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Crítica

A condição da margem

Órfãs de dinheiro

3.9.2022  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Nereu Jr

Em Órfãs de dinheiro, o teatro está para o conto assim como este, para a literatura. O enxugamento intrínseco da narrativa breve, em que menos é mais, corresponde à tática de linguagem na concepção, texto e atuação de Inês Peixoto. Três histórias compõem o monólogo sobre mulheres subjugadas por estruturas patriarcais na família ou na sociedade sob condicionantes como honra, sexo, pobreza e xenofobia.

No trabalho paralelo ao grupo em que milita, o Galpão (MG), a atriz parece escutar João Guimarães Rosa (1908-1967). Quando indagado sobre a preferência pelo conto, em rara entrevista a Ascendino Leite, publicada em 1946, em O Jornal (RJ), sob o sugestivo título “Arte e céu, países de primeira necessidade”, o escritor declarou:

(…) o que me interessa, na ficção, primeiro que tudo, é o problema do destino, sorte e azar, vida e morte. O homem a ‘N’ dimensões ou, então, representado a uma só dimensão: uma linha, evoluindo num gráfico. Para o primeiro caso, nem o romance ainda não chega; para o segundo, o conto basta. Questão de economia.

Concebido, escrito e atuado por Inês Peixoto e dirigido por Eduardo Moreira, o espetáculo ‘Órfãs de dinheiro’ é provido de sínteses e fornece campos de leitura férteis à complementação do repertório de vida de quem acompanha. A rigor, essas mulheres navegam por passagens mitológicas ou arquetípicas implícitas na exposição da realidade material. Basicamente, é a falta que as move

A despeito das histórias curtas emergirem de injustiças perpetradas em razões de gênero, classe social e circunstâncias de uma refugiada, a artista imprime fluxo à condição da margem. Proporciona sentidos e reflexibilidades por trás de cada personagem que, por sua vez, imbricam tempos e vozes outras.

Uma canoa cenográfica faz as vezes da premissa roseana da linha que evolui como que num gráfico. Traço perceptivo nas ações que saem do ventre da embarcação ou a orbitam com naturalidade, inscritas no bojo da prosa. Esse epicentro comum é ressignificado passo a passo.

O relato de abertura se passa na zona rural e trata daquela cuja mãe morre na infância, o pai constantemente a estupra e, acumulando perversão, a obriga a vender o corpo. Ela vai parar numa casa de prostituição, é “comprada” por um cliente e, aos poucos, toma tento e age em nome da dignidade. Esse movimento de autoconsciência e reparação ganha ares de realismo fantástico. A protagonista remói lembranças com alguma vazão ao humor e zero de resignação. Expele veneno com a mesma crueldade com que foi tratada por seus predadores.

A paisagem muda completamente na segunda história. A canoa realista e bem arquitetada permanece no centro do palco, sem estorvar. A visualidade e o leito narrativo a incorporam. É por meio da canoa que uma professora refugiada, nuançada por Peixoto em figurino, fisionomia e olhar, chega a outro país, em decorrência de uma guerra, trazendo no colo sua bebê. O marido, também professor, não pôde acompanhá-la por causa dos combates, convocado pelo exército. A hostilização de agentes da fronteira enterra princípios humanitários diante de uma mulher que se deslocou por horas a fio dentro da embarcação e implora pela dignidade de amamentar a criança de colo. Ao pleitear a autorização de permanência em terra estrangeira, depara com o mal manifestado por meio de soluções poéticas que multiplicam os sentidos do travo: o atravancamento do caminho pela frieza burocrática e a amargura diante da mãe e cidadã que não queria virar mais um número estatístico no mundo.

Na terceira parte, certo alívio cômico não ofusca a profunda solidão de uma empregada doméstica que marca encontro com um paquera num parque de diversão, justamente ao lado do barco que é um dos brinquedos do local. Pelas convenções em torno da figura dessa trabalhadora na dramaturgia brasileira; pelo riso agudo recorrente; pelo trejeito de levar um pé na panturrilha de outra perna; e pela interação direta na fala e na disposição de ir ao encontro de uma espectadora, como a firmar sororidade, Peixoto cruza deslimites sem macular o perfil popular da personagem. Esta delineia o peso da repressão sexual herdada da avó, alma calejada de machismo, bem como a ingenuidade do sonho amoroso. Dá a entrever o “ser e não ser” de quem tem consciência dos privilégios da patroa, da sobrevivência ordinária e da “revolução” que a máquina de lavar lhe trouxe ao coabitar casas alheias – também um grau de estrangeiridade e seus conhecidos indícios escravagistas.

Flávia Canavarro A atriz Inês Peixoto no segundo relato de ‘Órfãs de dinheiro’, obra que concebe e escreve inspirada em pesquisa do professor Paulo Moreira acerca de contos literários

Em sua formulação acerca da estrutura concisa, o romancista e crítico argentino Ricardo Piglia (1941-2017) entende que o conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. “Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta”, afirma no livro Forma breve (2000).

O espetáculo dirigido por Eduardo Moreira e narrado por Inês Peixoto é provido de sínteses e fornece campos de leitura férteis à complementação do repertório de vida de quem acompanha. A rigor, essas mulheres navegam por passagens mitológicas ou arquetípicas implícitas na exposição da realidade material. Basicamente, é a falta que as move.

A dramaturgia de Peixoto inspira-se em três capítulos do livro Modernismo localista das Américas: os contos de Faulkner, Guimarães Rosa e Rufo (Editora UFMG, 2012), do pesquisador Paulo Moreira. Respectivamente, oitavo, novo e décimo da primeira parte: Órfãs de dinheiro analisa o conto Wash, do estadunidense William Faulkner (1897-1962); Órfã de dinheiro, outra vez disseca Es que somos muy pobres, do mexicano Juan Rulfo (1917-1986); e Órfã de dinheiro, ainda mais uma vez abarca Esses Lopes, de João Guimarães Rosa.

Em sua investigação acadêmica, Paulo Moreira, professor da Universidade de Yale (EUA), propõe uma antologia imaginária a partir de 15 contos, cinco de cada um desses autores exponenciais do século XX. No recorte de Peixoto, por sua vez, não se trata de adaptação das narrativas curtas, longe disso. A que mais se aproxima da estrutura fabular original é a de Guimarães Rosa, a que abre a noite. Em Esses Lopes, a empobrecida Flausina conta “a história de sua feroz e cuidadosamente camuflada luta contra esses homens”, segundo o pesquisador, “começando como adolescente e terminando, no momento da narrativa, como uma mulher de meia-idade estabelecida”. Lida com “clãs que dominam a política e polícia, usando intimidação e violência contra qualquer contestação aos seus direitos de propriedade e poder político”. Contenda reconhecível no momento político do Brasil.

Supondo que a natureza humana demande amor e reconhecimento ao longo da existência, as mulheres de Órfãs de dinheiro se dispõem a elaborar seus desejos e direitos, mesmo quando isso acontece de maneira inconsciente. São três lutas com qualidade moral. E a ficção confronta fortalezas e prerrogativas patriarcais com relatos unívocos na denúncia e sustentação artística sob absoluta ausência de ansiedade em cena. Pressuposto de quem faz do trabalho continuado no teatro um veículo, também, para iluminar horrores.

Serviço

Órfãs de dinheiro

Quinta a sábado, 21h. De 18 de agosto a 10 de setembro de 2022

Sesc Pinheiros – auditório (Rua Paes Leme, 195, tel. 3095-9400)

R$ 9 a R$ 30

Duração: 50 minutos

Classificação indicativa: 12 anos

98 lugares

Nereu Jr Sob direção de Eduardo Moreira, também integrante do Grupo Galpão (MG), Peixoto interpreta a empregada doméstica na última parte do espetáculo

Ficha técnica

Concepção, texto, figurino, atuação: Inês Peixoto

Direção: Eduardo Moreira

Desenho de luz: Rodrigo Marçal

Projeto e construção da canoa: Taísa Campos

Trilha original, fotos, vídeos e programação visual: Tiago Pereira

Design sonoro: Vinícius Alves

Preparação vocal e assessoria de direção de texto: Babaya

Professor de música: Marcelo Dias

Assessoria de imprensa: Canal Aberto

Produção: Beatriz Radicchi

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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