Artigo
3.3.2022 | por Fernando Marques
Foto de capa: Benedito Junqueira e sem autoria
Este artigo reproduz o texto elaborado para a palestra “Dramaturgia modernista: Oswald e Mário de Andrade”, apresentada no evento Revendo o Modernismo: a Semana de 22 e seus Desdobramentos, realizado de modo remoto pelo Decanato de Extensão e pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília, em 18 de fevereiro de 2022.
1. Oswald de Andrade
A Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo há cem anos redondos, teve literatura, pintura, escultura e música; não teve teatro. Os desdobramentos modernistas é que tiveram teatro – ou, mais especificamente, dramaturgia, com peças e libretos que em seu tempo não chegaram à cena. Falo das obras teatrais de Oswald de Andrade (1890-1954) e dos textos destinados à ópera por Mário de Andrade (1893-1945), autores mais conhecidos pelo que produziram na poesia e no romance e pela agitação das ideias.
Uma breve explicação para a escassez de espetáculos renovadores, nos anos 1930, pode ser dada pelo seguinte episódio. O ator-empresário Procópio Ferreira (1898-1979), soberano dos palcos cariocas, foi procurado por Oswald de Andrade, que trazia consigo a sua primeira peça relevante, O rei da vela, talvez seu melhor texto teatral. Estávamos possivelmente em 1933, ano em que a peça foi escrita. Oswald então a ofereceu a Procópio.
Mário de Andrade e Oswald de Andrade trabalharam sobre o mesmo período [anos 1930 e 1940] no libreto ‘Café’ e na peça ‘O rei da vela’, de diferentes maneiras. Essas maneiras singulares, no entanto, convergem no idêntico desafio ao estado de coisas. Oswald denuncia corrosivo as mazelas da ordem política; Mário dá mais um passo e mostra a insurreição
O rei da vela apresenta a história do agiota Abelardo, que enriquece em meio à crise – deflagrada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929 e disseminada feito epidemia mundo afora, alcançando o Brasil e quebrando as fortunas do café, então nosso principal produto. Irreverente até o sarcasmo, a peça faz do país um retrato devastador e amoral: “Só se pode prosperar à custa de muita desgraça. Mas de muita mesmo…”, diz uma das personagens.
Procópio Ferreira, pragmático e atento ao gosto de seu público, disse anos depois em depoimento ser impossível representar a peça de Oswald, debochadíssima também no plano dos costumes, numa época em que a censura proibia até que se pronunciasse em cena a palavra “amante”. Mas não terá sido só esse o motivo da recusa: os hábitos estéticos simplesmente tornavam inassimilável o texto pleno de imagens expressionistas, como a das grades que separam os devedores em desespero de seu credor, a indicarem uma jaula destinada a inadimplentes.
O rei da vela seria publicado quatro anos depois, ao lado de A morta, e esperaria outros 30 anos até ser encenado pelo Teatro Oficina, em São Paulo. Em 1987, tivemos em Brasília a montagem dirigida por Hugo Rodas e, em 2000, o espetáculo da Cia. dos Atores, no Rio de Janeiro, para citar algumas das abordagens.
A segunda peça de Oswald chama-se O homem e o cavalo e sai em livro em 1934. A história se distribui em nove quadros que relatam a aventura revolucionária e, depois, a construção do mundo comunista, em meio a viagens pelo céu e outras fantasias humorísticas. Oswald idealiza ingenuamente a circunstância soviética dos anos 1930 – os crimes do ditador Stalin só seriam denunciados duas décadas depois.
Comparada a O rei da vela, a segunda peça mostra-se menos coesa. Os eventos em O homem e cavalo ocorrem um pouco aos trancos, arbitrariamente (não falo aqui de exigências realistas, é claro). Também ressalta a distância entre denunciar os mecanismos capitalistas, a concentrarem riqueza e a multiplicarem desemprego e fome, denúncia aguda em O rei da vela, e o vislumbre de alternativas políticas válidas, o que parece menos convincente em O homem e o cavalo.
Apesar dos limites, a peça traz uma percepção inteligente e generosa do que o teatro pode ser para além das salas, dos recintos fechados. O homem e o cavalo sugere a recondução do teatro à praça pública, aos grandes espaços abertos, lugar que ele ocupou durante séculos. Quem sabe se faz hoje a montagem dessa peça – e de outras – na Esplanada dos Ministérios?
A morta, a terceira obra teatral de Oswald, sairia ao lado de O rei da vela em volume de 1937 (o autor tem ainda dois textos em francês, de 1916, parcerias com Guilherme de Almeida que não foram republicadas). O ano de 1937 foi aquele em que seria imposto ao país o Estado Novo de Getúlio Vargas.
Oswald chamou A morta de “ato lírico em três quadros”. Ele a definiu em breve prefácio como “o drama do poeta, do coordenador de toda ação humana, a quem a hostilidade de um século reacionário afastou pouco a pouco da linguagem útil e corrente”. E afirmava: “As catacumbas líricas ou se esgotam ou desembocam nas catacumbas políticas”.
A peça traz um primeiro quadro surreal, em que quatro personagens trocam falas de sentido impreciso, amplificadas por microfones. Essas figuras – Beatriz, A Outra, o Poeta e o Hierofante – estão posicionadas “em dois camarotes opostos no meio da plateia”. Suas palavras são ilustradas por Quatro Marionetes mudas, “que gesticulam exorbitantemente as suas aflições, indicadas pelas falas”. Beatriz revela a certa altura: “Nunca a tua febre amorosa deixou o meu corpo, Poeta!”. Ao que ele responde: “Porque me retempero no teu útero materno”.
O segundo quadro de A morta nos leva a uma praça onde vão se defrontar os mortos e os vivos, em chave que mistura lirismo e galhofa. Os mortos querem a manutenção do estado de coisas, seja ele gramatical ou político (o conservadorismo dos gramáticos serve como símbolo de todos os conservadorismos). Os vivos querem mudar a ordem, revolucioná-la.
O Polícia Poliglota explica: “O mundo é um dicionário. Palavras vivas e vocábulos mortos. Não se atracam porque somos severos vigilantes. Fechamo-los em regras indiscutíveis e fixas. Fazemos mesmo que estes que são a serenidade tomem o lugar daqueles que são a raiva e o fermento. Fundamos para isso as academias… os museus… os códigos…”.
O Turista Precoce então pergunta: “E os vivos reclamam?”. Ouve em resposta: “Mais do que isso. Querem que os outros desapareçam para sempre. Mas se isso acontecesse não haveria mais os céus da literatura, as águas paradas da poesia, os lagos imóveis do sonho. Tudo que é clássico, isto é, o que se ensina nas classes…”.
Como se vê, a literatura também é ironicamente acusada de representar dramas falsos, evitáveis; de induzir à mistificação. O que se acentua no último quadro, ocupado por personagens como a Dama das Camélias, o Atleta Completo, a Senhora Ministra, o Urubu de Edgar (que passa pelo corvo famoso do poeta Edgar Allan Poe).
Nesse último quadro, a tremenda hesitação do Poeta entre a paixão por Beatriz e o desejo de participar, de influir politicamente sobre os destinos da sociedade resolve-se num incêndio, produzido por ele, aparentemente com o intuito de renovar a própria alma e seu entorno, isto é, chegar à revelação, purificar-se, começar outra vez, do zero. O sentido final da peça permanece aberto.
O Hierofante, espécie de narrador, inicia e encerra a história, dizendo ao fim: “Respeitável público! Não vos pedimos palmas, pedimos bombeiros! Se quiserdes salvar as vossas tradições e a vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a polícia! Somos como vós mesmos, um imenso cadáver gangrenado! Salvai nossas podridões e talvez vos salvareis da fogueira acesa do mundo!”.
Imagens expressionistas em O rei da vela, o teatro ao ar livre sugerido em O homem e o cavalo e a atmosfera surreal em A morta foram processos apropriados e aclimatados, de modo criador, à situação brasileira por Oswald.
O rei da vela permanece como retrato exato da delinquência das elites no país, enquanto A morta vale por metáfora da falta de saídas vivida por seus intelectuais. Sem perder a comicidade jamais.
2. Mário de Andrade
O escritor Mário e o jovem compositor Camargo Guarnieri (1907-1993) conversaram, em 1928, sobre a hipótese de uma ópera nacional. Aquele é o ano em que Mário de Andrade lança o seu Ensaio sobre a música brasileira, no qual argumenta enfaticamente em defesa do conhecimento e do uso, pelos artistas eruditos, das fontes populares.
O escritor, também musicista (havia estudado piano e dava aulas no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo), enriquecera o ensaio com letras e melodias vindas de vários estados, algumas registradas por ele próprio.
Guarnieri gostou da ideia de fazer a música para um libreto de assunto brasileiro; três dias depois, Mário chegava com o texto pronto. A história escolhida foi uma das que envolvem a figura folclórica de Pedro Malazarte, malandro picaresco, aventureiro esperto. A ópera cômica para três vozes solistas, coro e orquestra (depois orquestra de câmara), com cerca de 30 minutos, só seria terminada quatro anos mais tarde. E esperaria duas décadas para estrear.
O argumento de Pedro Malazarte é simples: estamos em Santa Catarina, em casa de agricultores remediados. Baiana, casada com Alamão, encanta-se com Malazarte e, na ausência do marido, prepara o jantar para o namorado. O sedutor, porém, parece mais interessado na refeição do que na moça. Alamão tinha ido à cidade e, diz Baiana, “só volta pra semana”. Malazarte faz declarações protocolares à mulher enquanto espia gulosamente os petiscos. Mas Alamão volta mais cedo que o esperado.
Seria a hora de um crime passional, com facadas e hemorragias, mas o que temos é uma camaradagem rapidamente nascida entre marido e amante, depois do momento mais ríspido em que Alamão ordena a Malazarte que diga quem é e a que veio. O pilantra responde cantando uma embolada: “É que eu nasci de sete meses/ E aos três meses fiz seis vezes/ Minha mãe se admirar…”. Logo estão bebendo juntos.
A escala mixolídia, frequente na música popular nordestina, por exemplo, aparece aqui e em outros pontos da obra. (Basta a gente cantarolar: “Eu vou contar pra vocês/ Como se dança o baião…”; eis o modo mixolídio.) O compositor inspira-se também noutros gêneros: a langorosa modinha, a ciranda de rodas infantis. O uso das formas populares soma-se à sofisticação erudita em Guarnieri.
O compositor foi uma espécie de discípulo de Mário de Andrade, aceitando seu conselho de relacionar as obras ao acervo popular, abrasileirando-as. Mário também influiu no destino de outros artistas (ou coincidiu com eles), a exemplo de Francisco Mignone (1897-1986), estimulando a tendência nacionalista que ocupou a música erudita por algumas décadas. O moderno e o nacional deviam andar juntos.
A dialética do local e do internacional, da tradição e das vanguardas patenteia-se nessas ideias, que assinalam o quanto há de vivo e duradouro nas sugestões modernistas. É uma ilusão imaginar que já não existam interior e exterior, nacional e estrangeiro: o que nos vem de fora chega marcado pelas diferenças econômicas e não nos chega inocentemente. Tudo se vende e tudo se compra no mercado da cultura. Assim, vale defender ainda agora a atitude “espertalhona”, como diria Mário, a de beber em todas as fontes sem adesão automática a nenhuma delas, sem subserviência. Aqui estamos próximos da antropofagia de Oswald.
A crise econômica ocorrida em torno de 1930 não resultou somente no Rei da vela, mas também noutras peças, entre elas a tragédia coral Café, de Mário de Andrade. O poeta publicou o libreto em 1942. A música tinha sido encomendada a Francisco Mignone, que acabou por não a escrever; seria afinal composta por Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005). A ópera chegou à cena em 1996 pelas mãos do diretor Fernando Peixoto (1937-2012).
Esta é uma obra mais ambiciosa que Malazarte, ao menos quanto ao texto. Em Café, a comicidade também comparece, mas vem mesclada à desesperança ou à indignação dos estivadores, colonos e operários, que sofrem com o desemprego e a fome causados pela grande queda nas vendas daquele produto. Há enfrentamentos entre colonos e patrões que crescem até o combate final, quando a rebelião é vitoriosa.
Mário e Oswald trabalharam sobre o mesmo período em Café e no Rei da vela, de diferentes maneiras. Essas maneiras singulares, no entanto, convergem no idêntico desafio ao estado de coisas. Oswald denuncia corrosivo as mazelas da ordem política; Mário dá mais um passo e mostra a insurreição.
Encerro lembrando a imensa obra de coleta e análise de melodias, letras e histórias populares, feita por Mário de Andrade e registrada em livros como Danças dramáticas do Brasil, Os cocos ou As melodias do boi. Devemos a ele o Dicionário musical brasileiro.
Lembro ainda a militância jornalística do critico de música erudita e sua atenção, em artigos na imprensa, a tradições como a dos congos, bailado de origem africana. O exame das canções e das teatralidades brasileiras não deve prescindir de Mário de Andrade.
Algumas de suas ideias podem ser discutidas, é verdade. Mário parece não ter aceitado plenamente a música popular urbana, canções ou peças instrumentais que ele via como destinadas, em geral, ao sucesso efêmero e depois ao esquecimento. Mesmo assim, soube reconhecer as qualidades de Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e de Ernesto Nazareth (1863-1934).
Foi um dos inventores da musicologia no país. Sua obra é incontornável. Seria interessante voltar a essas ideias, melodias e letras mais frequentemente, e isso não precisaria ser feito de maneira programática, organizada demais. Trata-se de incorporar essa obra ao cotidiano das práticas escolares e universitárias. Vamos trazer Mário de Andrade para as nossas aulas. O que acham?
Ficha técnica:
Evento: Revendo o Modernismo: a Semana de 22 e seus Desdobramentos
Instituto de Artes, Universidade de Brasília. Transmitido a 18/2/2022
Com palestras dos professores Eduardo Dimitrov (sociologia), Nelson Inocêncio (artes visuais) e Fernando Marques (artes cênicas). Mediação: professora Maria do Carmo Couto (teoria, crítica e história da arte)
Coordenação: professora Flávia Narita (Música)
Realização: Diretoria de Difusão Cultural/Decanato de Extensão da UnB
Referências:
ANDRADE, Mário de. Café. Em: Poesias completas. Volume 1. Edição: Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
ANDRADE, Mário de. Pedro Malazarte. Ópera cômica em um ato. Texto de Mário de Andrade; música de M. Camargo Guarnieri. São Paulo: Ricordi, 1955.
ANDRADE, Oswald de. Obras completas – 8. Teatro. Com as peças A morta, O rei da vela e O homem e o cavalo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.
ANDRADE, Oswald de. O rei da vela. Textos adicionais de Décio de Almeida Prado, Renato Borghi e José Celso Martinez Corrêa. Coordenação: Jorge Schwartz e Gênese Andrade. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Observação: as óperas Pedro Malazarte, música de Camargo Guarnieri, e Café, música de Hans-Joachim Koellreutter, com libretos de Mário de Andrade, têm gravações disponíveis no YouTube.
Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.