curar a cena!!!! Trazê-la de volta aos palcos. O banzo anda me atropelando esses dias. Questão de Crítica, portanto, chegou assim… Atentando meu banzo. Essas casas fustigam a alma! Como em outras casas, o movimento é pulsante: encontros, prêmios, parcerias nacionais e internacionais, efervescência. Contudo, Questão de Crítica mobiliza uma atenção diferenciada, uma espécie de atitude, um estar à espreita, um pensar à espreita. Ao entrar na casa, uma série de imagens juntas, espalhadas, nos coloca nesse estado de atenção, que aos poucos vamos encaixando, descobrindo, mobilizando e nos pondo em questão.
Pois bem, juntas, a partir de suas diferenças, as casas fustigam, inquietam, promovem locais de resistência. Contudo, o que as mantém firme? Como acionam esse lugar tão potente diante de toda essa precariedade e instabilidade da vida? O que move tudo isso? A meu ver, o afeto. E aqui, basta entrar para sentir: Teatrojornal. Tudo junto, lado a lado. Não só em sua certidão de nascimento, T+E+A+T+R+O+J+O+R+N+A+L, mas na própria visibilidade da casa. Ao entrar, as imagens enfatizam essa dimensão. O olhar, o sorriso, as mãos. Os gestos são decisivos. Transgredir requer uma interdição. Interdizer. Dizer no meio, a partir de si para fora. Ter de dizer. Uma gestualidade que afirma a vida. Biocrítica. São 10 anos de Teatrojornal. Uma geração inteira – o número cuja história aponta o surgimento de todas as coisas e para as quais elas devem retornar. O tempo é interior de tudo. Força de efetivação, só existindo porque faz existir. O amor dos resistentes. Mais propriamente, um convite à afirmação da vida. Um sujeito de gestos calmos.
Fica dito: “Insistiremos sempre pelo afeto como qualidade maior de insurgência. E isso significa seguirmos juntos. Duvidosos de nós mesmos, abertos ao improvável. Porém, certos de haver no impossível o melhor estímulo para mudarmos tudo”. Palavras de Ruy Filho e Pat Cividanes, idealizadores e diretores da Antro Positivo.
.:. Leia mais sobre o dossiê Biocrítica que abriga a trajetória de 11 casas de crítica na internet, além de textos analíticos do panorama que perpassa oito estados.
Rosa Primo (Fortaleza, 1972) é bailarina. Professora dos cursos de licenciatura e bacharelado em dança da Universidade Federal do Ceará. Doutora, com estágio em dança na Universidade Paris 8 (França). Líder do Grupo de Pesquisa Concepções Filosóficas do Corpo em Cena (CNPq). Membro da Association des Chercheurs en Danse. Foi coordenadora da dança da Secretaria de Cultura de Fortaleza. Autora do livro A dança possível: as ligações do corpo numa cena (Expressão Gráfica e Editora, 2006). Desde 2014 desenvolve pesquisa em trabalhos solos com colaboração de outros artistas. Em 2018 estreou dois solos: Iracema (infantil) e Tudo passa sobre a terra – temática com foco no feminicídio e etnocídio dos povos indígenas –, ambos com direção de Clarice Lima.