Crítica
Matéria escura do Cena 11. Cena expandida. Já não mais estritamente presencial, necessariamente remota, mas presente enquanto campo aberto de forças, imantando visões, sensações, movimentos, internos e aparentes ou externos aos corpos, mas sistematicamente incomensuráveis e singulares. Pingos, pios, amplificados e estendidos como gritos, como estridências crescentes, como deformações ritmadas, dançantes, mas na contradança surpreendente, sempre, de não ser dança, de virar verso e ser ostensão de vida.
O Cena 11 não quer mais só dançar, morrer, acabar. Nunca quis. Mas, agora, a extinção é tema e é luta corrente. Ainda estão lá as quedas, gramática de um dispositivo dominante, mas elas aparecem dispersas, desorganizadas na mixagem de línguas e sintaxes. Na montagem vídeo-gráfica com pluralidade de sentidos, mesclando as fusões fílmicas com as palavras em liberdade na prosódia incessantemente variante da tela, o Cena 11 se reinventa de todos os modos e, particularmente, sinaliza uma via pós-pandêmica de expressão cênica, simultaneamente midiática e presencial.
O escuro não engole o mundo. Atravessa o deserto no sol a pino e inunda o mar de verdor anímico. O branco e preto, salpicado de rubro e rosa, organiza a superfície da imagem. O ritmo que pinga agudo a perfura e adensa. A vida importuna, não acaba mais. Extinguir parece impossível, pois tudo se move afinal, nada cessa enfim
Agora, nessa hora de horror e de suspensão de esperanças, cabe sem dúvida dançar, e, como nunca, o Grupo Cena 11 dança, mas o faz tanto em coreografias explícitas como nessa deriva imagética e poética, combinando pontuações visuais e palavras ao vento. Nessa configuração espetacular e performativa, de uma cena híbrida de imagens gravadas e imediatamente captadas, as atuantes já não propriamente caem, mas despencam, como todo o projeto do grupo, que se lança à frente, para além da extinção. O Cena 11 se atira ao futuro, arriscando reconstituir-se como presença virtual, ao mesmo tempo em que resgata sua origem, de experimentação radical e aventura.
Os diálogos se abrem em várias coordenadas. Há o resgate de uma história própria, a sintonia com o tempo de agora e suas escuridões, a exploração das regiões fílmicas e pictóricas, as escritas instáveis e o desvendamento de todo o processo em camadas de reverberações e repetições trançadas. Cada uma destas vertentes em que a linguagem fluída, plástica e musical, torrente de tonalidades pulsantes passeia, sugere conexões a referentes outros, da dança, do teatro, do cinema e das artes vivas. O Cena 11 se expande e enfrenta órbitas insuspeitas, impossibilidades dissipadas, matérias ostensivas da contemporaneidade que alcança visitar.
Corpo invisível que aparece em outros corpos e instaura uma materialidade no limiar da visibilidade, coreografia de transbordamentos, essa “matéria escura” captada por sensores multidirecionais projeta uma sintaxe de assimetrias. Em “exílio ativo” a companhia revê processos e reinventa procedimentos, abre os arquivos e descobre novas memórias. “Caos caption” sintetiza o modo operador, que soma vozes e sons maquinais às inscrições legíveis, legendas lendárias que soam como urgências incontornáveis: a aparência do fim e o fim tornado obra, epílogo de cena, filme sobre o “futuro fantasma”.
Todo um ecossistema de presenças transitórias, físicas ou digitais, traçando entremeios de tempos cruzados. O escuro não engole o mundo. Atravessa o deserto no sol a pino e inunda o mar de verdor anímico. O branco e preto, salpicado de rubro e rosa, organiza a superfície da imagem. O ritmo que pinga agudo a perfura e adensa. A vida importuna, não acaba mais. Extinguir parece impossível, pois tudo se move afinal, nada cessa enfim.
.:. O espetáculo Matéria escura teve apresentações no PANORAMA RAFT, em 17 de setembro de 2021, e na Bienal Sesc de Dança, em 2 de outubro de 2021.
Ficha técnica:
Criação, coreografia e performance: Alejandro Ahmed, Aline Blasius, Bianca Vieira, João Peralta, Karin Serafin, Kitty Katt, Luana Leite, Malu Rabelo e Natascha Zacheo
Operação e criações em vídeo e som: Alejandro Ahmed e João Peralta
Direção técnica: Grupo Cena 11
Interlocução para iluminação: Irani Apolinário e Rafael Luiz Apolinário
Técnico de som e transmissão: Eduardo Serafin
Direção de produção: Karin Serafin
Assistência de produção: Malu Rabelo
Assistência de direção de movimento: Aline Blasius
Assistência cenotécnica: Adilso Machado
Equipe de produção, mídias sociais e projeto: Aline Blasius, Bianca Vieira, Kitty Katt, Luana Leite e Natascha Zacheo
Peças gráficas: Luana Leite
Fotografias: Cristiano Prim e Karin Serafin
Tradução: Kitty Katt
Preparação técnica: Aline Blasius, Kitty Katt e Alejandro Ahmed
Desenvolvimento técnico-artístico para Matéria escura 2019/2020 e teaser para Futuro fantasma 2020: Hedra Rockenback
Criação e programação de objetos, instrumentos e mecanismos para Matéria escura: Diego de los Campos
Fúrias: 5 estruturas feitas com galhos de árvores. animadas por motores, vibram se deslocando ruidosamente pelo chão
Água nervosa: Uma válvula solenoide controlada por Arduino instalada na base de um recipiente de vidro faz uma gota cair sobre um captador de som
Besta: Sintetizador feito com Arduino usando a biblioteca Mozzi, que tem 5 potenciômetros que regulam a frequência de dois osciladores, pitch, nota e ruído
Sampler: Arquivos de áudio de frases usadas no espetáculo são controladas em sua duração, velocidade de reprodução (pitch), começo e final
Baixolata: Uma lata de tinta de 3,6 litros funciona como caixa de ressonância de um baixo de uma corda só
Plantas para cenografia: Karin Serafin
Textos: Grupo Cena 11
Interlocução técnico-artística para criação de vídeos em Matéria escura: PACT-UFSC (João Peralta, Rodrigo Garcez e Thiago R. Passos)
Operação de câmera em Matéria escura: Karin Serafin e João Peralta
Operações de drone: Alex Costa
Coprodução: Mousonturm, Tanzhaus NRW, PANORAMA RAFT, Instituto Goethe, Gabi Gonçalves, Corpo Rastreado – São Paulo e Something Great – Berlin
Apoio: Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura (SC) ⁄ Edição 2019
Sede e preparação técnica: Jurerê Sports Center (JUSC).
Concepção, direção e coreografia: Alejandro Ahmed
Agradecimentos: Adélia Aurora, Ana Lucia Rodrigues, Andrea Druck, Aurora Khan, Aya Nishimuta, Bartolomeu, Batman, Binha, Breu K. Katt, Bruno Bez, Cassiana Kerber, Caio Matienzo, Candy, Cecília Blasius, Chewie, Cristina Schmitt, Eveline Orth, Fabiana Dultra Britto, Florentina, Francisco J. Peralta, Gatite, Gianca Piccolotto, Gizely Cesconetto, Héctor Lamela, Hedra Rockenbach, Íris, Jamile de Souza Santos, Khaninanas Cobras, Ludovico, Luiz Falcão, Maki, Marcos Klann, Marcos Morgado, Mateus Ramos de Melo, Maurício Pires Marin, Muha, Murilo Brogim Leal, Neltair Piccolotto, Nina, Norma Adó, Pedro Mello e Cruz, Rodrigo Garcez, Theo Gomes, Thiago R. Passos e Vanderlúcio Cunha.
Professor titular de história e teoria do teatro da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).