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Crítica

Transcendências pétreas

12.6.2022  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Guto Muniz

Em 2021, Um jardim para educar as bestas foi registrado em vídeo na praça Tempo Espaço, território que na verdade é uma exposição permanente ao ar livre, instalada no Museu Exploratório de Ciências da Unicamp, em Campinas (SP). Dali dá para contemplar nasceres e pores do sol, interagir com bússolas, lunetas ou teodolitos, instrumentos para medir ângulos horizontas e verticais. O ator Eduardo Okamoto e o pianista, compositor e arranjador Marcelo Onofri apresentaram-se à luz do dia no mirante de 360º de horizontes, sob a vastidão do céu azul, algumas nuvens brancas e raios solares. Uma performance sem público, propriamente dito, pois aqueles eram dias de isolamento social.

Na transmissão remota, havia um momento em que um galho suspenso pelas mãos do atuante parecia tocar o firmamento como se extensão da ponta do dedo humano (ou divino). Um ano e três meses depois, em curta temporada no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, na capital paulista, integrando a programação de retomada da MITsp, o duo ocupa o tablado amadeirado como toda a parede de fundo, pé-direito alto. Os horizontes, agora, são por conta e risco do imaginário de cada uma e um que acompanha as justaposições de teatro, dança e música desse trabalho.

Num espaço cênico que não denota, antes distingue-se pela subtração, um galho seco de árvore e uma veste estampada, de cauda e com manga, à maneira de um manto, apoiam mutações decisivas na história. Notadamente quando vestígios do natural – ou do sobrenatural – ultrapassam signos exclusivamente verbal, físico ou sonoro, alcançando transcendências

As perspectivas ascensional e rente ao chão são tradutoras da travessia de fruir por meio da tela e, depois, da experiência ao vivo como parte da plateia lotada de gente ouvindo a própria respiração por trás das máscaras faciais na prevenção do novo coronavírus.

No percurso fabular de um sertanejo cuja natureza parece feita de colher encantamentos desde a aridez, sujeito de “olhos apertados” e predestinação estirada, a narrativa triangula com a companheira de vida, que “mirava, mas não via”, e com um vizinho, que “adiantava futuros junto da morte de bichos”. A metafísica como instância primacial do ser transborda na ambiciosa criação que corresponde a que veio ao edificar formas a partir da imanência do nada, primo do vazio.

O coletivo de artistas colocou o projeto de pé bebendo em diferentes fontes de linguagem. Atingiu o que pode ser definido como um marco cênico “antirruínas”, para ficar na liberdade evocativa dos neologismos de um dos mestres da literatura brasileira, João Guimarães Rosa (1908-1967), sombra e luz das mais presentes nessa aventura. Antirruínas porque, nas entrelinhas, está se falando dos malignos bolsonarescos, sufixo do sufoco e de assombrosa pilhéria, dada a tragédia a esmagar a realidade.

No roteiro, concepções roseana, ariana e euclidiana de sertão são amalgamadas a escritos outros do angolano Valter Hugo Mãe, que por sua vez atraiu rastros do japonês Yasunari Kawabata, segundo informa o material de divulgação. Em cada um desses homens, decerto, leitores hão de encontrar enfrentamentos da morte e da solidão dramatizados em diferentes graus de razão, espiritualidade e poeticidade.

Guto Muniz Marcelo Onofri (piano) e Eduardo Okamoto cocriaram ‘Um jardim para educar as bestas’ com a diretora Isa Kopelman e a produtora Daniele Sampaio: “Nosso jardim é, enfim, a narrativa de um modo nipo-sertanejo de resiliência diante da incivilidade: misto de manifesto, paciência ativa, aposta na beleza e na poesia como modo de trabalho e lapidação do espírito”

Soma-se a essa trinca a consciência de um corpo pertencente à etnia oriental e artisticamente polifônico. É aqui que as sertanias da cultura brasileira afloram em imanências japonesas basilares na atuação. Elas conversam malemolentemente com a música. Exímio poeta dos sons, Onofri transmite fluidez ao tocar e jogar com a mecânica do instrumento, os pedais, as cordas internas – a ponto de estas serem manuseadas diretamente, gerando outras sonoridades. Além disso, contracena com Okamoto, vez ou outra, recorrendo à voz ou à movimentação física.

De maneira que o duo instaura um só estado de presença. A palavra não passa pelo corpo sem a música. São ressonâncias codependentes na transposição do público para lugares e fulgurações enunciadas.

Num espaço cênico que não denota, antes distingue-se pela subtração, um galho seco de árvore e uma veste estampada, de cauda e com manga, à maneira de um manto, apoiam mutações decisivas na história. Notadamente quando vestígios do natural – ou do sobrenatural – ultrapassam signos exclusivamente verbal, físico ou sonoro, alcançando transcendências.

Ao performar a Onça Caetana, Okamoto expressa com sutileza a fisicalidade da fera. A condição animal é desenhada ao ritmo do ator narrador que transmuda gestualidades e fisionomias sem maiores sobressaltos. Um mero soltar dos longos cabelos revoluciona. Átimos da imagem do silêncio são sua síntese.

Elaboração não menos complexa nos modos como postura e fala imprimem sopros de vida a Seu Inhês, o trabalhador de sol a sol empenhado em não dar ouvidos ao vizinho vidente, Seu Quim, prenunciador de que a mulher do primeiro, Senhora Marly, será morta pelo felino saído do mato.

Tal premissa do enredo, no entanto, é preenchida por um sem-número de variações, sendo a mais essencial delas a paciente determinação do homem em aplacar a danação construindo um imenso jardim de pedras, uma “catequese do vazio”, no dizer do narrador. Incontornável não lembrar das sensações tácteis em páginas de Grande sertão: veredas ou nas “inutilezas” dos versos de Manoel de Barros (1916-2014).

Em mais de duas década de formação continuada, Okamoto notabilizou-se pela perícia dessublimada na abordagem de temas relativos às esferas urbana (a exemplo de Agora e na hora de nossa hora, 2006); rural (Eldorado, 2009); ou própria dos povos da floresta (Recusa, 2012).

Contudo, desde o solo OE (2015), inspirado na obra do escritor japonês Kenzaburo Oe, em que um escritor medita sobre o legado ao filho, deficiente intelectual, há mais nitidez quanto à memória do butô inscrita no corpo do atuante, seja como criador, seja como estudante e espectador contumaz.

Como nas peças mencionadas, um processo solitário jamais avançaria por anos a fio com essa tonalidade prismática. A sina desse criador é gregária. Assim, Um jardim para educar as bestas se faz povoar também pelo pensamento da diretora Isa Kopelman e da produtora Daniele Sampaio, aglomeradas em jornada coletiva.

Guto Muniz Okamoto e Onofri (ao fundo) na obra cujo roteiro traz concepções roseana, ariana e euclidiana de sertão amalgamadas a escritos outros do angolano Valter Hugo Mãe, que por sua vez atraiu rastros do japonês Yasunari Kawabata

Evocar a dança butô em interfaces com o teatro e a música não é sinônimo de qualidade, longe disso. Pela prospecção expandida, sem a ansiedade de que padece parcela considerável da cena contemporânea, o trabalho conjunto faz jus a uma tradição brasileira de conexão às experiências nessa modalidade, o que ocorre desde os anos 1960 e culmina na vinda do bailarino Kazuo Ohno (1906-2010) ao país na década de 1980, de acordo com a pesquisadora Christine Greiner no artigo “Butô no Brasil: contexto histórico e reencenação política”, publicado em inglês no livro The routledge companion to butoh performance (2018). Ohno e Tatsumi Hijikata (1928-1986) foram cocriadores do movimento surgido após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) pelo resgate da identidade e espiritualidade ancestrais japonesas, utilizando-se de elementos de teatro e mímica, como dicionarizado no Houaiss. Uma corrente da qual fazem parte artistas como Takao Kusuno (1945-2001), sua Cia. Tamanduá de Dança-Teatro, Denilto Gomes (1953-1994), Ismael Ivo (1955-2021), Antunes Filho (1929-2019) e Emilie Sugai.

Na estreia, quem estava mais próximo do palco possivelmente notou que a cadência de voz do narrador de Okamoto soava suave, como a aguçar o ouvido da plateia no convite à alteridade. Aos poucos, porém, foi perceptível que a emissão não chegava a boa parte da audiência num auditório com 170 lugares, incluindo o mezanino. A limitação deve ter afetado boa parte da recepção, merecendo ajustes nas sessões seguintes. Afinal, a condição acústica pode atravessar o mato e derrubar o espetáculo e sua mestria.

Em tempo: o informe de imprensa diz que o processo criativo residiu em estudos de Okamoto sobre a cultura japonesa e, em especial, a dança butô, manifestação surgida em 1959. Em 2019, depois da eleição da ultradireita no Brasil, um professor dessa modalidade, em um festival na Alemanha, provocou o atuante: “É hora de criar a sua própria revolta na carne”, referindo-se a um dos trabalhos icônicos de Hijikata.

Serviço:

Um jardim para educar as bestas

Domingo (12), 17h, última apresentação na MITsp

Biblioteca Mário de Andrade – auditório (Rua da Consolação, 94, República, tel. 11 3150-9453

Apresentação gratuita, retirar senhas com uma hora de antecedência

Ficha técnica:

Uma criação de Eduardo Okamoto, Isa Kopelman, Marcelo Onofri e Daniele Sampaio, com a colaboração de Yumiko Yoshioka, Nina Pires, Fernando Stankuns, Binho Signorelli e Yasmim Amorim

Assessoria de imprensa: Adriana Monteiro | Ofício das Letras

Produção: SIM! Cultura

Este espetáculo tem apoio da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, da Fundação Japão e da Faepex – Fundação de Amparo à Pesquisa, ao Ensino e à Extensão da Universidade Estadual de Campinas

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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