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Artigo

O paradoxo de Suzano

Prefeitura x Contadores de Mentira

28.7.2023  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Cleiton Pereira

Na 25ª cidade mais populosa do Estado de São Paulo, 307 mil habitantes no Censo de 2022, um teatro multiúso construído majoritariamente pelas mãos e recursos de seus artistas a partir de um projeto arquitetônico incomum, modulado por contêineres, em terreno vizinho a uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e a uma escola estadual, encontra-se ameaçado de desmonte após quase quatro anos de atividades, inclusive no atravessamento da pandemia.

Ocorre que nas últimas semanas azedou de forma paradoxal uma ousada iniciativa pública de cessão de área que uniu Prefeitura de Suzano e Grupo Contadores de Mentira – artistas idealizadores e administradores do teatro de mesmo nome no Parque Maria Helena, zona norte, a cerca de 10 minutos andando da estação de trem local. O coletivo atuante há 28 anos, mais de um terço dos 74 anos do município da região metropolitana, está na iminência de ter sua casa desfeita e ser forçado a abandonar a cidade natal.

Para resumir a linha de tempo, gestão municipal e grupo iniciaram conversas em 2017. Naquele ano, tratativas do processo administrativo número 15.998 culminaram com o decreto 9.223, de 1º de agosto de 2018, que permitiu o uso de bem público à Associação de Cultura e Cidadania Contadores de Mentira, sua representação jurídica desde 2010.

Salvo engano, foi em 2007, enquanto jornalista dedicado à cobertura de teatro, que conheci o ator, diretor e gestor cultural Cleiton Pereira, cofundador do Grupo Contadores de Mentira, e o então secretário de Cultura, Walmir Pinto. Ambos se empenhavam em pensar e organizar a Mostra de Referências Teatrais de Suzano, que estava na terceira edição e consolidou-se no calendário. Nesse contexto, participei de um debate paralelo à programação de espetáculos e performances. A curadoria meditava pela prática e cultura do teatro de grupo em toda a sua diversidade de linguagens. Essa memória choca-se com a realidade de 2023, quando os mesmos ‘personagens’ se digladiam na arena pública e o equipamento-sede erguido por meio de contêineres pode sair da comunidade

O prefeito Rodrigo Ashiuchi (PL) e o secretário de Assuntos Jurídicos, Renato Swensson Neto, assinaram a outorga de uma área de 951 m² “a título precário”, ou seja, em caráter transitório, por um período de 5 anos, “passíveis de sucessivas renovações, a título gratuito e intransferível, face ao manifesto interesse público e à finalidade a que se destina”. Uma vez “Encerrada ou revogada a permissão, a área será restituída à permitente, independentemente de qualquer providência judicial ou extrajudicial”.

Pois os 5 anos se completam no próximo 1º de agosto e as partes levaram para as redes sociais e a imprensa a cizânia fermentada, sobretudo, nos meses que precedem o limite da renovação ou revogação do acordo.

Apesar da radical transformação nas relações em termos culturais e institucionais, ora beligerantes, “atores” em tela não mudaram nesse quinquênio. O prefeito e seu vice, Walmir Pinto, foram reeleitos para o mandato 2021-2024, com 77,8 % dos votos, e Swensson Neto segue cuidando das ações jurídicas.

Walmir Pinto desponta como uma das vozes transbordantes nesse processo. Ele é formado em jornalismo, mas faz mais de 30 anos que concilia as profissões de ator (desde 1989) e a de político (1992). Trabalhou em teatro, cinema e televisão, a exemplo da fundação da Companhia Atores Insanos, em atividade há pelo menos 9 anos em Suzano, e participação no elenco de apoio da minissérie Treze dias longe do sol (Globo, 2017-2018).

Em 2021, o vice-prefeito passou a acumular o cargo de secretário de Cultura, pasta que já havia comandado entre 2005 e 2012, ano em que foi eleito vereador. Desde os anos 1990, passou pelos partidos PT, PDT, PSB e PV – a este, filiou-se em 2 de junho, com vistas a articular candidatura a prefeito em 2024. Aliás, são legendas tidas como de perfil progressista no espectro político.

Foram em momentos ápices de sobreposição de seus poderes políticos – quando o vice e secretário de Cultura assume a interinidade do cargo de prefeito – que vieram à tona decisões da máquina pública reativas à possibilidade de renovar a cessão de área. Primeiro, com uma disruptiva nota de desocupação do referido espaço, em janeiro de 2023. Depois, um gesto de recuo traduzido em novo decreto, no mês passado, agora circunscrevendo a renovação a um teto de seis meses, também renováveis, ainda traindo o espírito e a letra do documento de 2018, de horizonte mais plausível, possível de ser espichado a 5 anos.

Em 29 de janeiro de 2023, Pinto despachou do gabinete o ofício de número 269, em que remetia ao processo administrativo 15.998, de 2017, e trazia como assunto: “Notificação de desocupação de espaço público”. Sua destinatária era a atriz e gestora cultural Daniele Santana, que faz parte do grupo desde 2004 e atualmente preside a Associação de Cultura e Cidadania Contadores de Mentira.

Após considerações como a de que a prefeitura está “fazendo estudos para ampliação e melhorias” do prédio da UBS ao lado do terreno em xeque, pespegou: “Informamos que não será possível a renovação da permissão de uso e notificamos os senhores para que realizem a retirada das instalações consideradas removíveis e à mesma pertencentes até o dia 1º de agosto de 2023”. Ou seja, seis meses para desfazer a casa alicerçada e sair.

Divulgação Fachada do Teatro Contadores de Mentira, no Parque Maria Helena, em Suzano, vizinho a uma UBS e a uma escola estadual; área foi cedida ao grupo em 2018 e inicialmente contava com a possibilidade de renovação por mais 5 anos, agora reduzida a seis meses pela administração municipal

Segundo Santana, o grupo só soube desse documento em abril. No dia 17 do mesmo mês, fez chegar à Secretaria de Cultura, por meio do diretor de Cultura, Amaury Rodrigues, um relatório impresso de ações realizadas no teatro de 2018 a 2019. São 806 páginas na versão digital disponibilizada ao público em geral, 200 delas preenchidas por cartas de recomendação de artistas, produtores, gestores, jornalistas, lideranças de movimentos sociais etc.

Esse catatau sustenta a realização de 336 atividades, sendo apenas seis delas cobradas, totalizando a presença de 21.190 pessoas no espaço independente que começou a ser construído em setembro de 2018 e abriu ao público em agosto de 2019. Cerca de sete meses depois, as portas foram fechadas em razão da crise sanitária mundial gerada pelo novo coronavírus.

O Contadores de Mentira informa investimento de R$ 450 mil para pôr de pé o projeto arquitetônico alternativo cuja principal matéria-prima são contêineres, substitutos das paredes e colunas convencionais. Uma escolha assentada em noções ambientais e de sustentabilidade, como a estratégia de reúso, à maneira do teatro da Companhia Mungunzá, também concebido e erguido em grande parte pelos próprios integrantes, localizado na capital, na região da Luz. A Mungunzá foi interlocutora na empreitada do grupo de Suzano.

Os recursos financeiros compreenderam primeira fase e posterior acabamento e manutenção, no período de setembro de 2018 a março de 2023. A fonte, diz Contadores, veio do próprio caixa, bem como de campanhas de arrecadação e doações de material de construção e de mão de obra.

Antes de levantar o teatro à Rua Maria de Lourdes Molina Vieira, número 42, seus integrantes alugavam um imóvel na quadra vizinha, à rua Major Pinheiro Fróes, número 53, no mesmo Parque Maria Helena – bairro que fica do lado oposto da região que concentra o comércio em Suzano, cujo acesso pedestre é feito por meio da passarela sobre a estação da Companhia Metropolitana de Trens Urbanos, a CPTM.

A outrora oficina mecânica deu lugar a uma intensa atividade artístico-cultural com ações formativas e reflexivas, além de apresentações de espetáculos que movimentaram a agenda da cidade por seis anos, entre 2012 e 2018, com entrada franca ou ingressos a preços acessíveis.

Como a maioria dos pares Brasil afora, o modo de produzir do grupo, desde seu nascimento, em 1995, implica acessar editais, programas de fomento ou leis de incentivo, além de outras políticas culturais – quando elas existem – em níveis municipal, estadual, federal ou mesmo internacional. Entre 2018 e 2022, conquistou R$ 1.185.000,00 em processos de seleção, a maioria através do Programa de Ação Cultural (ProAC), da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado, ou firmando convênios. O Teatro Contadores de Mentira é credenciado como Ponto de Cultura junto ao Ministério da Cultura.

De volta à peleja desses artistas com a administração de Suzano, ambos os lados argumentam tentativas de reunião desde abril. Naquele mês, o grupo entrou com requerimento, no sentido de pedir a reconsideração da notificação de desocupação, de janeiro de 2023, e dialogar acerca da possibilidade de renovação por mais 5 anos, como previsto no decreto de 2018. Ou, quem sabe, havendo vontade política, de concessão por tempo mais estendido.

Em 30 de junho, o vice-prefeito, secretário de Cultura e na ocasião prefeito interino voltou à carga ao publicar no Diário Oficial da cidade o decreto número 9.930, em que dispõe sobre a renovação da permissão do uso de bem público, sem que o grupo fosse contatado anteriormente. Como se não houvesse assinado a notificação de desocupação de espaço endereçada a Santana e coletivo em janeiro, Pinto promulga que “Fica permitido a renovação à Associação de Cultura e Cidadania Contadores de Mentira”.

O artigo 2º afirma: “A renovação da permissão de uso é outorgada a título precário pelo período de 6 (seis) meses, passíveis de sucessivas renovações, a título gratuito e intransferível, face ao manifesto interesse público e à finalidade a que se destina”. Diferente do enunciado do decreto de 2018, os 5 anos da parceria original, também “passíveis de sucessivas renovações”, foram reduzidos a um semestre. Os dois artigos do documento da primeira cessão agora são oito, emendando uma série de cláusulas restritivas às quais a permissionária fica obrigada a cumprir.

Tais como “não utilizar a área para finalidade diversa da prevista”; “não realizar quaisquer obras, edificações ou benfeitorias, sem a prévia e expressa autorização da Prefeitura, ressalvadas as reformas essenciais à segurança e higiene das edificações, instalações e equipamentos existentes”; e “não permitir que terceiros se apossem do imóvel, bem como dar conhecimento imediato à Prefeitura de qualquer turbação de posse que se verifique”.

Num exercício de futurologia, o decreto, também endossado pelo mesmo secretário de Assuntos Jurídicos, prevê “restituir a área completamente livre e desimpedida, a contar da notificação que reclamar a sua restituição, sem direito a qualquer pagamento ou indenização, inclusive por benfeitorias nele realizadas, ainda que necessárias, as quais passarão a integrar o patrimônio municipal”.

Exige-se, ainda, caso se efetue a renovação, “relatório trimestral de prestação de contas das atividades realizadas no Município de Suzano”.

Daniele Santana questiona as novas determinações. “É interessante pensar: se o problema fosse de fato a prestação de contas das atividades que a gente realiza, porque só estão levantando essa questão depois de 5 anos? Quer dizer que nos outros anos eles não se importavam?”, disse em live para o canal do publicitário Osmar Wang no YouTube, em 20 de julho.

Santana declara que o Contadores soube do conteúdo do último decreto dias após sua publicação no Diário Oficial. Mais uma vez, o grupo não teria sido contatado. A esquiva ao diálogo e o juridiquês da retaliação levaram à decisão de trazer a público os anacronismo e incoerências.

Divulgação
Divulgação
Divulgação Nas duas primeiras imagens no alto, etapas do processo de construção do Teatro Contadores de Mentira, em 2018, cujo projeto arquitetônico adota reúso de contêineres; ao lado, Daniele Santana e Cleiton Pereira, artistas e gestores do espaço

No dia 8 de julho, as redes sociais do grupo publicaram nota intitulada: “Teatro Contadores de Mentira é forçado a encerrar suas atividades em Suzano”. Argumentava-se que a administração pública “desrespeita e coloca em risco a existência do espaço cultural”; “sentimos violentamente o descaso e o despreparo desses gestores que não conseguem conviver com as diferenças. O prefeito Rodrigo Ashiuchi e seu vice Walmir Pinto não reconhecem nosso valor histórico e cultural e nos impõe através de um novo decreto a permissão de seguir em atividade por apenas mais 6 meses”; “tratamento desigual, já que nenhuma outra instituição nessa cidade sofre as imposições e limitações que estamos sujeitos através de um decreto”.

E continua a nota: “como trabalhadores e trabalhadoras da cultura não podemos aceitar esse completo descaso e abuso de poder que a nós soa como retaliação por nossas posturas e direcionamentos sociais e políticos”. A tônica persecutória também será pontuada por Pinto, mais adiante.

Segundo a nota, uma vez concretizada a desmontagem do espaço cultural, ao pé da letra, Suzano carregará em sua história, e também na história de seus atuais governantes, “o peso do fechamento do primeiro Teatro independente desta cidade a ser construído pelas mãos de seus próprios artistas, mãos periféricas, mãos pretas, mãos LGBTQIAP+, mãos de mulheres, da classe trabalhadora, mãos de centenas de pessoas que incentivaram e contribuíram diretamente para que este espaço fosse erguido. Mãos que agora se erguem em punho cerrado para dizer que não nos curvamos diante daqueles que nos oprimem”.

Assim, restou ao Contadores riscar o chão e arrogar “que poderia ser reconhecido como patrimônio cultural deste município, que trouxe o Brasil e o mundo para Suzano, e que levou para tantos lugares o nome desta cidade”, autorreferência à curadoria na programação do teatro. Pouso recorrente no circuito de espetáculos e ações na região do Alto Tietê, seja por receber produções nacionais ou internacionais, seja pelas viagens de intercâmbio artístico-cultural que realiza.

“Sim, somos um grupo crítico, contrário ao aparelhamento da máquina pública, à falta de horizontalidade e diálogo, e a falta de compreensão, por parte dos gestores públicos, de que uma cidade é formada por divergentes e que a pluralidade de pensamentos é o combustível da democracia. Somos coautores de uma cidade cuja cultura é ampla e não definida apenas pela ótica governamental de gabinete. Dialogamos para além desses gestores, sobretudo porque estamos inseridos em uma comunidade periférica, desassistida e invizibilizada pelo poder público local.  Há anos nos dedicamos à esta comunidade e sempre com muito respeito por nossa cidade.”

Walmir Pinto, por sua vez, reagiu com vídeo e nota postados em seu perfil no Instagram em 10 de julho. Lançando mão de fala mais informal, apresentando-se como “secretário de Cultura, prefeito em exercício de Suzano e também artista”, refutou que “A administração em nenhum momento fez uma ação de despejo”. Em busca de narrativa reversa, reafirmou a suposta e genérica ausência de prestação de contas. Disse que o grupo “está pregando mentiras sobre a administração pública, sobretudo à minha figura”. “Eu sei muito bem da dificuldade que é ser artista nesse país.” E que “Antes de ir para as redes sociais, procurem a administração”, pois, afirma o político, “Estamos à disposição de quem quiser dialogar”.

Na nota escrita relativa ao vídeo, em que convida seguidores a assistir sob o título “A verdade sobre os Contadores de Mentira”, Pinto disse que “é fundamental tratar as políticas públicas com responsabilidade e transparência. Essa tem sido a minha abordagem ao longo dos meus mais de 20 anos como gestor cultural”.

No mesmo dia 10 de julho, o perfil oficial da Prefeitura de Suzano, com Pinto na interinidade do cargo, declarou que “soube com estranheza da manifestação do grupo” e aguardava “um posicionamento oficial da entidade” acerca da repisada prestação de contas.

Em entrevista à TV Diário, de Mogi das Cruzes, em 18 de julho, Pinto fez trocadilho infame com o nome do grupo e escalonou no antagonismo ao depreciar o relatório do quinquênio dos Contadores na ocupação do terreno. “O que eles fizeram foi apresentar um portfólio do grupo. Fotos, currículos de passeios deles por outros lugares, mas nós não temos de comprovação nenhuma nota fiscal, recibo, contrato de trabalho”.

Ligar jornadas internacionais de apresentações, ações formativas e reflexivas a mero “passeios” é reducionismo, para dizer o mínimo, sobretudo em se tratando de quem também se diz afeito ao campo das artes. Um dos traços marcantes do trabalho do Contadores de Mentira, especialmente na última década, diz respeito à capacidade de estabelecer trocas com criadores de outros países e culturas. O que também reverbera no território.

Num exemplo grosseiro, é como querer desqualificar o Lume Teatro, de Campinas, pela profícua agenda em distintos continentes ao longo de sua história.

Nesse ponto, talvez fosse mais produtivo à prefeitura ouvir representações sociais do Parque Maria Helena e região, a fim de apurar qual, afinal, o entendimento de quem vive ali a propósito das atividades oferecidas no espaço cultural. As 336 ações relacionadas no relatório do grupo deixam subentendido que demanda há.

Como já fez em outras ocasiões, Pinto tentou comparar o impasse à situação da Apae, a entidade voltada às pessoas com deficiência e que mantém convênio com a prefeitura para repasses de recursos. “A Apae presta conta mensalmente. Em 5 anos eles não conseguiram comprovar nada”, disse o político.

No ano passado, Pinto e o prefeito Ashiuchi visitaram o teatro de contêineres. Não foi a primeira vez. Portanto, ambos e a equipe de servidores da Secretaria Municipal de Cultura têm parâmetros, mais a obrigação e o dever de fiscalizar os eventos organizados pela entidade a quem cedeu o bem público. Por que não o fizeram sistematicamente de 2018 para cá, a fim de detectar irregularidades e, súbito, promovem o cerco aos 90 minutos do segundo tempo?

O Teatrojornal tentou conversar com o vice-prefeito e secretário de Cultura, mas a Secretaria de Comunicação disse que não seria possível, e encaminhou posicionamento oficial publicado abaixo, na íntegra.

Secretaria de Comunicação de Suzano Há mais de 30 anos conciliando as profissões de ator e político, o vice-prefeito e secretário de Cultura assinou ofício e decretos que atravancam a renovação da cessão de área do Teatro Contadores de Mentira, ameaçado de ser desmontado e o grupo, fundado há 28 anos em Suzano, de migrar para outra cidade

De qualquer modo, enviamos uma dúvida específica: “Existe um convênio formal que estabeleça as obrigações por parte da permissionária desde a permissão de uso em 2018? Um documento para além dos decretos? Em caso positivo, podem compartilhar?”.

Ao que a equipe de comunicação respondeu: “O decreto municipal nº 9.223/2018 foi gerado a partir de um processo administrativo que analisou a intenção do requerente e as contrapartidas que o mesmo ofereceu à época. Diante disso, o decreto é o instrumento necessário que estabelece o vínculo entre permitente/permissionário, mediante o cumprimento das obrigações estabelecidas em processo administrativo”.

Contudo, um termo de permissão de uso do espaço ainda não veio a público. O decreto de concessão, de 2018, não tocou nesses detalhes, como o decreto de 30 de junho passado o faz – inclusive mencionando um novo processo administrativo para o caso, de número 5.994. O artigo 4º é veemente: “A Prefeitura terá o direito de, a qualquer tempo, fiscalizar o cumprimento das obrigações estabelecidas neste decreto e no termo de permissão de uso, através da nomeação de um fiscal designado para tal finalidade”. Tom intimidatório.

Como se lê, tanto a nota-manifesto do Contadores de Mentira como as reações de Walmir Pinto a ela denotam algum grau de idiossincrasia de lado a lado.

Pensata

Em março de 2023, escrevi uma pensata acerca da trajetória do grupo e da relevância de seu teatro-sede (o atual e o anterior, o qual também visitei). Somou-se às dezenas de cartas anexadas ao relatório e que ratificam a legitimidade artística, cultural e cidadã desse trabalho em espiral.

Salvo engano, foi em 2007, enquanto jornalista dedicado à cobertura de teatro, que conheci o ator, diretor e gestor cultural Cleiton Pereira, cofundador do Grupo Contadores de Mentira, e o então secretário de Cultura, Walmir Pinto. Ambos se dedicavam a pensar e organizar a Mostra de Referências Teatrais de Suzano, que estava na terceira edição e consolidou-se no calendário. Nesse contexto, participei de um debate paralelo à programação de espetáculos e performances. A curadoria meditava pela prática e cultura do teatro de grupo em toda a sua diversidade de linguagens.

Essa memória choca-se com a realidade de 2023, quando os mesmos “personagens” se digladiam na arena e o equipamento independente pode sair da comunidade.

O texto a seguir, de quatro meses atrás, buscava equilibrar-se nas lembranças do autor diante das potencialidades daquele presente, assim como das frestas para um futuro mais promissor vislumbrado a partir dos raios solares que adentravam o Teatro Contadores de Mentira em visita recente.

Para quem vê a contenda de fora, espectadores, a incapacidade de diálogo resulta em paradoxo sem tamanho. A essa altura do campeonato, fechar um teatro atestaria a incompetência de quem está no governo, certa vez criou condições extraordinárias e ora cultiva insensibilidade para sabotar a si e, de quebra, a população da cidade e a rede de artistas da cena de todos os cantos.

Cinco anos, seis meses, um átimo. A urgência dos dias se impõe no tempo compositor de destinos, na acepção caetânica.

Com a palavra e os atos, os contracenadores. Serão capazes de distensionar?

O topônimo Suzano é todo ouvidos.

*

Carta à população de Suzano, 13 de março de 2023, por Valmir Santos.

Moradores de Suzano estão de parabéns pela sua Prefeitura ter marcado um golaço no campo dos direitos à arte e à cultura: no dia 1º de agosto de 2018 veio à luz o decreto municipal número 9.223, que permitiu à Associação de Cultura e Cidadania Contadores de Mentira o uso de um terreno como “bem público”, no Parque Maria Helena.

A entidade sem fins lucrativos representa juridicamente tanto o Grupo Contadores de Mentira, um dos mais longevos da cidade, fundado há 28 anos, em 1995, como a administração e curadoria da programação da sede e espaço cultural Teatro Contadores de Mentira.

Passados quase 5 anos desde que o prefeito Rodrigo Ashiuchi (PL) assinou o decreto ao lado do secretário de Assuntos Jurídicos, Renato Swensson Neto – em sintonia com a essência cidadã e as potencialidades da cultura e da economia criativa –, pisar o Teatro Contadores de Mentira, em 2023, é conectar-se ao espírito contemporâneo das artes da cena e, ao mesmo tempo, aferir o quão o poder público pode e deve ser inventivo quando se trata de medidas socioculturais efetivas em áreas que carecem de equipamentos afins.

Quem chega ao espaço-sede se depara com um quintal e uma fachada nada convencionais se consideradas as tradicionais edificações das casas de espetáculo localizadas na capital, no interior ou pelo país afora. A inovação arquitetônica é percebida principalmente por meio das paredes externas e internadas estruturadas a partir de contêineres – recipientes mais conhecidos por acondicionar cargas em portos marítimos. Alçados à paisagem urbana suzanense, os contêineres imprimem outras nuances e valorizam o entorno do terreno ladeado pela Unidade Básica de Saúde Dr. Isack Oguime e pela Escola Estadual Professor Carlos Molteni.

Aliás, que tríade poderia ser mais-que-perfeita e civilizatória do que a conjunção de equipamentos públicos que envolvam saúde, educação e cultura? Proximidade, inclusive, num futuro ideal, propícia a ações integradas entre os profissionais da UBS, da escola e do teatro, tantos são os vasos comunicantes em termos de autocuidado, saúde mental, jogos de aprendizagem, campanhas lúdicas de vacinação e a fruição da arte que por si só expande o imaginário de espectadoras e espectadores de todas as idades. Neste sentido, as práticas pedagógicas e didáticas têm tudo para aflorar.

Adentra-se o Teatro Contadores de Mentira por uma antessala, como que uma varanda na qual se avistam quadros, esculturas, livros, plantas e bancos. Neste aprazível entrelugar há ainda vidros transparentes que fazem às vezes de janela ou paredes e permitem a luz do dia transpassar e clarear o ambiente. Procedimento que também se dá em outras áreas da sala de apresentação propriamente dita. Ela é multiúso, variando a forma de ocupação desde o chão em linóleo até o pé-direito alto, além de mezaninos, sempre de acordo com a concepção das obras encenadas pelo próprio grupo e por artistas convidados ou ainda em turnê pela região metropolitana de São Paulo. A solaridade é um dos achados para a jornada diuturna na qual cursos, oficinas e workshops invariavelmente acontecem até o pôr do Sol e as sessões de peças, coreografias, números circenses, shows musicais e encontros de outra natureza voltados à sociedade civil em geral transcorrem no período da noite. Pois em havendo a luz da Lua, ela também pode abrilhantar as imersões artísticas naquele espaço cênico.

Wanderley Costa
Wanderley Costa No alto, a atriz e gestora cultural Daniele Santana contracena com Cleiton Pereira em ‘O incrível homem pelo avesso’, sessão realizada em 2011 no Galpão das Artes, em Suzano; ao lado, Priscila Klesse, em primeiro plano, e Drico de Oliveira na mesma montagem

Chama atenção ainda a otimização das áreas de coxia, camarim e de operação das mesas de luz e som, bem como a inteligência do projeto arquitetônico que reservou hospedaria nos bastidores que podem ser destinadas a coletivos de artistas caso optem em pernoitar no local.

Leitores deste relato já notaram que o documento se reveste de dimensões jornalísticas e afetivas porque iniciei minha carreira de jornalista cultural trabalhando como repórter no Diário de Suzano, em 1989. Lembro-me de assistir a peças de teatro no Auditório Armando de Ré, cerca de duas décadas antes de reformado e rebatizado Teatro Armando de Ré.

Por outro lado, foi em meados da década passada que conheci o trabalho do Grupo Contadores de História com a arte do teatro, assim como a ousada visão de política pública do secretário de Cultura Walmir Pinto, no âmbito da Mostra de Referências Teatrais de Suzano, de subtítulo auspicioso, “Exercite o seu olhar”. Hoje, prestes a cruzar a 12ª edição, a mostra consolidou-se como raro exemplo de ação continuada que forma na veia os horizontes de percepção poética e de pensamento crítico por parte do público em geral, movendo inclusive plateias infantojuvenis a trilhar o trabalho de arte.

É a partir desta plataforma de voo, a memória vívida das artes da cena em Suzano, que transmito diligente apoio à renovação do uso de bem público do agora Teatro Contadores de Mentira. Sobretudo, levando-se em conta que sua implementação se deu no curso da pandemia de Covid-19, um período de exceção e de tragédia de dimensões humanas ainda não totalmente dimensionadas. Em meio às cerca de 700 mortes ocorridas no Brasil em três anos (fevereiro de 2020 a fevereiro de 2023), é notável que um grupo de artistas-cidadãos tenha encontrado energias para, em paralelo a lutos e lutas, dar forma ao sonho de erigir um lugar digno da cultura teatral na mesma comunidade do Parque Maria Helena, com porta aberta às demais regiões de Suzano e do Alto Tietê. Que os próximos 5 anos – 50 anos? – permitam sedimentar as dores e alegrias desse período em celebração à vida e à possibilidade de perseverar em todos os planos da existência, sempre.

E em nossa experiência de conhecer espaços socioculturais em vibração com territórios e territorialidades, o espaço-sede em tela faz coro com iniciativas ímpares que envolvem o trabalho de grupo, a exemplo do Oficina, no bairro do Bixiga na capital; Cia. Mungunzá e seu Teatro de Contêiner na Luz, região central paulistana; Grupo Galpão, no bairro do Horto, em Belo Horizonte; Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz e sua terreira no bairro São Geraldo e sua ideação de espaço prospectado na Cidade Baixa, em Porto Alegre; Lume Teatro e seu casarão, no distrito de Barão Geraldo, em Campinas; o peruano Grupo Cultural Yuyachkani e seu espaço no distrito de Magdalena del Mar, em Lima; e o dinamarquês Odin Teatret na cidade interiorana de Holstebro, para citar alguns núcleos cênicos paradigmáticos na criação de vínculos com os seus pedaços, não sem razão, interlocutores frequentes do Grupo Contadores de Mentira.

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Resposta da Prefeitura de Suzano ao Teatrojornal, 20 de julho.

Infelizmente, não será possível dispor de um porta-voz. Segue o posicionamento oficial da Secretaria Municipal de Cultura a respeito do assunto:

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A Prefeitura de Suzano esclarece que, ao contrário do que vem sendo propagado nas redes sociais nos últimos dias, não há qualquer impedimento para que o grupo Contadores de Mentira continue utilizando imóvel municipal onde está instalado desde 2018, no Parque Maria Helena.

Muito pelo contrário, haja vista que foi publicado o decreto nº 9.943, de 30 de junho de 2023, que determina justamente a extensão do prazo do contrato em vigência sobre a permissão de uso do bem público por mais seis meses, que poderá ser renovado a cada semestre mediante a prestação de contas em que a entidade comprove o cumprimento das contrapartidas acordadas com o Executivo em benefício da população suzanense, tais como peças teatrais, oficinas e outras ações gratuitas no local.

A administração municipal recebeu no final do mês de abril um relatório do grupo que foi submetido à avaliação de um corpo técnico da Secretaria de Cultura e também da Secretaria de Assuntos Jurídicos. A análise apontou de que, na verdade, o documento se tratava de um portfólio e não de uma prestação de contas, conforme acordado no primeiro termo de permissão de uso do espaço.

Diante disso, a Secretaria de Assuntos Jurídicos avaliou que a permissão deveria ocorrer por um prazo de seis meses, passível de renovação por igual período, enquanto a prestação de contas é finalizada em sua totalidade. Mesmo com a falta de consistência apresentada, houve um esforço do poder público municipal, por meio das análises mencionadas, para que o grupo não ficasse desassistido sem um espaço para atuar.

O grupo Contadores de Mentira é o único de cunho cultural a receber esse tipo de benefício na cidade. É importante ressaltar também que a Secretaria de Cultura tem feito um estudo para a abertura de um espaço multiúso que possa ser utilizado pelas demais entidades culturais do município.

Para finalizar, em nenhum momento o grupo Contadores de Mentira manifestou seu posicionamento oficialmente à Prefeitura de Suzano, que só soube de toda a situação causada pelo mesmo por meio de publicações em redes sociais. A administração municipal reitera seu compromisso com a Cultura e segue aberta ao diálogo e a uma relação honesta e cordial.

Att,

Secretaria Municipal de Comunicação

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Íntegra da nota do grupo, Teatro Contadores de Mentira é forçado a encerrar suas atividades em Suzano, em 8 de julho de 2023.

A prefeitura municipal de Suzano, na figura do prefeito Rodrigo Ashiuchi (PL) e de seu vice Walmir Pinto (PV), que acumula o cargo de secretário de cultura, desrespeita e coloca em risco a existência do espaço cultural Teatro Contadores de Mentira, que além de ser sede de nossas atividades artísticas, também é um Ponto de Cultura Estadual certificado pelo Ministério da Cultura.

Nós, como grupo, residimos nesta cidade há quase 3 décadas. Atuando desde 1995 em Suzano, somos o grupo mais antigo em continuidade ininterrupta: atuamos aqui há mais de um terço do tempo de vida da própria cidade.

Em 2018, depois de quase dois anos de luta, conquistamos um decreto de permissão de uso do terreno onde estamos hoje. Terreno onde erguemos com nossas próprias mãos e recursos este Teatro que hoje é orgulho da nossa gente e que, claro, cria rede e conexões com dezenas de instituições, grupos do Brasil e de outros países, ofertando acesso, formação, circulação de bens culturais, fruição, interlocução com setores da sociedade como Cultura, Educação, Saúde e Cidadania.

Contabilizando apenas os 5 anos em que estamos neste terreno, atravessando a Pandemia de Covid-19, estando boa parte deste tempo em processo de construção e tendo grandes dificuldades em mantermo-nos economicamente, ainda assim oferecemos, ao todo, mais de 340 atividades gratuitas à população.

Foram investidos na construção do Teatro Contadores de Mentira cerca de R$ 450.000,00 com recursos próprios e apoio de diversos parceiros. Geramos bem-estar e acolhimento, trabalho e renda a centenas de trabalhadores e trabalhadoras através dos muitos projetos que realizamos.

Sim, somos um grupo crítico, contrário ao aparelhamento da máquina pública, à falta de horizontalidade e diálogo, e a falta de compreensão, por parte dos gestores públicos, de que uma cidade é formada por divergentes e que a pluralidade de pensamentos é o combustível da democracia. Somos coautores de uma cidade cuja cultura é ampla e não definida apenas pela ótica governamental de gabinete. Dialogamos para além desses gestores, sobretudo porque estamos inseridos em uma comunidade periférica, desassistida e invizibilizada pelo poder público local. Há anos nos dedicamos à esta comunidade e sempre com muito respeito por nossa cidade.

Notificamos à toda a população de Suzano que, depois de meses de tentativa de diálogo diplomático para o pleito da renovação do decreto municipal de permissão de uso do terreno público – renovação essa que dependeria apenas da vontade política da administração local, pois ela é juridicamente permitida por esse mesmo decreto – para a continuidade de inúmeros projetos de caráter público desenvolvidos pelo Teatro Contadores de Mentira, sentimos violentamente o descaso e o despreparo desses gestores que não conseguem conviver com as diferenças. O prefeito Rodrigo Ashiuchi e seu vice Walmir Pinto não reconhecem nosso valor histórico e cultural e nos impõem através de um novo decreto a permissão de seguir em atividade por apenas mais 6 meses. Seis meses! Não bastasse, estabelecem uma série de medidas obrigatórias que em nenhum momento tivemos a oportunidade de debater. Impõem ainda tratamento desigual já que nenhuma outra instituição nessa cidade sofre as imposições e limitações que estamos sujeitos através de um decreto que, para nossa instituição e, consequentemente, para a população de nossa comunidade é, no mínimo, injusto e contra a cultura e a cidade.

Daniele Santana A partir da esquerda, Cleiton Pereira, Kaique Calisto, Samuel Vital e Daniele Santana, núcleo artístico do Contadores de Mentira, em selfie na sede da Cia. Cênica, em São José do Rio Preto (SP), em abril de 2023, durante participação na mostra Resistências

Os seis meses impostos ao Teatro Contadores de Mentira nos tornam reféns de uma situação política onde perdemos a autonomia de nosso trabalho e dos planejamentos e possíveis parcerias e convênios que viabilizem a nossa sobrevivência. Não permite projetos a médio e longo prazos e nos cria insegurança administrativa além de causar danos financeiros à nossa instituição.

Nos oferecer 6 meses de permanência é o mesmo que nos mandar embora. Há 28 anos trabalhamos pelo avanço cultural e social desta cidade e há 10 anos o Teatro Contadores de Mentira está nesta comunidade. Comunidade do outro lado da linha [da CPTM], desassistida, que sofre por ausência de política pública em todas as instâncias. Onde nós trabalhamos diariamente para criar um espaço de humanidade, onde todas as pessoas sejam respeitadas em sua diversidade.

Esta atitude demonstra a completa falta de compromisso e responsabilidade para com a Cultura e o povo da Cidade de Suzano.

Nós, como artistas, como grupo, como instituição, como espaço e como trabalhadores e trabalhadoras da cultura não podemos aceitar esse completo descaso e abuso de poder que a nós soa como retaliação por nossas posturas e direcionamentos sociais e políticos.

O prefeito Rodrigo Ashiuchi, do PL, descumpre o compromisso que firmou neste mesmo espaço no ano de 2022, de que renovaria nossa permissão de uso por mais 5 anos. Mostrando não apenas para nós, mas para toda a população suzanense, que não cumpre com sua palavra e desrespeita centenas de pessoas que aqui são atendidas através da Educação, Saúde e Cultura.

Mas a maior ironia é que o documento que recebemos, inicialmente em abril deste ano, exigindo nossa saída e consequentemente, a derrubada do Teatro Contadores de Mentira, quando justamente buscávamos negociar nossa permanência no local, bem como esse novo decreto que nos oferece apenas mais 6 meses de permanência no terreno, vieram das mãos do gestor Walmir Pinto, do Partido Verde, um homem que se apresenta como de “esquerda” e “representante da Cultura”. O político Walmir Pinto desvaloriza nossa existência e de outros setores culturais do município. Estes gestores menosprezam por completo a história de um grupo que há 3 décadas trabalha por esse território, que poderia ser reconhecido como patrimônio cultural deste município, que trouxe o Brasil e o mundo para Suzano, e que levou para tantos lugares o nome desta cidade.

Relembramos ainda que o Presidente Lula afirmou em vários discursos pelo Brasil que nenhum Teatro seria fechado em sua gestão. Pois em Suzano teremos o primeiro. E a cidade estará marcada para sempre por esta vergonha e mácula trazida sob a caneta e desejo de um “homem que se diz esquerda”.

Suzano carregará em sua história e também na história de seus atuais governantes, Rodrigo Ashiuchi e Walmir Pinto, o peso do fechamento do primeiro Teatro independente desta cidade a ser construído pelas mãos de seus próprios artistas, mãos periféricas, mãos pretas, mãos LGBTQIAP+, mãos de mulheres, da classe trabalhadora, mãos de centenas de pessoas que incentivaram e contribuíram diretamente para que este espaço fosse erguido. Mãos que agora se erguem em punho cerrado para dizer que não nos curvamos diante daqueles que nos oprimem.

Se a prefeitura e os gestores públicos de Suzano não conseguem reconhecer sua função pública e nossos direitos como fazedoras e fazedores da cultura, se não conseguem ver o dano que causam à população retirando o seu direito e acesso aos bens culturais, se não conseguem olhar além dos seus gabinetes e se não conseguem nunca se abrir às reivindicações do povo, então nossos esforços por aqui talvez tenham chegado ao seu fim.

Nos resta agora, desmontar este teatro e tentar construir nosso fazer em outras paragens. Mas não cederemos ao autoritarismo. Não cederemos à política de balcão.  Não cederemos à cooptação. Não cederemos à censura. Não cederemos à perseguição política. Não cederemos ao ódio e à desigualdade de tratamento.

Nossa liberdade e nossa autonomia são o núcleo inegociável do nosso fazer.

Não dobraremos os joelhos ou negociaremos nossos sonhos e nossos princípios democráticos, e não habitaremos montanhas de egos atrasados. Ainda que isso nos custe sair desta cidade pela qual tanto fizemos e lutamos.

Encerraremos pedindo licença ao povo de Suzano e às moradoras e moradores da nossa comunidade, elas e eles que são os verdadeiros donos deste terreno, a quem de fato deveria pertencer a decisão sobre ele.

Pedimos licença a todas as pessoas que são forçadas a sair de seus territórios, porque nelas nos reconhecemos.

Reverenciamos Zé Celso Martinez Corrêa, mestre do teatro brasileiro que tanto lutou por permanência, e que nos inspirou a entender que somos a geração que não se entregou.

Reverenciamos o povo de Canudos e Antônio Conselheiro, que enfrentou um exército armado até os dentes com pedaços de pau, e que nos ensinou que “O sonho de cada um de nós é o anseio de uma comunidade inteira”.

Somos uma ilha flutuante. Esta casa é de aço e asa. Temos coragem e fogo nas mãos. Aqui a erguemos e seremos capazes de reerguê-la outra vez em qualquer parte.

.:. Leia relato dos artistas do Grupo Contadores de Mentira acerca do rito ‘Passos para quem partiu’ (2021), que percorreu quatro cidades da região do Alto Tietê em lembrança às vítimas da Covid-19.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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