Menu

Crítica

Veredas de dentro

11.9.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Alexandre Rezende

Em Sonhos de uma noite com o Galpão, o grupo de atores ensaia a volta ao teatro presencial em pleno ambiente virtual. É seu quinto trabalho de imersão na internet em doze de dezoito meses de pandemia. Dessa vez, o afastamento dos tablados surge atenuado em duas frentes, quem sabe um díptico. Há a obra em si, atuada e transmitida em tempo real a partir das casas de seis integrantes ou da própria sede em Belo Horizonte. E sua extensão, o compartilhamento exclusivo, com a respectiva audiência, do registro de seis cenas montadas, apresentadas e filmadas especialmente para quem viu o que sonhou virar enredo para as artes híbridas da cena. São duas a três pessoas presentes por vez à sala multiuso que leva o nome da atriz Wanda Fernandes (1954-1994), no centro cultural Galpão Cine Horto, na mesma rua.

Alguns conteúdos transbordam de uma plataforma a outra. O movimento combinatório da criação editada ao vivo e do acesso posterior ao material que lembra um drama documentário na linguagem cinematográfica – e nele são mantidos o elenco e a parceria com o diretor e dramaturgo convidado Pedro Brício (RJ) – possibilita experienciar o que há de teatralidade nos recursos audiovisuais e o que reside destes nas cenas curtas em que artista e suas fontes trocam impressões na sequência das narrativas encenadas – sonhos reais e recentes tornados ficção. Como um terceiro olho entre a obra e o dono de cada mente que garimpou tais imagens e fantasias durante o sono, embaralhamos sentidos de presença em transição para um desejado cenário pós-pandemia.

Em sua virtualidade expandida, ‘Sonhos de uma noite com o Galpão’ processa e projeta a instância física, táctil, a matéria de tudo que o grupo viveu sem pestanejar desde os estertores da ditadura civil-militar até a anomalia em curso

Contemplando situações, espaços e tempos em diálogo com estados de luto e de devaneio, o trabalho passa pela fabulação de uma criança com um monstro saído do mar; pelo homem que enfrenta a insônia e a sua consciência; pela mulher de cujas unhas brotam plantas ou de outra de cujos braços despontam a flor de cacto, numa bela conexão com a música O patrão nosso de cada dia, dos Secos e Molhados; pela saga do indivíduo que está no restaurante, pede um frango ao garçom e a partir daí tudo conspira para que não coma a iguaria; e pela turma de amigos reunidos numa festa de aniversário em que impera a cor azul nas luzes piscantes e cada indivíduo conta alguma história, até quem não sonha dá seu recado, em meio aos afetos.

Esse último entrecho expõe a capacidade da equipe de estabelecer ambiências, texturas, volumes. Atores performam mais desenvoltos diante das câmeras dos celulares, confirmando como as intuições foram refinadas pelo convívio distanciado, cada um em seu quadradinho, em seu canto, vigilantes na escuta dos pares, nas oscilações da internet. O velho “caco” teatral, o improviso, é atualizado em outras frequências, em meio ao humor e à reflexão.

Rememoremos a sequência final de Nós, obra de 2016 em que atores e público faziam do espaço cênico a pista de dança com trilha musical e globo espelhado jorrando luzes. Por alguns minutos, a vida parecia uma festa depois que parte das pessoas tomou a sopa de legumes preparada pelo elenco enquanto levavam o espetáculo que dava um nó nas relações costuradas para dentro e para fora. O Galpão revolvia entranhas na parceria com Marcio Abreu. A montagem é evocada após assistir a Sonhos de uma noite com o Galpão, face a referida festa remota e uma das janelas do trabalho que se abre para uma feira de rua em que atores intervêm com plaquinha e cadeira para ouvir-colher relatos alheios, por quem certa vez despertou com sensações vívidas e as guardou, sejam premonitórias, terríveis ou gozozas.

Dentre os cinco trabalhos gestados desde setembro do ano passado, esse é o que mais equilibra o processo de adaptação e assimilação do virtual pelos artistas e, por outro lado, escava a própria memória. A mão dupla estimula o público, do lado de cá da tela, a sentir-se como espectador de apresentação ao vivo, feito algumas das que acompanhou em salas ou praças em algum momento dos 38 anos do grupo.

Alexandre Rezende Inês Peixoto em uma das cenas criadas a partir de relatos colhidos em ‘Sonhos de uma noite com o Galpão’, dramaturgia e direção de Pedro Brício

O trocadilho no título com a comédia de Shakespeare é coerente pela liberdade de Brício em sobrepor onirismo, ficção e mitologias, inclusive com licença para inserir dados da conturbada realidade brasileira, em que crise sanitária e crise política encarnam o próprio pesadelo dos dias.

Se em Sonho de uma noite de verão fadas, elfos e um travesso duende permeiam as peripécias de dois casais submetidos a inúmeros obstáculos para amar-se, no roteiro em pauta as ambições não deixam de ser quiméricas e surpreendentemente sensoriais no campo de invenção. De novo, a capacidade de envolvimento com a transmissão na web é próxima daquela da sessão de teatro como a conhecíamos até março de 2020, preservada a natureza de mediação de cada formato de encontro.

Outra ponte shakespeariana é o mecanismo do teatro dentro do teatro. Veja-se o exemplo de Eduardo Moreira em dois momentos correlacionados. Na condição do sujeito que assiste ao próprio velório e constata as cadeiras vazias, pois ninguém foi ao seu ato final. E do ator na coxia do Globe Theatre, réplica da casa elizabetana na Londres do século 16, navegando entre Macbeth e Romeu e Julieta, desesperado em saber: “Quando a gente vai voltar?”.

Compasso de espera também cadenciado em atuações de Antonio Edson, Lydia Del Picchia, Simone Ordones, Teuda Bara e Inês Peixoto. Cirandeiros e cirandeiras separados no espaço e, contudo, conjugados na temporalidade em procederes que até há pouco não imaginavam. Instantes repousados no inusitado de Edson a plantar bananeira sobre a cama, num quarto, tudo a ver com o mundo virado de ponta-cabeça. Na dança de Peixoto, a girar com paletó no cabide representando o pai morto de uma sonhadora. Na transição de Ordones pelo que parece ser um túnel, tal Alice caindo no buraco e descortinando mundos inimagináveis. Em suma, as atuações deixam fluir transcodificações cênicas para a tela, alçam tridimensionalidades outras.

No segmento das cenas gravadas na presença de sonhadores, disponibilizado por 72 horas, é possível reconectar a identidade poética de cada intérprete, referendada por montagens anteriores e adaptadas às diretrizes da quarentena. A filmagem convencional – vemos o espaço cênico, a plateia solitária, os refletores – instaura empatia de largada que pode ser vinculada ao sentimento da saudade. São monólogos captados em tomadas mais abertas da câmera, sob aparatos mínimos, na inteireza da vulnerabilidade de cada artista e da grandiosidade do ato vivo, a despeito de arquivo, reatando os sentidos através de uma dramaturgia pertinente à atividade cerebral e seus episódios de movimentos oculares.

A imagem da suspensão do real é dada pela plasticidade cênica modular para a ação de cada atuante. No centro da área demarcada por um tapete de tons celestiais, paira a cama de casal em madeira, desnuda, modelo antigo, sem colchão. Quando atores pisam ou deitam ali, o ranger do estrado de mola traduz a instabilidade em diferentes planos da existência.

É nessa arena que Teuda Bara, por exemplo, desempenha seu escangalhar típico sem deixar de mostrar uma pontinha de melancolia pelas condicionantes em jogo, mesmo trazendo para a roda, seguindo o sonho emprestado, vivências que teve com o diretor José Celso Martinez Corrêa, outro ser vetor de alegria.

Em contexto mais intimista, pululam sonhos como o da sereia que avista um falcão viajando na cacunda de um avestruz; do rapaz que tenta se safar do lamaçal de Brumadinho por meio de sua prancha; ou do homem que se viu transformado em elefante perdido numa savana, e depois em rei Lear, o protagonista de Shakespeare que se afasta do trono para dividir o reino entre as filhas. A certa altura, Antonio Edson diz, antes de representar: “Eu espero que a minha contribuição não fique abaixo da qualidade dos sonhos”. Ao que uma espectadora-sonhadora pontua, em outro momento: “Quando o ambiente é simples a imaginação da gente tem espaço”.

Alexandre Rezende Lydia Del Picchia dialoga com sonhadoras que inspiraram a criação apresentada exclusivamente para as espectadoras; quem assiste à transmissão em tempo real recebe link para acessar as filmagens posteriormente, em até 72 horas

No livro O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho (Companhia das Letras, 2019), o neurocientista Sidarta Ribeiro mapeia essa “arte quase completamente esquecida no mundo contemporâneo”, essa “colcha de retalhos emocionais”, essa “algaravia simbólica”, essa expedição pelas “veredas de dentro”. Ele associa sonho ao “Lar de mim mesmo”, à “Casa boa de morar, feita de experiências luminosas, abrigo de toda a família pelo devir que nos permita seguir”.

Com pés no ensaísmo e no romance, Ribeiro vaticina: “As próximas décadas trarão uma compreensão integrada do que o sonho pode voltar ou vir a ser: sofisticada engrenagem psicobiológica capaz de promover adaptação comportamental contínua, recrutada na medida da necessidade; quando bem calibrado, poderoso computador de possibilidades, oráculo da soma de (quase) acasos que pode estimar para onde aponta a bússola do destino – não o destino como futuro inescapável e determinado, mas o lugar ou estado para onde tudo conflui. Destino é para onde sopra o vento, para onde flui o rio, por onde caminham desejos e circunstâncias. Nossa maravilhosa e multifacetada máquina cerebral de extração de probabilidades, construída por genes e memes no transcorrer da evolução da espécie, se alimenta das preocupações e emoções conscientes, mas também da quase insaciável capacidade que temos de nos interessarmos pelo mundo. O sonho exprime o destino, mas não garante a chegada, como alguém que viaja com rumo certo mas pode parar antes, acelerar ou seguir rotas alternativas. Destino é para onde estamos indo, mas não necessariamente para onde vamos”.

Em sua virtualidade expandida, Sonhos de uma noite com o Galpão processa e projeta a instância física, táctil, a matéria de tudo que o grupo viveu sem pestanejar desde os estertores da ditadura civil-militar até a anomalia em curso.

.:. As 12 pessoas do elenco do Galpão revezaram-se nos seguintes trabalhos nos últimos meses: o filme ensaio de média-metragem Éramos em bando (2020), dirigido por Marcelo Castro, Pablo Lobato, Vinícius de Souza; o experimento virtual Histórias de confinamento (2020), por Eduardo Moreira, Inês Peixoto e Thiago Sacramento, que adota mesmo procedimento de colher relatos do público para subsidiar a dramaturgia – aliás, foi assim com as cartas recebidas para o espetáculo Pequenos milagres (2007), direção de Paulo de Moraes, da Armazém Companhia de Teatro (RJ) –; da também criação experimental Como os ciganos fazem as malas (2021), por Yara de Novaes, Tiago Macedo, Paulo André e Barulhista, sob dramaturgia de Newton Moreno; e a peça radiofônica Quer ver escuta (2021), por Marcelo Castro e Vinícius de Souza. Sonhos… e Como os ciganos… fazem parte do projeto Dramaturgias – Cinco Passagens para Agora, que prevê ainda parcerias com Marcio Abreu, Clarissa Campolina e Silvia Gomez, sempre em dobradinha com atores do grupo – e em outubro Inês Peixoto e Eduardo Moreira lançam um curta-metragem.

Serviço:

Sonhos de uma noite com o Galpão

Sábado e domingo, 20h. De 21 de agosto a 12 de setembro de 2021

Ingressos gratuitos em https://www.sympla.com.br/grupogalpao

10 anos

70 minutos

Site do Grupo Galpão

Alexandre Rezende A cama cenográfica é elemento comum nos episódios gravados sob a tonalidade azul na iluminação de Rodrigo Marçal e na direção de arte de André Cortez

Ficha técnica:

Dramaturgia e direção: Pedro Brício

Com: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara

Sonhadores: Adyr Assumpção, Amanda Palma, Beatriz Radicchi, Benjamin Brício, Bruna Mitrano, Cássia Lima, Clarissa Tomasi, Elisa A. Werdet e Ignacio Aldunate, Evandro Costa, Fernando Chagas, Gil Milagres, Gil Amancio e Dani Adil, Inês Peixoto, João Santos, Juliana Martins, Kayete, Kdu dos Anjos, Letícia Castilho, Lica Del Picchia, Marina Pêgo, Nil César, Pedro Brício, Raquel Carneiro, Raysner de Paula, Sávio Leite, Suely Machado, Tadeu Fernandes, Tati Mateus, Théda Mara, Titina Medeiros, Valéria Alvim, Vanessa Machado e Vera Casanova (O Grupo Galpão agradece a estes e a outros sonhadores, que abriram sua intimidade para compartilhar seus sonhos. A peça foi inspirada nesses relatos)

Direção de arte: André Cortez

Trilha sonora: Domenico Lancelotti

Iluminação: Rodrigo Marçal

Assistência de dramaturgia e direção: Ana Abbott

Edição de vídeo e assistência de direção: Luli Carvalho

Assistência de direção de arte: Paulo André

Impressões corporais para vídeo: Dani Lima

Técnico de transmissão: Thiago Sacramento

Técnico de operação de áudio: Rodrigo Marçal

Contrarregra: Admar Fernandes e João Santos

Comunicação: Fernando Dornas e Letícia Leiva

Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário – Personal Press

Identidade visual: Carolina Moraes Santana e Délio Faleiro

Imagens: Alexandre Baxter, Bruno Magalhães e Luiz Felipe Fernandes

Captação áudio externo: Vinícius Alves

Edição de imagens: Alexandre Baxter, Luiz Felipe Fernandes e Luli Carvalho

Animações de vídeo: Matheus Gepeto

Fotos de divulgação: Alexandre Rezende

Assistência de produção: Lica Del Picchia

Produção executiva: Beatriz Radicchi

Direção de produção: Gilma Oliveira

Produção: Grupo Galpão

Grupo Galpão:

Atores –

Antonio Edson, Arildo de Barros, Beto Franco, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara

Equipe –

Gerente executivo: Fernando Lara

Coordenadora de produção: Gilma Oliveira

Coordenador de comunicação: Fernando Dornas

Coordenadora Administrativa: Wanilda D’Artagnan

Coordenadora de planejamento: Alba Martinez

Coordenador técnico: Rodrigo Marçal

Produtora executiva: Beatriz Radicchi

Comunicação online: Letícia Leiva

Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário – Personal Press

Assistência de produção: Lica Del Picchia

Assistente financeiro: Cláudio Augusto

Serviços gerais: Danielle Rodrigues

Gestor financeiro de projetos: Artmanagers

Lei Federal de Incentivo à Cultura | Patrocínio máster: Instituto Cultural Vale | Patrocínio: AngloGold Ashanti, banco BV | Realização: Secretaria Especial de Cultura, Ministério do Turismo, Governo Federal

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

Relacionados