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Artigo

Lenise por Elenize

29.4.2022  |  por Elenize Dezgeniski

Foto de capa: Lenise Pinheiro

O texto a seguir foi apresentado durante a mesa ‘Viva! 30 anos por Lenise Pinheiro’, que aconteceu em 29 de março de 2022, na Alfaiataria Espaço de Artes, extensiva à exposição de mesmo nome dentro da programação do circuito Interlocuções do Festival de Curitiba.

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Quero começar dizendo que é uma honra fazer parte desta mesa em celebração ao trabalho da fotógrafa de palco Lenise Pinheiro, que por sua vez celebra os 30 anos do Festival de Curitiba. Cumprimento os meus colegas Daniel Sorrentino e Maringas Maciel, companheiros do mesmo ofício nesta terra das Araucárias. E também o produtor cultural Celso Curi, mediador do encontro. Bem como agradeço à atriz Giovana Soar e à equipe do Interlocuções pelo convite.

Falar acerca do trabalho da Lenise é desafiador, dadas a qualidade, a importância histórica e a monumentalidade de seu arquivo, que se entrelaça à própria história do teatro brasileiro nas últimas quatro décadas.

Se a fotografia é evidência de ausência, sempre me encantou pensar em seu encontro com a arte da presença, característica própria do teatro. Ilusão de permanência diante da evanescência do acontecimento teatral. O encontro entre as duas linguagens tece uma delicada teia de sentidos próprios. Lenise, em uma entrevista a que assisti, disse: ‘O teatro é evanescente, mas se repete’. Bem lembrado, e eu acrescentaria que depois de se repetir, sempre diferente, somos responsáveis pelos retornos dos traços transcriados da linguagem cênica para a linguagem fotográfica. É que o nosso ofício é capaz de dar uma volta de parafuso sobre o tempo vivido

Para este momento, compartilho algumas notas sobre o que tenho pensado a propósito da fotografia de cena, a partir da experiência dos últimos 20 anos de trabalho, buscando articulá-las ao trabalho da Lenise e lançando provocações ao vento. E que bonito encontro, pensei comigo quando recebi o convite para integrar este bate papo. Oportunidade de trocas entre público e pares, cada um com sua trajetória singular. Afinal, raramente temos a oportunidade de discutir questões específicas do nosso campo de atuação e seu papel na cadeia criativa do teatro.

Notas sobre a fotografia de teatro

Fotografia é memória, narrativa, tempo e movimento. Em seu noema próprio, ato de consciência, o pensador francês Roland Barthes a define como o “Isso foi”, prova de que alguém viu o referente. Testemunho, evidência de ausência. O autor ainda nos coloca diante do paradoxo da interrupção do tempo na imagem, quando estamos diante da fotografia do ser desaparecido: “a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela”. Quantos raios retardados vêm nos tocar diante da apreciação de um arquivo tão grande, de um recorte de tempo tão extenso como é o trabalho da Lenise?

Se podemos pensar a fotografia a partir do “Isso foi”, também podemos pensá-la a partir do “Isso é”, a conjunção de tempos simultâneos e heterogêneos que vêm nos dar notícias de que os gestos teatrais, congelados pelo efeito da fotografia, continuam em movimento na construção da memória teatral, assim como a escrita, que exige os olhos no tempo presente para atualizar as leituras dos trabalhos e seus contextos.

Imagem é movimento, são mais mariposas evanescentes e menos borboletas estáticas alfinetadas em cortiça. Quem se aproxima das fotografias de Lenise pode sentir o calor das brasas quentes que foram e que são as produções teatrais fotografadas por ela. Para o filósofo francês Didi-Huberman: “(…) a imagem queima pela memória, ou seja, que ela queima ainda, ainda que seja só cinza: um jeito de expressar sua vocação essencial para a sobrevivência, para o apesar de tudo. Mas para sabê-lo, para senti-lo, é preciso ousar, é preciso aproximar o rosto da cinza. E soprar suavemente para que a brasa, por debaixo, comece a emitir de novo seu calor, sua luz, seu perigo (…)”.

Lenise Pinheiro Atriz e diretora Maria Alice Vergueiro contracena com Alexandre Magno (à esquerda) e Luciano Chirolli em ‘Why the Horse?’ (2016), criação do Grupo Pândega (SP)

É preciso muito trabalho e entrega para que um livro, outro livro, mais um livro e uma exposição e outra e mais outra e tantas outras sejam gerados, gestados e devolvidos ao público, organizados para a visualidade, produzindo lampejos de sentidos, novos e antigos.

E isso é posterior ao trabalho de registro no teatro, onde inúmeros ajustes são feitos entre dramaturgia, olho, aparelho, presenças e coração. A edição é resultado de laborioso trabalho sobre o arquivo construído e organizado. A palavra curadoria contém em si a palavra cuidado, com o trabalho a ser mostrado e principalmente na organização das narrativas. ‘Viva! 30 anos por Lenise Pinheiro’ está no vão livre do Museu Oscar Niemeyer, o MON, está em lambes pelas ruas, em tecidos nas fachadas dos teatros. Isso dá a ver a preocupação com a democratização do acesso ao sensível. Lugar de teatro é junto ao povo. Lugar de teatro é lugar de resistência diante de tempos brutais. A exposição da Lenise lembra que o teatro existe, mesmo depois da pandemia, experiência tão radical de isolamento. Que ele continua, que fotografia e teatro juntos são coisas intempestivas. Somos brasas quentes, que o menor sopro pode incendiar. Aqui estamos, no tempo presente, cheios de passado e de futuro para reinventar.

Se a fotografia é evidência de ausência, sempre me encantou pensar em seu encontro com a arte da presença, característica própria do teatro. Ilusão de permanência diante da evanescência do acontecimento teatral. O encontro entre as duas linguagens tece uma delicada teia de sentidos próprios. Lenise, em uma entrevista a que assisti, disse: “O teatro é evanescente, mas se repete”. Bem lembrado, e eu acrescentaria que depois de se repetir, sempre diferente, somos responsáveis pelos retornos dos traços transcriados da linguagem cênica para a linguagem fotográfica. É que o nosso ofício é capaz de dar uma volta de parafuso sobre o tempo vivido.

É sobre tatear imagens no escuro, e com os olhos, pois a fotografia é uma experiência física de contato. E alçar nossos voos em direção à luz. Para mim, os olhos ficam assentados sobre o coração, conjugam gestos no espaço e reinventam memórias. Memória é coisa em movimento, coisa inquieta, memória é coisa a posteriori. É o que estamos de certa forma discutindo aqui.

E são muitos os desafios a serem contornados, encontrar os instantes fotográficos da cena, porque nem tudo é fotografável. Há que se respeitar os silêncios e os agitos interiores e exteriores. Manipular um aparelho, caixa preta, num campo de afetos. Estar fisicamente presente, vendo, experienciando e registrando o referente simultaneamente.

Dar conta de uma perspectiva sobre a encenação, dramaturgia, atores, elementos de cena, do acontecimento teatral em si e pensar onde as imagens vão circular: imprensa, design gráfico, pesquisa acadêmica, publicação, exposição, enfim, os vários usos da fotografia de cena.

Depois de fotografado o espetáculo, vem a edição, processo de construção de narrativa, para mim o ponto nevrálgico do trabalho. Como, a partir de um conjunto de imagens, vou reapresentar a peça? Sim, porque depois do esvanecimento, as maneiras de acesso ao trabalho teatral são as fotografias, escritas, filmagens ou aquilo que conseguimos guardar na lembrança.

Lenise Pinheiro Teuda Bara em cena de ‘Romeu e Julieta’ (1992), espetáculo de rua dirigido por Gabriel Vilela junto ao Grupo Galpão (MG), em registro do ano seguinte

Para finalizar, lembro-me de um trabalho do artista chileno Alfredo Jaar, exposto recentemente no Sesc Pompeia por ocasião da Bienal de São Paulo, no qual figura a seguinte frase em caixa-alta num cartaz branco com letras pretas: VOCÊ NÃO TIRA UMA FOTOGRAFIA. VOCÊ FAZ UMA FOTOGRAFIA. Segundo o curador Moacir dos Anjos: “O trabalho chama a atenção para qualquer um que inventa o seu entorno através das imagens fotográficas. Ela é dirigida a um indefinido e genérico você e alerta para o poder que cada pessoa dispõe ao criar imagens fotográficas, posto que com isso, confirma ou desafia formas hegemônicas de compreender e organizar a vida.” Fazer aqui significa que você não tira algo, mas que você faz junto, acrescenta, devolve aos atores, como Lenise costuma dizer, se responsabiliza pela circulação e uso das imagens que produz.

Vejo Lenise fazendo fotos de teatro há anos e compartilhando generosamente seu trabalho com o público e com as companhias. Seus livros são grossos, afetivos, cheios de imagens. Suas exposições são repletas de fotografias que, vibrantes, querem o contato com a plateia e transbordam pulsão de vida. Ela, aliás, que sem saber ou sabendo, abriu caminho para toda uma geração de fotógrafos de palco. Evoé Lenise!

Serviço:

‘Viva! 30 anos por Lenise Pinheiro’

Museu Oscar Niemeyer, o MON, vão livre (Rua Marechal Hermes, 999, Centro Cívico, tel. 41 3350-4400).

Grátis, no âmbito da programação do Festival de Curitiba.

De 29 de março a 29 de abril de 2022. Último dia, das 10h às 17h30 (permanência até 18h). Curadoria de Lenise Pinheiro e Iris Cavalcante; idealização, Fabíula Bona Passini; expografia, Daniel Marques; e produção, Roberta Cibin.

Referências:

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia.Trad. Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Trad. Helano Ribeiro. Curitiba: Ed. Medusa, 2018.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002.

DOS ANJOS, Moacir.  Alfredo Jaar – Lamento das Imagens. Catálogo da exposição. Edições Sesc, São Paulo, 2021.

Lenise Pinheiro Wagner Schwartz performa em ‘La bête’ (A fera), em 2016, quando o jornalista e espectador Gustavo Fioratti interage com o artista que evoca esculturas da série ‘Bichos’ (1960), de Lygia Clark

Artista visual, fotógrafa e atriz. Há mais de 20 anos capta cenas de teatro, música e dança em Curitiba e vindas de outras regiões do país. Trabalha ainda em vídeo, instalações, curadorias, publicações e inserções em discursos/circuitos híbridos. Investiga relações entre imagem, tempo, palavra, memória e narrativa. É colaboradora do Grupo Obragem de Teatro e da CiaSenhas de Teatro. Integra o coletivo FUDEU. Mestranda em artes visuais pela Udesc. Especialista em história da arte moderna e contemporânea pela Embap e bacharel em interpretação teatral pela FAP. Autora do livro ‘Gesto contínuo – fotografia de cena’ (Curitiba, 2019). www.elenizedezgeniski.com.

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