Crítica
A justaposição de obras gestadas no curso da pandemia, exibidas em tempo real, e de gravações de performances anteriores à crise sanitária permitiram ao público do Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia, o FILTE, atravessar coordenadas espaço-temporais produtivas em suas singularidades. No caso dos trabalhos internacionais da programação, que aconteceu de 22 a 28 de novembro, houve equilíbrio entre duas criações ao vivo e duas derivadas de arquivo e registradas, intuímos, sem supor que um dia seriam difundidas integralmente na rede mundial de computadores. Pelo menos três delas têm o corpo matricial em narrativas redimensionadas por meio de outras fisicalidades próprias das mídias que coabitam.
O presente texto caminha ao lado de Curadoria – Palestra-performance, da dramaturga, atriz e pesquisadora Any Luz Correa Orozco, da Colômbia, ela que desenvolveu estudos no Brasil; Expectantes, parceria do Núcleo 2 – Coletivo de Teatro, de Uberlândia (MG), com o grupo Vendimia Teatro, da Colômbia; Noite, da CRL – Central Elétrica (Circolando), de Portugal; e Altíssimo, da plataforma TREMA!, surgido no Recife e atualmente radicado em Portugal.
A despeito do formato reduzido, em consequência da pandemia, a escalação internacional do FILTE disse a que veio na tensão corpo-sociedade nos trabalhos ‘Curadoria – Palestra-performance’, ‘Expectantes’, ‘Noite’ e ‘Altíssimo’. As naturezas do arquivo e do ao vivo mobilizaram a recepção imersa no espírito do tempo enlutado. Deram a perceber – e abismar-se – que as sequelas do passado nunca foram tão presentes nos rumos e paroxismos da humanidade
Curadoria – Palestra-performance desdobra da pesquisa teórica e vivencial que Any Luz Correa Orozco elaborou em seu mestrado, concluído em 2020. O vídeo reafirma a convicção de que ela e suas parceiras artísticas conseguiram imprimir um pensamento orgânico na maneira de cruzar o enfrentamento pessoal de uma doença crônica, a fibromialgia – que incide principalmente sobre a população feminina e causa dores crônicas no sistema musculoesquelético. Como um ato de sororidade, estende as mãos a outras oito mulheres acometidas pela mesma enfermidade, cujos relatos também impregnam o texto.
A criação deCuradoria, portanto, nasce do percurso da dissertação Por uma dramaturgia da dor: Tecido blando – uma peça criada a partir de narrativas de mulheres com experiência de fibromialgia, defendida no ano passado pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Passou em 2021 pelo laboratório criativo Museu, Teatro e História, organizado pela plataforma de intercâmbio internacional Complexo Sul (RJ), e agora foi apresentado ao vivo no FILTE.
Em cena, no trabalho que também dirige, Orozco performa um jeito de palestrar em que as palavras têm estatuto poético, assim como as imagens adquirem texturas acentuadas por plantas que ocupam quase todos os enquadramentos nos respectivos espaços domésticos das demais artistas. A fluidez é estendida às atuações de Yenny Agudelo e Vanessa Mesa, nas quais a intervenção corporal fica mais evidente. Pés e mãos são sublimados na captação, sugerindo closes como metáfora da fibra dos seres em diálogo permanente com a própria memória.
Apesar das dores lancinantes, em geral nos tecidos moles do organismo – donde o título da dramaturgia em espanhol concebida no mestrado da colombiana, Tejido blando –, a agudeza de Curadoria é de outra ordem. A dramaturgia plasma dores física e emocional da sociedade do cansaço (há citação ao pensador sul-coreano Byung-Chul Han) sem aplastar o plano da individualidade, a começar pela voz em primeira pessoa.
Uma imagem que sempre retorna durante a exibição é a de um boneco de barro, do tamanho da mão, como a mimetizar o corpo humano, sua beleza, sua fragilidade. A escultura aparece em diferentes fundos e contextos, até ser diluída ao final, numa síntese dos desfazimentos que a humanidade comete consigo mesma, a exemplo dos genocídios.
Mesclando abordagens em níveis animal e vegetal, o trabalho acessa o campo sensorial, sedimenta estados d’alma em relação ao que é exposto no plano verbal – a diretora chega a segurar as páginas do texto em boa parte das cenas, a palavra lhe é simbiótica. Sublima-se a vida, oxigênio traduzido pela visibilidade à dor da outra e de si, gesto de anteposição ao patriarcado que tenta silenciar o corpo feminino. Orozco assume exacerbar a dor como sinal vital, eleva o autocuidado ao espaço público, expõe que a possibilidade de cura tem a ver com a sociedade ocupar-se de sua usina de sofrimentos morais, psicológicos, físicos, em suma, estruturais. Estabelece pontes com as perdas de mães e avós argentinas e mexicanas em protestos pelo assassinato dos seus. Que essa profusão de ideias e símbolos transpassem o lado de cá da tela, isso não é pouco. As dores de entes vivos são postas do avesso pela arte, sem comiseração.
Em Expectantes, direção de Clara Angélica Contreras (da agrupação colombiana Vendimia Teatro, dois artistas e pedagogos de longa experiência com as artes da cena têm seus corpos reinventados pelos recursos audiovisuais sutis que apoiam a narrativa algo nonsense, feito aquelas reações de autoridades e cidadãos negacionistas diante do choque das mais de 5 milhões de mortes causadas pela Covid-19. Na transmissão por live, Carlos Araque, antropólogo cofundador do Vendimia (colheita em espanhol) há 34 anos, professor na Universidad Distrital Francisco José de Caldas, em Bogotá, e Narciso Telles, à frente do mineiro Núcleo 2 – Coletivo de Teatro desde 2018, artista, professor e pesquisador na Universidade Federal de Uberlândia há décadas, cada um em seu país, parecem dividir o mesmo espaço, tamanho o sincronismo das telas apartadas. O efeito de fundir-se, emanado das atuações, fala dos artistas enquanto sujeitos sociais, eles também profundamente afetados pela doença e pelo estado de coisas em que nos metemos.
Se Samuel Beckett radicou o ato da espera, essas duas figuras também o fazem, mas sem abrir mão do lugar de observador atento. Enquanto aguardam, examinam meticulosamente suas consciências e, sobretudo, seu entorno, o que vem de lá. “Só um homem pode dizer a verdade a outro homem”, pactuam, como se íntimos em suas ilhas de ideações. Passam a limpo protocolos da pandemia em sua fase mais crítica, desconfiados. Não disfarçam a crise de ego concomitante à angústia pela redução da instância coletiva no cotidiano. O exercício de alteridade vai à esquina e se vê assombrado pelo que a lupa mostra.
As imagens brotam do corpo deles – corpos falantes cujas vozes também compõem a paisagem sonora – desde pontos minimalistas como o couro cabeludo e as sobrancelhas. Quando espreitados por inteiro, tronco e membros, o vídeo expande nossa percepção para um espectro, um vulto, algo que ainda não tem forma, algo ou alguém que aos poucos se desvela a partir do cheiro. Talvez aquilo seja um corpo, talvez humano, talvez animal.
Há um bem estruturado trabalho de fisionomia em Araque e Telles, homens latino-americanos vindos de países onde a violência foi banalizada. Eles apontam como o microcosmo das indiferenças social, política e econômica escala de modo abrupto na esteira da virulência de uma doença infectocontagiosa.
A guinada para a aplicação de formas animadas denota uma equipe criadora empenhada na artesania das artes do corpo. O pequeno boneco de pano, o origami e o teatro de sombras respaldam o que se conta e constituem janelas memoriosas das caminhadas artísticas percorridas.
Expectantes salienta a sina de corpos desaparecidos, assassinados por forças de estado. Execuções deliberadas que, no caso da pandemia, também se fez presente, tanto por desgovernos como pela fatia da população antivacina, deliberadamente descrente da ciência.
Traçando as linhas éticas e estéticas candentes, esse trabalho diagnostica a profunda decomposição das formas de viver sob as mutações do capitalismo.
No caso dos outros dois vídeos acompanhados, esses registros, até então, costumavam servir mais às inscrições em mostras ou editais, à comercialização de DVDs pelos núcleos artísticos ou à alimentação dos seus acervos. Acolhidos na 13ª edição do FILTE, ganham nexo com o pensamento curatorial proposto por Daniele Ávila Small, Francis Wilker e Luís Alonso-Aude.
Noite (2015), espetáculo de dança da CRL – Central Elétrica (Circolando), coletivo atuante desde o final dos anos 1990 na cidade portuguesa do Porto, alcança altas voltagens em termos de corporeidade, no que é possível depreender aproximações a Curadoria – Palestra-performance e a Expectantes.
O espetáculo da Central Elétrica traduz, cenicamente, a atmosfera lúgubre dos poemas de Al Berto, escritor morto em 1997. A dramaturgia de Cláudia Figueiredo e a direção de André Braga, que contracena com Paulo Mota e Ricardo Machado, atravessa diferentes fases em termos de contato improvisação, de ambiente sonoro e de desenho de luz. Seus primeiros minutos são sinestésicos, embalado pelo set do DJ e sonoplasta André Pires. Tudo ainda um pouco disforme, como se fosse o fundo escuro de uma floresta. Paulatinamente, a penumbra e os corpo dos atuantes, todos homens brancos, que brotam do mar de pneus empilhados no espaço ganham outras configurações, outras tonalidades.
Em certos momentos, a palavra de Al Berto chega como um murmúrio, como se as entrelinhas de seus poemas fossem expressas por meio dos movimentos e ações do trio. Um verso-pensata soa como lampejo: “Existem momentos em que já não é noite e ainda não é dia no coração humano”.
Da metade em diante, as alusões migram para as pulsões selvagens, homoeróticas, saudando masculinidades libertárias. Até o quarto homem, o DJ Pires, vê seu equipamento de som e ele mesmo catapultados para a cena. A virada de clima empresta um tom tropicalista ao projeto, um rasgo solar através da sequência que lembra um episódio ocorrido numa apresentação de Bacantes, do grupo Oficina (SP), ocorrida no Rio de Janeiro em 1996. Na ocasião, o cantor e compositor Caetano Veloso foi fisgado da plateia e desnudado, ou estraçalhado, como o diretor José Celso Martinez Corrêa gosta de dizer. E assim se dá em Noite, com o artista do som, no auge da nudez ou seminudez dos demais, chão forrado de purpurina, como a dizer que há lugar para o prazer e o humor nessa itinerância noturna pela urbe.
Todavia, fruir esse trabalho através da internet é uma experiência limitante dado o contraste que oferece. No registro da apresentação realizada há seis anos, a disposição da plateia é de arena, em quatro nichos, estimulada a uma visão global. Por isso testemunhar in loco parece imprescindível. O ponto de vista da câmera reduz as potencialidades relacionais, o caráter sensorial e o chamado à celebração corpo a corpo no desfecho.
Mudando da água para o vinho, nas religiões cristãs a santíssima trindade composta por pai, filho e espírito santo também costuma ser assimilada, por parte dos fiéis, como o homem e a mulher tripartidos em corpo, alma e espírito. Altíssimo, encenação e atuação de Pedro Vilela para a dramaturgia de Alexandre Dal Farra, empreende uma invasão nesse território do sagrado para eviscerar a exploração da fé.
O solo faz uma espécie de exorcismo na esfera neopentecostal, o que diz muito sobre o momento brasileiro. Subverte códigos do mundo evangélico, bem como de outras religiões, como as de matriz africana, ao incorporar ao espaço da cena elementos como sal grosso, água benta (mimetizada nas garrafinhas de plástico), a bebida alcoólica e o bode (ou cabra) exposto literalmente no meio da sala como se em um açougue. A ideia do rito cênico sobrepõe-se ao rito religioso na encenação que teve consultoria do diretor, cenógrafo e pesquisador Marcondes Lima, do Recife.
Vilela, que encampa projetos da plataforma TREMA! desde pelo menos 2012, quando lançou o festival de mesmo nome na capital pernambucana, perpassa o corpo constrito e o corpo expandido, modula vozes de quem performa e de quem produz ruídos sobre esse tipo de representação, permitindo ao público aferir o peso da moeda de troca na balança do dinheiro e da alma. Altíssimo move-se pelo fio da meada sem sacrificar a crença alheia. Sua provocação é mais embaixo: desmistificar o discurso do púlpito que aliena milhões de brasileiros – basta lembrar do atual panorama da TV aberta tomada por canais que distorcem o caráter da concessão pública das emissoras. Em que justiça acreditar no país que prega o estado laico, mas cultua imagens em seus tribunais e promove cultos em suas casas legislativas? Não sem razão, anda difícil distinguir deus e demônio.
A despeito do formato reduzido, em consequência da quarentena, a escalação internacional do FILTE disse a que veio na tensão corpo-sociedade. As naturezas do arquivo e do ao vivo mobilizaram a recepção imersa no espírito do tempo enlutado. Deram a perceber – e abismar-se – que as sequelas do passado nunca foram tão presentes nos rumos e paroxismos da humanidade.
:. Escrito no contexto da prática da crítica no 13º Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia, o FILTE. O autor foi contratado pela organização.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.