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Crítica

Coabitar sentidos do teatro

10.3.2023  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Rebeca Figueiredo/Sesc Pompeia

Quando a arte olha no fundo dos próprios olhos enquanto procedimento criativo ela pode incorrer em risco de abraçar a autoimagem, afogando-se, como no mito de Narciso. Não é incomum o recurso de metalinguagem virar presa dele mesmo nas teias dos aspectos formais. Sentimento diverso do constatado em Banco dos sonhos, espetáculo-lago da Velha Companhia. Seu grau de experimentação carrega lírios e desassossegos por leitos e margens do teatro e da sociedade. Com a proeza de dar centralidade ao público instado a navegar por uma narrativa e reconstituir, consigo, a consciência de uma personagem, uma grande atriz, em aparente desagregação.

A fim de proporcionar essa deriva, a companhia de São Paulo, que comemora 30 anos, presta diligente homenagem a duas dramaturgias. Uma de caráter universal, A gaivota, do russo Anton Tchékhov (1860-1904), definida pelo autor como uma comédia, e outra brasileira, Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), segundo o mesmo uma tragédia.

No texto de Kiko Marques, que diz adotar como gênero o realismo onírico, o atropelamento de Alaíde por um automóvel e o desenrolar da história em plano tripartido (alucinação, memória e realidade cotidiana) é percebido na montagem como filigrana. O onirismo transborda sob o domínio gingado desse artista, também ator e diretor, em transmudamento com a prática da escrita para a cena desde pelo menos CAIS ou Da indiferença das embarcações (2012), dispondo ficção adubada por memórias biográficas ungidas às nacionais.

Em ‘Banco dos sonhos’, o público é engendrado pela narrativa a vivenciar a condição de coabitar esses mundos – o teatro dentro do teatro e a realidade lá fora. E, ao final da apresentação, a levar consigo mais inquietudes do que suspeitava a respeito dos torpores da financeirização da vida

A arquitetura rodriguiana torna-se, assim, uma referencialidade sutil à medida que fluem os fragmentos relativos à vida de Benedita, a protagonista. Abandonada na infância, logo aos 7 anos ela se vê “invadindo” um teatro, um barracão, e termina adotada pela dona, Gerusa, personagem que pode ser lida como uma atriz travesti ou transexual. Isso é só o ponto de partida, o que tampouco significa concessão à linearidade de tempo e espaço na encruzilhada de histórias.

Já a irrupção tchekhoviana se dá de modo mais delineado na passagem em que Benedita, então com 9 anos, interpreta Nina, a jovem atriz de A gaivota, na cena final em que reencontra sua paixão, o escritor Treplev, de quem estava separada havia dois anos. Fica evidente os desnível das trajetórias em termos de disposição de ânimo. Nina se diz outra pessoa. “Atuo com prazer e paixão. E quando estou no palco, uma embriaguez se apodera de mim e eu me sinto bela. Agora eu sei que em nosso trabalho o que importa não é a glória, o brilho, a realização dos sonhos, mas sim saber sofrer, saber carregar a cruz e ter fé. Eu tenho fé. Já não sofro, e quando penso em minha vocação, não temo a vida”.

Quando a fala surge na voz da atriz Alejandra Sampaio, que modula a enunciação da Benedita criança com a dignidade da mulher adulta salvaguardada pela cultura teatral – os estágios da vida são revezados noite adentro –, o texto europeu de 1896 soa urdido à realidade social do país de Pixote.

Rebeca Figueiredo/Sesc Pompeia A partir da esquerda, na cena do atropelamento, as atrizes Alejandra Sampaio (Benedita), Virgínia Buckowski (Enoc) e Marília Santos (Gerusa/Anna) em ‘Banco dos sonhos’, marco dos 30 anos da Velha Companhia (SP)

Marques rejeita o sentimentalismo extremo e se propõe a verificar como a arte pode ser inspiradora em níveis pessoais ou mesmo no destino de uma nação. É como se assinasse embaixo o ensaio Teatro, do poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca (1898-1936), numa das mais apropriadas defesas dessa arte para a humanidade, em que se lê:

“Um povo que não ajuda e não fomenta o seu teatro, se não está morto está moribundo; como o teatro que não colhe a pulsação social, a pulsação histórica, o drama de suas gentes e a cor genuína de sua paisagem e de seu espírito, com riso ou com lágrimas, não tem o direito de chamar-se teatro. Não me refiro a ninguém nem quero machucar ninguém; não falo da realidade viva, mas sim do problema levantado sem solução”.

Em Banco dos sonhos, o público é engendrado pela narrativa a vivenciar a condição de coabitar esses mundos – o teatro dentro do teatro e a realidade lá fora. E, ao final da apresentação, a levar consigo mais inquietudes do que suspeitava a respeito dos torpores da financeirização da vida.

A incongruência do título é um dos primeiros sinais contra-hegemônicos. A crítica aos lucros exorbitantes dos bancos e empreendimentos imobiliários acontece em modo satírico. O sistema de cobrança e de assédio a deficitários e superavitários, respectivamente – a predação capitalista turbinada –, aos poucos é subversivamente desconstruído. O que vem à tona são a capacidade de invenção artística, o exercício de sororidade e de busca de superação, a exemplo de outra personagem, também de nome Gerusa, uma entregadora por delivery, sobre quem se saberá mais adiante. Ela, a outra Gerusa, Benedita, Nina, Alaíde… Essa é uma peça, aliás, sobre mulheridades. A ausência paterna é uma constante e há mães-solo no pedaço.

Como miolo de enredo que se dá pelas bordas e transversais, uma criança vive na rua e passa a “morar” na caixa de fios de um barracão teatral, em meio a cenários. Inicialmente escondida, a menina limpa o palco toda noite com o seu vestido. Não demora a escolher atuar como o futuro que sonha para si. Benedita quer fazer o curso de iniciação que Gerusa (atuação de Mateus Matilde Menezes) ministra no lugar pelo qual é responsável. A atriz promete que sim, mas só quando ela for para a escola e aprender a ler e a escrever.

Esperta, dois anos depois Benedita já está encarando Tchékhov – uma vez que no teatro tudo pode, como numa brincadeira. Até os 13 anos, a convivência com a atriz disciplinada lhe assentará na alma o trabalho com arte. Até Gerusa-eixo desaparecer, ela que, após as sessões, gostava de se montar e sair para jantar e passear com amigas e amigos, sobretudo gente do teatro. Uma ausência que pode ser sentida como mais um número na estatística da violência contra a população travesti e transexual.

Rebeca Figueiredo/Sesc Pompeia Alejandra Sampaio (Benedita), à esquerda, e Mateus Matilde Menezes (Gerusa) na passagem em que pela primeira vez a criança celebra seu aniversário

Gerusa gostava de “namorar a cidade que sonha”, como confidencia à Benedita. É a mesma São Paulo insone sugerida como o território de fundo no imaginário do texto. Espaço urbano no qual a adolescente crescerá e vingará como profissional da arte e como cidadã ciente de seus direitos.

Benedita já é uma atriz admirada quando atropelada, acontecimento livre de qualquer contextualização, assim como Alaíde o foi em Vestido de Noiva. Sua existência multifacetada é pontuada em flashback, mas nem tanto, numa rede de conexões que dizem sobre si e o universo ao redor. Ainda deitada no asfalto, ela se vê surpreendentemente abordada por uma credora do tal banco do título, com discurso de propaganda financeira, linhas de crédito para lá, juros para cá, atrás de débitos quanto aos sonhos que a atriz teve do nascimento até o último sono grávido de imagens, pensamentos ou fantasias apresentados à mente.

No ir e vir de situações absurdas, próximas de uma comicidade popular, Benedita rememora encontros especiais, como aquele com a entregadora Gerusa, a quem logo pede para chamar de Anna, “com dois enes”, palíndromo que contornaria a lembrança do nome que prefere preservar com carinho referente à saudosa atriz que adotou por mãe (e pai). Autodeclarando-se “louca”, adjetivo que outras pessoas lhe impingiram por atos ou palavras que tenha lançado, a atriz adota – mais uma vez o verbo – Anna como motorista e salva-vidas. E Anna, que já a conhecia de novelas bíblicas na televisão e circula pela cidade em uma bicicleta azul-clara, assume a missão com a mesma fé e entusiasmo na capacidade de melhorar de vida, assim como a de seu filho e da sua mãe, com quem mora no topo da cidade, leia-se morro.

Banco dos sonhos talvez fosse uma boa corruptela para o Banco imobiliário, já que sua dramaturgia também suscita que estamos diante de um jogo de tabuleiro, em que entradas e saídas são deslizantes, como os diálogos e os nichos, digamos, dramáticos. Assim sucedem a abordagem da corretora Rúbia (atuação de Maristela Chelala), convencendo Benedita, que conheceu a rua na infância, a comprar apartamento de quatro quartos numa cobertura. O Saxofonista Solitário (Valmir Sant’Anna), cujo impulso suicida foi interrompido por uma prodigiosa cena tributária da natureza dos sonhos: Marylin Monroe pedalando uma bike e levando na garupa Maria, mãe de Jesus, numa pista sob um viaduto.

Já as conversas com a funcionária da instituição financeira incumbida da cobrança, Enoc (atuação de Virgínia Buckowski), e de seu patrão, o gerente Elton (Marques), furam os clichês do corporativismo e também vão revelando outras camadas de atípicos credores de sonhos.

Em seu permanente estado de obra aberta, o espetáculo preza o alicerce do elogio à cultura do teatro. A sequência em que Benedita descobre Gerusa e, a partir dela, a essência dessa arte que requer verdadeira entrega, a cada apresentação ou performance, como bem acentuado pela personagem Nina, é como uma pérola dentro da encenação: a menor boneca russa no tradicional brinquedo matrioska, de maneira que faz a inversão de escala nos desencaixes.

Rebeca Figueiredo/Sesc Pompeia Marília Santos (Gerusa), à esquerda, e Alejandra Sampaio (Benedita) são lidas como Marylin Monroe e Maria, mãe de Jesus, na imagem que interrompe o suicídio do Saxofonista Solitário

A Velha Companhia concebe atmosferas de celebração e de melancolia à Chaplin ou Fellini, com seres para os quais ser ou não ser não é a questão. Paisagens coloridas e sonoras para “certezas sem chão”, num espaço cênico em que colchões de casais ou solteiros estão dispostos no tablado e aludem a astronautas caminhando nas nuvens quando artistas pisam sobre eles.

Nessas flutuações, as estampas nos tecidos de colchão e figurinos são esmaecidas. A vivacidade das cores da obra repousa mesmo em sua disposição inclusiva. A saber – e de volta ao começo acerca de metalinguagem –, o Dramaturgo é um personagem em cena, posto que Benedita mora no sonho dele, e este “precisa sempre convencê-la a estar aqui”, no palco. Já o público, enquanto signo, é sublinhado numa espectadora em princípio oculta, representada por um foco de luz que “caminha” para a porta de saída lateral do teatro lá pela metade da sessão. “Volte sempre”, exclama um funcionário do Sesc Pompeia, fazendo às vezes de ator e dando brecha para o real. Aquela espectadora dita solitária, que pleiteava “uma palavra verdadeira”, pois nada do que encontrava correspondia à verdade naqueles tempos (que também são os nossos), por isso saía no meio das apresentações, desencantada, bem, aquela espectadora finalmente ouve essa palavra inaudita no encontro final e íntimo com Benedita, numa solução pictórica de contraplano digna de levar ao pranto.

Serviço:

Banco dos sonhos

Quinta a sábado, 21h, e domingo, 18h. De 2/3 a 2/4/2023

R$ 12 a R$ 40

Teatro do Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Água Branca, tel. 11 3871-7700)

14 anos

80 minutos

Rebeca Figueiredo/Sesc Pompeia Cena final com Alejandra Sampaio e Mateus Matilde Menezes, destinada à espectadora solitária ávida “por uma palavra verdadeira”

Ficha técnica:

Idealização: Velha Companhia

Texto e direção: Kiko Marques

Com: Alejandra Sampaio (Benedita), Virgínia Buckowski (Enoc), Maristela Chelala (Rúbia), Valmir Sant’Anna (O Autor e O Saxofonista Solitário), Mateus Matilde Menezes (Joel/Gerusa), Marília Santos (Gerusa/Anna) e Kiko Marques (Elton)

Direção de produção: Virgínia Buckowski e Alejandra Sampaio

Desenho de luz: Marisa Bentivegna

Figurino: João Pimenta

Cenário: João Pimenta e Kiko Marques

Trilha sonora original: Bruno Menegatti

Videografismo e videomapping: Um Cafofo / André Grynwask

Assistência de direção e produção: Fábio Mráz

Provocação cênica: Maria Fernanda Vomero

Analista junguiana: Mariana Laham Bruzzone

Assessoria de imprensa: Morente Forte

Ação formativa de público: Plínio Meirelles

Operadora de luz: Adriana Dham

Operador de som: Caçula Rodrigues

Gravação, mixagem e masterização: Estúdio P4Rei/ Luiz Claudio Sousa

Músicos em estúdio: Bruno Menegatti, Gustavo Boni, Gustavo Sarzi, Guegué Medeiros e Luiz Claudio Sousa

Designer gráfico: Fabricio Santos

Fotografia: Ênio Cesar

Designer de peruca: Paulette Pink Libras: Elaine Sampaio e Fabiano Campos

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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