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Reportagem

Ancestralidade guia Germaine Acogny

25.10.2022  |  por Neomisia Silvestre

Foto de capa: Guto Muniz

“Eu prefiro dançar a falar. Nasci no Benin e cresci no Senegal. Essas duas identidades, das quais sou muito orgulhosa, são a base da minha técnica. Deixei meu país de origem aos 7 anos e, na escola, durante o intervalo, as meninas não falavam a mesma língua que eu. Quando dançava no meio delas, nas brincadeiras infantis, via as árvores dançarem e sugeria movimentos semelhantes. Elas me chamavam de Doff bi [‘louca’, em wolof, língua falada na África Ocidental], mas vinham procurar pela louca que dançava e tentavam me imitar”.

Assim, a bailarina e coreógrafa franco-senegalesa Germaine Acogny, de 78 anos, premiada e conhecida mundialmente como a mãe da dança contemporânea africana, inicia sua fala na conferência “O corpo reflete a natureza”, organizada em 26 de setembro pela associação Psyque & Art, no Columbia Global Centers, em Paris.

De passagem pela capital francesa, Acogny [a pronúncia fica “Aconí”] cumpriu uma agenda intercalada com a breve temporada de seu mais recente trabalho, common ground[s] (terreno comun[s]), duo concebido e interpretado por ela e a bailarina francesa Malou Airaudo, de 74 anos, membro fundadora da companhia alemã Tanztheater Wuppertal; e Le sacre du printemps (A sagração da primavera), recriado por 36 bailarinos e bailarinas de 14 países da África a partir da coreografia homônima de 1975, concebida por Pina Bausch (1940-2009). Trata-se de produção inédita entre a Fundação Pina Bausch (Alemanha), o Sadler’s Wells Theatre (Reino Unido) e a École des Sables (Senegal), um centro internacional de danças tradicionais e contemporâneas inaugurado em 2004 por Acogny e seu esposo, Helmut Vogt, em Toubab Dialaw, uma vila de pescadores a cerca de 50 km de Dakar. Em tempo: os 14 países do continente africano são África do Sul, Benin, Burkina Faso, Cabo Verde, Congo, Costa do Marfim, Gana, Mali, Madagáscar, Moçambique, Nigéria, Senegal, Togo e Quênia.

A coluna vertebral é uma verdadeira árvore da vida, que preenche o corpo com movimentos de oscilação e ondulação do torso. Muitos dos meus movimentos são inspirados no meio ambiente, nos animais e também nos elementos da vida cotidiana africana, que são profundamente ligados à respiração

Germaine Acogny, bailarina e coreógrafa franco-senegalesa

A ideia de um rito africano partiu de Salomon Bausch, filho de Pina e responsável pela fundação, criada em 2009 como forma de preservação do legado da artista, referência na teoria e prática da dança-teatro e da dança moderna alemã. “Salomon me viu dançar Mon élue noire – Sacre #2 (Minha negra escolhida – Sagração #2), em Bruxelas. Um solo elaborado em 2015 especialmente para mim, por Olivier Dubois, à época diretor do Ballets du Nord e do Centre National de Danse de Roubaix. Como a fundação oferecia bolsas para dançarinos do mundo todo, ele percebeu que aqueles vindos da École des Sables [Escola de Areia] eram muito bons e, então, nos propôs o Sacre de Pina”, explica Acogny durante bate-papo no Théâtre de la Ville, após a première francesa do filme Dancing Pina (2022), idealizado e dirigido por Florian Heinzen-Ziob para documentar parte do processo de criação da obra.

A coreógrafa conta que a audição para intérpretes aconteceu em Burkina Faso, Costa do Marfim e Senegal. Entre os 170 candidatos, 38 foram selecionados: 18 mulheres e 20 homens. “O que achei extraordinário no processo foi o encorajamento de uns para com os outros e a escuta com respeito”, acrescenta.

Sob direção artística da bailarina australiana Josephine Ann Endicott, de 72 anos, ex-integrante do Tanztheater Wuppertal, o grupo ensaiou durante seis semanas na École des Sables. Esse espaço de trabalho conforma duas amplas salas: a Aloopho (nome da avó paterna de Acogny), com 400 m² e piso de areia, e a Henriette, com 280 m², piso linóleo e terceira parede aberta, a de fundo. Ambas não possuem espelhos, filosofia que dialoga com a ideia de que a dança começa no interior para o exterior.

Acogny ensina que é por meio do corpo que adquirimos consciência da própria natureza, do que nosso corpo projeta no mundo. Por isso deve haver sempre essa relação-conexão-reflexo.

“Eu não acompanhei todo o processo porque estava em viagem, mas, quando voltei, vi uma primeira versão da montagem e chorei muito. E posso dizer que a dança africana é realmente a base de todas. Essas pessoas nunca fizeram dança clássica. Fizeram suas danças tradicionais, a técnica Acogny e a contemporânea com alguns professores que vieram até a escola. Mas eles se apropriaram da música, da tecnicidade, dessa força e responderam com um trabalho de precisão, de dinamismo e de lirismo”, diz. Uma das exigências para participar das formações e estágios oferecidos pela École des Sables é que o aluno conheça a história e a prática da dança tradicional de sua terra natal.

Maarten Vanden Abeele Cena de ‘Le sacre du printemps’ (‘A sagração da primavera’), obra recriada por 36 bailarinos e bailarinas de 14 países da África a partir da coreografia homônima de 1975, concebida por Pina Bausch; o processo criativo aconteceu na École des Sables, no Senegal, escola idealizada por Germaine Acogny e seu esposo, Helmut Vogt, numa vila de pescadores

Cinco dias antes da estreia em Dakar, prevista para ocupar o Teatro Nacional Daniel Sorano, vieram as medidas de restrição e fechamento de espaços culturais em decorrência da Covid-19. Era 4 de abril de 2020. Das poucas aparições de Acogny em Dancing Pina, consta a passagem tocante em que anuncia à equipe o cancelamento da apresentação e o adiamento da turnê internacional, citando um provérbio em wolof: “O suor que vai para a terra não se perde”.

Em resposta à situação, Salomon Bausch sugeriu que o coletivo dançasse na praia de Toubab Dialaw, durante o crepúsculo, para a captura de um último ensaio antes do confinamento. O registro espontâneo de 39 minutos, feito pela equipe de Heinzen-Ziob, posteriormente se tornou Dancing at duskA moment with Pina Bausch’s The rite of spring (Dançando ao entardecer – Um momento com A sagração da primavera de Pina Bausch), disponibilizado em junho daquele ano na plataforma Vimeo, em versão paga. Agora, pode ser visto gratuitamente no site da fundação (link abaixo).

Apenas no segundo semestre de 2021 o duplo projeto celebrou a estreia mundial no Teatros del Canal, em Madri. Da Espanha, a turnê seguiu para Dinamarca, Áustria, Luxemburgo e Austrália. Um ano depois, em Paris, com ingressos a 40 euros [cerca de R$ 205], esgotados desde o início das vendas, as apresentações ocorreram entre 19 e 30 de setembro no Espaço Chapiteaux, no Parc de la Villette, um complexo cultural de 550.000 m² que conjuga cultura e biodiversidade em um espaço urbano.

No enredo de Frühlingsopfer [A sagração da primavera, em alemão], uma jovem é escolhida para ser entregue como oferenda a uma divindade em troca de uma colheita proveitosa. Composto no início do século XX pelo pianista e maestro russo Igor Stravinsky (1882-1971) e originalmente coreografado pelo bailarino ucraniano Vaslav Nijinsky (1889-1950), o balé russo dirigido pelo empresário artístico Serguei Diaghilev (1872-1929) estreou em maio de 1913, no Teatro do Champs-Élysées. “Vi em minha imaginação o espetáculo de um grande rito sagrado pagão: os velhos sábios, sentados em círculo, assistindo à dança da morte de uma jovem, a quem sacrificaram para tornar o deus da primavera favorável a eles”, escreve o próprio compositor em uma de suas crônicas.

“Hoje, a transmissão aos 36 dançarinos escolhidos para formar uma comunidade calhou com o momento em que as tensões no mundo não apenas se agravam e voltam a pôr em causa os equilíbrios à escala global, como também toda a humanidade vive sob a ameaça das mudanças climáticas. A nova interpretação acerta porque restabelece o vínculo entre o humano e a terra, ponto de partida da obra em 1910. E sua mensagem é sem apelo: sem retorno às fontes, não há modernidade sustentável”, anota o jornalista suíço e crítico de dança Thomas Hahn, no programa do espetáculo.

“Diante da Sagração, Germaine Acogny diz, como testemunha, sentir na composição um espírito africano. Ou seja, um toque universal que vai muito além da ideia original, ancorada em uma Rússia mítica. (…) Em um gesto artístico espetacular e icônico, Rolf Borzik [cenógrafo e figurinista do Tanztheater Wuppertal] cobre o chão com turfa [material de origem vegetal, parcialmente decomposto, geralmente encontrado em regiões pantanosas e/ou sob montanhas], onde mulheres e homens se lançam de corpo e alma em uma exploração de suas relações que não exclui certos solavancos, turbilhões ou tremores, entre angústia, atração erótica e violência”, pontua Hahn.

Ao longo de uma trajetória artística de mais de cinco décadas, Acogny criou e desenvolveu sua própria prática de dança moderna africana, a técnica Acogny, que aporta valores em diálogo constante com a natureza. Segundo ela, os princípios estão mais para a dança contemporânea do que a tradicional. E não se trata de uma dança espontânea, de improvisação, como as tradicionais populares vindas de África. Mas que, quando aplicada, ajuda a emergir novas formas também de tradição. “A coluna vertebral é uma verdadeira árvore da vida, que preenche o corpo com movimentos de oscilação e ondulação do torso. Muitos dos meus movimentos são inspirados no meio ambiente, nos animais e também nos elementos da vida cotidiana africana, que são profundamente ligados à respiração”, explica.

Um compilado demonstrativo e explicativo da técnica foi minuciosamente reunido por ela na publicação trilíngue – francês, alemão e inglês – Danse africaine / Afrikanischer tanz / African dance, que saiu em 1980 pela Les Nouvelles Éditions Africaines e reeditada em 1994 pela Weingarten. Ambas edições esgotadas, mas com exemplar disponível para consulta na Biblioteca Nacional da França, em Paris.

Reprodução A publicação trilíngue ‘Danse africaine / Afrikanischer tanz / African dance’ saiu em 1980 pela Les Nouvelles Éditions Africaines e foi reeditada em 1994 pela Weingarten, com registro de bailarinos em preto e branco pelo fotógrafo alemão Franz Christian Gundlach
Acervo de Acogny Ao lado do coreógrafo francês Maurice Béjart e do escritor senegalês Léopold Ségar Senghor, ex-presidente da República, na implantação da escola Mudra-Afrique na década de 1970

Com registro de bailarinos em preto e branco feitos pelo fotógrafo alemão Franz Christian Gundlach (1926-2021), a obra ilustra a metodologia aplicada por meio de imagens-símbolos que designam figuras como a planta aquática nenúfar (ou ninfeias), a chuva, a galinha-d’angola, a águia, a boneca Ashanti e a árvore kapokier, ou le fromager, de raiz profunda e tronco espinhoso que, para Acogny, sustenta o pensamento de que o bailarino precisa estar enraizado na própria cultura, ainda que aprenda e receba influências de outros lugares do mundo. A partir de tais analogias, surgem os movimentos-base como o tremor, a contração, a ondulação, a flexão, a torção e a rotação, ao passo que também ressignificam as ações de enrolar, desenrolar, abaixar, bater palmas e pés, jogar braços e levantar pulsos.

De capa dura, a publicação com 112 páginas introduz o leitor a algumas das danças tradicionais a partir das pesquisas, vivências e referências ancestrais da autora, como o capítulo dedicado à avó, Aloopho, mãe de Togoun Servais Acogny, nascido em 1923. Nigeriana, foi uma sacerdotisa iorubá praticante do culto animista, ideia de que todas as pessoas, animais, características geográficas, fenômenos naturais e objetos inanimados possuem um espírito que os conecta. Dedicava-se à iniciação de jovens em rituais de dança com e para divindades.

“Quando nasci, no dia de Pentecostes do ano de 1944, meu pai me disse que uma pomba veio pousar na janela do meu quarto, e lá voltou todos os dias até eu completar um ano. Depois, desapareceu. Me apelidaram de Iya Tunde, ‘a mãe voltou’, na língua iorubá. Minha avó havia morrido quatro anos antes. Sua divindade tutelar era simbolizada por uma pomba. Eu sou, em outras palavras, sua reencarnação, e tive que revelar, pelo menos em parte, seus traços característicos”, escreve Acogny no capítulo Minha história.

Os prefácios são assinados pelo dançarino e coreógrafo francês Maurice Béjart (1927-2007) e pelo poeta e escritor senegalês Léopold Ségar Senghor (1906-2001), presidente da República do Senegal entre 1960 e 1980, período que marca a independência do país, colonizado pela França entre 1898-1958.

“O que é característico e, portanto, significativo no vocabulário de madame Acogny é que, onde os coreógrafos clássicos usam a palavra ‘passo’, no sentido derivado e técnico para designar uma figura de dança, ela usa a palavra ‘movimento’, que, no sentido original, significa uma mudança de posição no espaço em função do tempo em relação a um sistema de referência. Ao usar a palavra passo, os europeus fazem da dança um jogo de abstração para retirar o homem da terra e projetá-lo ao céu. Ao preferir a palavra movimento, Acogny enfatiza o valor simbólico da figura da dança e a aderência do bailarino ao solo, à Mãe Terra, que lhe concede uma alma”, elabora Senghor em trecho de O novo balé negro-africano.

Importante mediador cultural durante seu governo, é dele a iniciativa de criação da escola pan-africana de dança moderna, clássica e africana Mudra-Afrique, em 1977. Em parceria com Béjart, idealizador do Centro de Aperfeiçoamento e Pesquisa de Intérpretes Mudra-Bruxelas (1970-1988), a direção artística da unidade Dakar foi confiada à Acogny, que se referia ao projeto como ‘a floresta sagrada dos tempos modernos’.

Inicialmente apoiada pela Unesco e pela fundação portuguesa Calouste Gulbenkian, Mudra-Afrique encerrou as atividades em 1982 por falta de subsídio financeiro; ocasião em que a coreógrafa passou a trabalhar na Companhia Maurice Béjart, na Bélgica, onde organizou workshops internacionais de dança africana, obtendo boa recepção entre os estudantes europeus. Em 1985, ano de seu casamento com o alemão Helmut Vogt, inaugura em Toulouse, sudoeste da França, o Studio École Ballet Théâtre du Troisième Monde, um centro de intercâmbio entre África e Europa.

De formação em educação física e ginástica harmônica/rítmica pela parisiense École Simon Siegel, torna-se uma das primeiras mulheres a ministrar a disciplina em seu país. Na biografia Germaine Acogny – Dançar a humanidade (Les Editions Vives Voix, 2018), da jornalista e documentarista Laure Malecot, a coreógrafa conta que começou a dar aulas apenas batendo palmas: “Eu achava que aulas de educação física sem dança, gesto sem música, não tinham sentido. Então, introduzi o batuque e ensinei danças tradicionais de Casamansa [região ao sul de Gâmbia e ao norte de Guiné-Bissau, cortada pelo rio de mesmo nome]. Assim, comecei a trabalhar o gesto e sua extensão. A dança não é apenas um esporte completo, é também o virtuosismo do corpo, do gesto, da harmonia. E eu realmente queria combinar tudo isso”.

Maarten Vanden Abeele Germaine Acogny e Malou Airaudo contemplam suas vidas como mulheres septuagenárias, mães e artistas no duo ‘common ground[s]’ (‘terreno comun[s]’), obra de 2019
Maarten Vanden Abeele Acogny e Airaudo iniciaram colaboração em novembro de 2019, na École des Sables, continuada em fevereiro de 2020 na Alemanha e também com ensaios no Sadler’s Wells Theatre, em Londres, onde foi desenvolvido o conceito de iluminação para a coreografia

Também estudou dança clássica e a técnica moderna da coreógrafa estadunidense Martha Graham (1894-1991), com quem realizou cursos; além dos bailarinos José Limón (1908-1972) e Alvin Ailey (1931-1989), fundador do Alvin Ailey American Dance Theater, em Nova Iorque.

Aos 24 anos, abriu o próprio estúdio de dança em Dakar; momento em que estava divorciada do primeiro marido, Louis Magloire De Souza, e com os filhos pequenos Patrick Acogny, hoje bailarino e coreógrafo da Companhia Jant-Bi, criada em 2010 na École des Sables; e Ghyslaine De Souza, tradutora na Organização das Nações Unidas (ONU).

Em 1972 veio o primeiro solo, Femme noire, inspirado no poema Femme nue, femme noire (Mulher nua, mulher negra), da primeira coleção de poemas escritos por Sédar Senghor. Publicado em 1948, os versos integram o movimento Negritude, conceito que pretendia representar a identidade negra e sua cultura, do qual foi ideólogo, junto ao poeta e escritor martinicano Aimé Césaire (1913-2008).

“Quando vi o poema num caderno escolar, não sabia de quem era a autoria, mas tive a impressão de que ele tinha sido feito para mim. Gostei porque tinha acabado de me separar e meu ex-marido, mestiço, dizia que eu era uma negra de lábios grossos e de cabelo crespo. Um amigo jornalista de rádio, surpreso por eu não conhecer o autor, me disse quem era. E me dei conta de que não conhecia a literatura africana. Conhecia Victor Hugo, mas não Senghor. Quis interpretar este poema porque queria, em primeiro lugar, me curar, mas também homenagear um poeta senegalês. Então, escrevi ao presidente e pedi autorização para dançá-lo. Ele, gentilmente, me respondeu que sim”, diz a biografada.

Após anos se dedicando ao ensino e desenvolvimento da técnica Acogny, apenas em 1987 a artista retorna aos palcos com o solo Sahel, criado a partir de um videoclipe com o cantor e compositor inglês Peter Gabriel. No ano seguinte, veio Ye’ou (O despertar, em wolof), laureado com o London Contemporary Dance and Performance Award, em 1991. Posteriormente, atuou em Afrique, ce corps memorables (1989), baseado em escritos de Senghor; e Yewa, eau sublime (1994), coreografia para sete dançarinos e quatro músicos com estreia na edição Mama África, da 6ª Bienal de Dança de Lyon.

Em 1995 foi convidada pela coreógrafa e professora Ivonice Satie (1950-2008), à época, diretora artística do Balé da Cidade de São Paulo, para assumir a criação de Z, em homenagem ao líder quilombola alagoano Zumbi dos Palmares (1655-1695), por ocasião dos 300 anos de sua morte.

Com colaboração dos músicos Carlinhos Brown e Rodolfo Stroeter, responsável pela direção musical do espetáculo, a trilha original foi composta por Gilberto Gil a partir de um roteiro de Acogny. “Eram 15 bailarinos. Escolhi um negro retinto, um mestiço e um branco para que os três representassem Zumbi. Quando vi o resultado, chorei, porque era como se o mundo inteiro dançasse. Foi realmente uma libertação de corpos. Essa companhia já realizou criações extraordinárias, mas nunca sobre a África. Com frequência, pensamos sempre que o continente não acrescenta muita coisa, mas foi a primeira vez que um negro africano retinto aportou algo naquele Balé”, rememora.

Durante a conferência mencionada no início do texto, esta repórter a questionou sobre a experiência vivida no país, se havia encontrado semelhanças entre Brasil e África, ou mesmo paradoxos e/ou contradições, uma vez que não são corpos negros que estão a ocupar as salas de espetáculos – público e artistas –, espaços ditos de “dança profissional”.

Acogny responde que, nas ruas, quando via o corpo de pessoas negras, tinha sempre a impressão de que ainda estavam tentando se libertar do que foi o processo de escravidão. Era como se ainda não estivessem livres. Ela diz que, de imediato, conseguia distinguir um africano de um brasileiro. “Eu não nego nenhuma identidade, pelo contrário, tenho orgulho: sou beninense, senegalesa, francesa, alemã. E acho que devemos ter orgulho de nossas identidades. No Brasil, havia esse problema, e ainda há. Mas é preciso descobrir e ter orgulho de suas identidades negras e indígenas. E quando dei curso em favelas, foi muito emocionante para mim, sobretudo por fazê-los acessar a liberdade de acreditar em suas negritudes e de se permitirem orgulhosos por serem negros.”

A produção estreou gratuitamente no Parque Ibirapuera, às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra daquele ano.

Em junho de 2004, a coreógrafa retornou ao Brasil com Fagaala, uma fusão do butô japonês com danças africanas tradicionais e contemporâneas, baseado no livro Murambi, do escritor, jornalista e roteirista senegalês Boubacar Boris Diop, de 75 anos, sobre o genocídio de Ruanda em 1994. Apresentado no teatro do Sesc Vila Mariana, o trabalho teve parceria do coreógrafo japonês Kota Yamazaki, de 63 anos. Em 2007, os criadores da obra receberam o prêmio Bessie – New York Dance and Performance Award.

Maarten Vanden Abeele A formação na senegalesa École des Sables: “Se a criação da dança africana é aberta a todos, pode ser ensinada, aprendida por todos. O aluno não-africano expande seu universo aprendendo nosso método, nossos movimentos, como o aluno africano aprendeu os passos da dança clássica e moderna”, diz Acogny em trecho do livro ‘Danse africaine / Afrikanischer tanz / African dance’

Ocasião em que a artista também foi convidada da primeira edição do Fórum Cultural Mundial, em São Paulo, quando Gil era ministro da Cultura do governo Lula (2003-2011). Uma conferência de dimensão global que pretendia firmar o papel da cultura no desenvolvimento da economia, na criação de novos parâmetros educacionais e no cultivo da diversidade, a fim de ampliar o compromisso de políticas nacionais e internacionais e prospectar investimentos no setor.

Em 2011, levou à Bienal Sesc de Dança, em Santos, o solo Songook yaakaar (Enfrentar a esperança, em wolof), em que abordava a cultura africana por meio da “relação de brincadeira”, um costume da África Ocidental que consiste em zombar dos outros e de si mesmo.

Três anos depois, no Sesc Palladium, em Belo Horizonte, e no Teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros, em São Paulo, apresentou Afro-Dites (2012), coreografado por ela e o filho Patrick para a Companhia Jant-Bi Jigeen, formada por nove dançarinas senegalesas, selecionadas entre 26 jovens da École des Sables.

Este importante polo profissional de ensino teórico e prático, em nível de diploma, e espaço de encontros e intercâmbios, conferências e residências artísticas para bailarinos e bailarinas de todo o mundo é fruto de um sonho que começou a tomar forma em 1998 e só seis anos depois assumiu a infraestrutura atual: 24 bangalôs para acomodação dos residentes, restaurante, cozinha, escritórios e uma sala de conferências distribuídos por 45.000 m² de terreno, cuja arquitetura é adaptada em respeito ao meio ambiente.

“O movimento artístico em que inscrevo o meu próprio trabalho, embora enraizado nas nossas tradições populares, não é um regresso às nossas raízes. Pelo contrário, é um caminho muito diferente, decididamente urbano e moderno, que reflete o contexto em que África vive hoje, a África dos edifícios, a África das grandes contradições internacionais. Não queremos subjugar, reduzir a dança negra. Queremos apenas que ela se imponha pelo seu próprio carácter na civilização moderna e que tome o seu devido lugar”, já sublinhava Acogny nos 1980 em trecho do livro Danse africaine / Afrikanischer tanz / African dance.

Das premiações e reconhecimentos, carrega o título de Cavaleira da Ordem Nacional do Leão e Oficial de Artes e Letras do Senegal. Em 2021 recebeu o Leão de Ouro, distinção atribuída pela Bienal de Veneza pelo conjunto de sua obra. Em junho, o Grande Prêmio SACD – Société des Auteurs et Compositeurs Dramatiques, do Ministério da Cultura da França que, anualmente, distingue artistas – novos ou confirmados talentos – em teatro, cinema, dança, animação, televisão, música, criação digital, artes circenses e artes de rua.

Por meio de sua vocação intercultural, educativa e artística – talvez aquela mesma da infância, que serviu de deboche a quem a considerava Doff bi –, Acogny continua a colaborar com escolas e centros de dança internacionais e regularmente concede master classes. Quando a questionam sobre sua aposentadoria, ela responde, sorrindo:

“Que aposentadoria? Você quer que eu seja como um carro velho, parado e enferrujado? Eu tenho prazer em dançar. E o tempo que meu corpo permitir que eu dance, vou dançar. Nem sempre é fácil. Acordo e sinto dores, mas faço meus exercícios e reencontro meu corpo. Eu adoro comer e experimentar a comida típica de cada lugar que visito. Eu bebo meu vinho, meu whisky, mas sou extremamente disciplinada. Quando estou no Senegal, me levanto cedo e caminho à beira-mar, sinto a energia à minha volta. Quando não estou na minha casa, caminho nos parques, encontro as pessoas, as árvores. Eu amo a vida”.

Guto Muniz Acogny no solo ‘Songook yaakaar’ (‘Enfrentar a esperança’), em apresentação durante a edição de 2011 da Bienal Sesc de Dança, em Santos (SP)

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Assista ao documentário Dancing at dusk – A moment with Pina Bausch’s The rite of spring (Dançando ao entardecer – Um momento com A sagração da primavera de Pina Bausch.

www.pinabausch.org

www.sadlerswells.com

www.ecoledessables.org

Ficha técnica

common ground[s] / terreno comun[s]

Coreografia e interpretação: Germaine Acogny e Malou Airaudo

Composição musical: Fabrice Bouillon Laforest

Figurinos: Petra Leidner

Iluminação: Zeynep Kepekli

Dramaturgia: Sophiatou Kossoko

Músicos: Adam Davis, Alejandro Vega Sierra, Alexandru-Adrian Semeniuc, Ana Catarina Pimentel Rodrigues, Ana Maria Sandu, Carlota Margarida Ramos, Fabrice Bouillon Laforest, Mariana Silva Taipa, Nicolas Lopez, Wei-Chueh Chen e Werner Dickel

Técnico de som: Christophe Sapp

Le sacre du printemps / A sagração da primavera

Coreografia: Pina Bausch

Música: Igor Stravinsky

Com: Amadou Lamine Sow, Amy Collé Seck, Anique Ayiboe, Aoufice Junior Gouri, Asanda Ruda, Astou Diop, Aziz Zoundi, Babacar Mané, Bazoumana Kouyaté, Brian Otieno Oloo, Carmelita Siwa, D’Aquin Evrard Élisée Bekoin, Didja Kady Tiemanta, Estelle Foli, Florent Nikiéma, Franne Christie Dossou, Gloria Ugwarelojo Biachi, Gueassa Eva Sibi, Harivola Rakotondrasoa, Inas Dasylva, Khadija Cisse, Luciény Kaabral, Oliva Randrianasolo (Nanie), Pacôme Landry Seka, Profit Lucky, Rodolphe Allui, Rokhaya Coulibaly, Sahadatou Ami Touré, Serge Arthur Dodo, Shelly Ohene-Nyako, Sonia Zandile Constable, Stéphanie Mwamba, Vasco Pedro Mirine e Zadi Landry Kipre

Cenografia e figurinos: Rolf Borzik

Colaboração: Hans Pop

Direção artística: Clémentine Deluy, Josephine Ann Endicott e Jorge Puerta Armenta

Direção de ensaios: Barbara Kaufmann, Çagdas Ermis, Ditta Miranda Jasjfi, Julie Shanahan e Kenji Takagi

Produção: Pina Bausch Foundation, Sadler’s Wells e École des Sables

Jornalista e escritora brasileira radicada na França, tem contribuições em projetos artísticos e socioculturais a partir de atuações em ONGs, revistas, rádio, televisão, fotografia, assessoria de imprensa e produçāo de eventos. É autora da biografia Esumbaú, Pombas Urbanas! 20 anos de uma prática de teatro e vida (2009) e uma das criadoras do Orgulho Crespo, movimento independente de valorização do cabelo afro iniciado em 2015 com a 1ª Marcha do Orgulho Crespo SP. A iniciativa integra o calendário oficial do Estado de São Paulo com o #DiaDoOrgulhoCrespo, celebrado todo 26 de julho por meio da Lei 16.682/2018.

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