Crítica
As três mulheres de IntimIDADES escalam distancias e proximidades em suas gerações. Duas delas, Tânia Barbosa, de 52 anos, e Iara Colina, 42 anos, elegeram a profissão de atriz, por mais instável que seja exercê-la na sociedade brasileira, sobretudo quando se vive no interior do país, no caso, Ilhéus. Já Hilsa Rodrigues Pereira dos Santos, no candomblé Mãe Ilza Mukalê, de 87 anos, 45 deles à frente do Terreiro Matamba Tombency Neto, experimentou o teatro amador junto a um artista expoente do teatro negro, o ator e diretor Mário Gusmão (1928-1996), quando ele viveu na cidade do litoral sul baiano nos anos 1980.
Apesar dos pontos conectivos nas biografias – como as sensações do primeiro beijo – e da disposição temporal da narrativa estruturada em blocos (memória, corpo e sonho), os marcos artísticos de Barbosa e Colina ficam mais delineados, porque profissionais do teatro, ao passo que os da ialorixá Mukalê espraiam-se na ancestralidade nata que enseja, dona de voz convertida em portal a cada lembrança compartilhada
Essa radiografia não consta diretamente da dramaturgia coletiva concebida para a chamada performance audiovisual do Teatro Popular de Ilhéus, com encenação de Romualdo Lisboa. Suas protagonistas constituem documentos vivos de como encontraram as artes cênicas em seus caminhos. De como foram impactadas, enquanto cidadãs, pela disseminação e virulência da Covid-19. E de como seus imaginários, ainda que nesse contexto, permitem abrir outras janelas no presente virado de ponta-cabeça.
Apesar dos pontos conectivos nas biografias – como as sensações do primeiro beijo – e da disposição temporal da narrativa estruturada em blocos (memória, corpo e sonho), os marcos artísticos de Barbosa e Colina ficam mais delineados, porque profissionais do teatro, ao passo que os da ialorixá Mukalê espraiam-se na ancestralidade nata que enseja, dona de voz convertida em portal a cada lembrança compartilhada.
Dilemas existenciais como o confinamento dentro de casa nos últimos meses e a confrontação cotidiana com o espelho e com aquilo que as pessoas pensam/julgam do que veem através de corpos alheios, segundo declaram as atrizes imersas em seus processos de maturidade, ganham ares trágicos vindos da velha sábia que esbanja espírito de juventude. Isso faz do texto um rio de composições desviantes que ao cabo se encontram e se multiplicam de forma surpreendente.
Um trauma na coluna, o direito a não depilar as axilas e quão cruel é a gravidade para com os seios são exemplos de como as histórias têm lugar em seus corpos, território do sagrado e do suor para que a inspiração desague. A valência do feminismo transparece no trio com graça e garra na maneira como se posiciona ou confessa incertezas, donde ideias e atitudes ganham sentido político.
Formalmente, a edição em vídeo do trabalho gravado, estando cada uma das narradoras em suas moradas, guarda certa atmosfera amadora, espontaneísmo que, em se tratando de Barbosa e Colina, é construído com patente preparo técnico, cabendo a Mukalê, de novo, o contraponto da não representação, a plenitude da não artista em ser-estar.
IntimIDADES usufrui desse equilíbrio de forças que Lisboa, um homem na encenação, soube manter-se estrategicamente recuado, condizendo com o caráter afetivo do projeto. As transições musicais foram criadas por Eloah Monteiro, que estimulou as atrizes ao canto, desbravou suavidades e fez de cada passagens uma estação introspectiva também para quem está fruindo do lado de cá da tela.
No ano passado a pandemia levou o Teatro Popular de Ilhéus a transpor para o modo virtual o principal espetáculo de seu repertório, Teodorico Majestade – as últimas horas de um prefeito (2006), alavancado pelas manifestações reais que culminaram, no ano seguinte, no processo de cassação do chefe do executivo municipal. Em transmissões ao vivo, seus criadores se mostraram comediantes à altura do desafio e tiraram de letra, por assim dizer.
Dessa vez, o experimento intimista emenda vida e arte em procedimento peculiar. Parece ter exigido atenção redobrada para prover um registro que corresponda ao foco das câmeras de captação. Bastante diverso das dimensões épicas do espetáculo 1789 – Ópera afro rock (2013), acerca da revolta de escravizados do Engenho de Santana de Ilhéus, exemplo de resistência ativa contra as condições de “trabalho”. Ali, com elenco numeroso, incluindo Barbosa e participação especial de Mãe Ilza Mukalê, o grupo que hoje conta um quarto de século de atividade esmerilhava na ação física e nos movimentos corais. As apresentações ocorriam sob lona de circo, também chamada de tenda. Nota-se que a necessidade de recolhimento trouxe outros nexos a esses artistas, como aos pares pelo Brasil e pelo mundo.
Serviço:
Sábado, às 20h. Até 29 de maio.
Ingresso gratuito ou colaborativo, retirar em sympla.com/teatropopulardeilheus
12 anos
Tradução em Libras
Após cada apresentação acontece bate-papo entre criadores e público
Equipe de criação:
Com: Tânia Barbosa, Iara Colina e Mãe Ilza Mukalê
Dramaturgia: coletiva
Encenação: Romualdo Lisboa
Música: Eloah Monteiro
Letras: Romualdo Lisboa
Arranjos: Pablo Lisboa
O projeto maturado desde 2020 teve inicialmente a direção de Luís Alonso-Aude e participação de Bárbara Lima
Realização: Teatro Popular de Ilhéus
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.