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Reportagem

Lugar de públicos nas artes cênicas

Pesquisa Hábitos Culturais

18.1.2024  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Naty Torres

Analisar reverberações das linguagens circo, dança e teatro mencionadas na quarta edição da pesquisa nacional Hábitos Culturais, divulgada em meados de dezembro, permite sondar o grau de relacionamento dos públicos com as artes cênicas na sociedade atual.

Parceria do Datafolha, instituto de pesquisa do Grupo Folha, com a Fundação Itaú, que abarca o Itaú Cultural, o levantamento toma por régua o ano de 2023 ante 2022. Foram ouvidas 2.405 pessoas em municípios de pequeno, médio e grande portes nas regiões centro-oeste, nordeste, norte, sudeste e sul, com expansão às regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro – mais detalhes de como a amostra foi feita ao final do texto.

Começando pelo título. Os termos “hábito”, “consumo” e “experiência” aparecem no relatório da pesquisa, inclusive no plural, respectivamente 40, 26 e 14 vezes. Quem sabe, valesse a pena sublinhar mais o terceiro e ainda variar esses substantivos-chave por “vivência”, “relacionamento” ou “envolvimento”, ausentes, pois também são cotejados dados de gênero, raça e classe. Ou seja, para além de aspectos essencialmente econômicos.

Saber que 72% da população declaram – e não apenas referente a 2023, mas ao longo da existência, como aponta a quarta edição da pesquisa nacional Hábitos Culturais – jamais ter vivenciado uma jornada cênica de espetáculos e atividades formativas e reflexivas pensadas por uma curadoria que ausculte seu território, enfim, isso revela o potencial de recepção a festivais, gregários por natureza. Essas iniciativas também merecem mais atenção e dignidade por parte de gestores públicos nas esferas municipal, estadual e federal, bem como de empresas privadas que praticam isenções fiscais

De 34% das pessoas que gostam de fazer algum tipo de atividade de lazer e cultura em seu tempo livre, dentro ou fora de casa, apenas 1% declara ir ao teatro. A porcentagem soa desfavorável, mas é realista quanto, entre outros fatores, aos desníveis de acesso à educação e à cultura no dia a dia de 203 milhões de brasileiras e brasileiros: está no mesmo patamar de quem vai a shows ou museus, como se vê na lista a seguir:

Atividade cultural

Leitura, 14%

Filmes e séries, 11%  

Ouve música, 7%

Cinema, 6%

Shows, 1%

Museus, 1%

Teatro, 1%

No âmbito geral, quando não estão trabalhando ou estudando, 60% afirmam praticar ou cursar algum tipo de atividade, seja em nível amador ou profissional, contra 40% que responderam negativamente.

A maioria das pessoas ouvidas costuma praticar alguma atividade artística, com destaque para as relacionadas à música. “Na sequência, atividades de artes e ofícios, fotográfica e cinema e audiovisual são citadas por cerca de 20% dos entrevistados.”

Ampliando o leque:

Música, canto, banda e grupo musical, 29%

Artesanato, pintura e desenho, 24%

Fotografia, 19%

Cinema, filme e vídeo, 19%

Teatro, 10%

Dança e balé, 8%  

Circo e artes circenses, 5%

Atividade física e esportes, 3%

Crochê e costura, 1%

Culinária, 1%

As três últimas atividades foram citadas espontaneamente entre as pessoas que, subentende-se, as consideram artísticas.

Segundo o relatório, as atividades culturais e físicas são mais citadas à medida que aumenta a escolaridade e a classe econômica do entrevistado e diminui a idade. Já as culturais são mais frequentemente mencionadas entre as mulheres, enquanto as físicas, pelos homens. “As atividades de mídia [TV, internet e celular] são tendencialmente mais citadas pelas mulheres e entre os que não trabalham.”

O percentual de quem pratica atividades artísticas tende a ser maior entre moradores da região metropolitana de São Paulo (64% em relação a 56% na mesma área do Rio de Janeiro), entre os entrevistados com escolaridade superior (69% em comparação a 50% do ensino fundamental) e entre os integrantes das classes A/B (70% ante 52% das classes D/E).

Ainda acerca da apuração espontânea e múltipla relativa às atividades de lazer e culturais mais citadas, vale a pena detalhar sua abrangência:

Atividade cultural, 34%

Atividades físicas (praticar esportes), 32%

Atividades de mídia (TV, internet e celular), 32%

Passear (praia, parques e praças), 30%

Atividade social (família e amigos), 16%

Atividade doméstica (arrumar a casa), 11%

Descansar, 8%

Prática ou estudo cultural (manual, corte e costura e dança), 8%

Brincar e jogar (jogos eletrônicos, jogo de salão), 8%

Bares e restaurantes, 7%

Atividade religiosa, 7%

Turismo (viajar), 6%

Fazer compras, 5%

Beber, fumar e comer, 3%

Trabalhar e estudar, 2%

Na gangorra das dinâmicas presencial e online, reflexo do período crítico da pandemia, 2023 teve entre as atividades mais comuns, de acordo com a maioria dos entrevistados, em ordem de preferência: ouvir música, assistir a filmes em streaming, acompanhar séries online e participar de eventos ao ar livre.

Assim, no ano passado, 60% frequentaram eventos em espaços públicos, o que denota a relevância de se programar ações voltadas às artes da cena e do corpo em praças, parques, largos e outras localidades afins. Implantar ou reforçar políticas públicas para a cultura que vão na contramão do estorvo que certas prefeituras e câmaras municipais geram ao burocratizar ou mesmo bloquear o trabalho de artistas de rua.

Os centros culturais foram frequentados por 19% das pessoas em 2023; espetáculos de dança, por 18%; de circo, 12%; festivais de dança, teatro ou literários, 11%; e espetáculos de teatro, 11%.

Dentre as atividades com taxas superiores de pessoas que nunca as realizaram (acima de 60%), sempre conforme o relatório, estão festivais de música/dança/teatro/literário, oficinas de criação para crianças, webinars, sarau, visita guiada em museus e exposição, seminário e aulas e/ou oficina de arte.

Saber que 72% da população declaram – e não apenas referente a 2023, mas ao longo da existência – jamais ter vivenciado uma jornada cênica de espetáculos e atividades formativas e reflexivas pensadas por uma curadoria que ausculte seu território, isso diz muito a propósito do potencial de recepção a festivais, gregários por natureza. Essas iniciativas também merecem mais atenção e dignidade por parte de gestores públicos nas esferas municipal, estadual e federal, bem como de empresas privadas que praticam isenções fiscais.

Não muito longe desse quadro, 58% jamais assistiram a uma apresentação de teatro na vida, 54% de dança e 36% de circo, seja sob lona ou a céu aberto.

Instadas a apontar as atividades que fizeram presencialmente com maior frequência em 2023, 8% das pessoas mencionaram sessão de circo, 5% de dança e 4% de teatro.

De acordo com a equipe que consolidou a amostra: “Os eventos ao ar livre em espaços públicos são os mais comuns entre os entrevistados, embora essa escolha seja menos citada entre aqueles com níveis mais elevados de escolaridade e os pertencentes às classes A/B. Shows de música e idas ao cinema ocupam a segunda posição entre as atividades mais frequentemente realizadas presencialmente, sendo que o cinema é especialmente popular entre os mais jovens, empatando com eventos ao ar livre em primeiro lugar”.

Cristiana Dias Cena de ‘Círculos que não se fecham… Experimento n.1’, espetáculo da Trupe Circus, da Escola Pernambucana de Circo, em apresentação no Festival de Inverno de Garanhuns, em 2011

Para a questão sobre qual atividade cultural gostaria que acontecesse na sua cidade, mas nunca teve, 46% relataram sentir falta de algumas em seu cotidiano, cenário mais frequentemente sinalizado por habitantes do interior e de municípios de menor porte. Entre as atividades mais lembradas para preencher essas lacunas estão música/cultura/arte (com 35% de citações) e teatro/teatro ao ar livre (com 10%).

Sobre locais onde realiza atividades ou programas culturais, em resposta estimulada e múltipla, as praças e os parques são mais mencionados, seguidos de shoppings, cinemas e escolas, a saber:

Praças, 71% [sendo 74% de respostas de moradores de municípios de pequeno porte]

Parques, 63% [75% dessas pessoas são de classe A/B; 67% brancas; e 64% evangélicas]

Shoppings, 55% [77% de pessoas de classe A/B; 70% têm ensino superior; 63% se autodeclaram brancas; e 56%, evangélicas]

Cinemas, 42% [62% das pessoas ouvidas têm entre 16 e 24 anos; 68% possuem ensino superior; 68% são de classe A/B; e 40% se autodeclaram evangélicas]

Escolas, 41%

Clubes, 34%

Teatros, 24%

Bibliotecas, 20%

Museus, 19%

Igrejas, casas religiosas, 4% [menções espontâneas]

Atividades ao ar livre, 4% [menções espontâneas]

CEUs, 2% [sendo 33% na cidade de São Paulo, onde funcionam atualmente 46 Centros Educacionais Unificados]

Outro, 4%

Nenhum, 7%

Na hora de falar em dinheiro, as atitudes das pessoas frente aos gastos com cultura indicam que 17% frequentemente as evitam devido ao fato de serem pagas, enquanto 30% as acessam ocasionalmente e 29% costumam realizá-las tanto quando cobradas ou gratuitas. Por outro lado, 23% não fazem nenhuma atividade ou programa cultural pago.

“Em uma situação hipotética em que uma atividade gratuita passasse a ser paga, constatou-se que 53% estariam dispostos a desembolsar até R$ 50,00 para participar, enquanto 23% estariam dispostos a gastar mais de R$ 50,00. Além disso, 12% dos entrevistados indicaram que não estariam interessados em pagar por essa experiência”, complementa o relatório.

Lançando mão de técnica quantitativa, com abordagem híbrida, telefônica e presencial, em pontos de fluxo populacional, a pesquisa que captou informações sobre os hábitos culturais teve como público-alvo homens e mulheres de diferentes estados, com idades entre 16 e 65 anos, além de integrantes de todas as classes econômicas.

A entrevista com cada uma das 2.405 pessoas durou em média 25 minutos para ser aplicada. O trabalho de campo aconteceu de 1º a 28 de setembro de 2023.

Para tanto, a margem de erro máxima para o total da amostra é de 2 pontos percentuais, para mais ou para menos, dentro do nível de confiança de 95%. O relatório afirma ainda que ao longo dos cruzamentos da pesquisa, a cor negra é cor parda somada à preta.

Os dados acima subsidiam pensar o lugar de públicos nas artes cênicas brasileiras e chegam no momento em que o governo Lula entra no segundo ano da gestão desafiada a reconstruir as políticas públicas do Ministério da Cultura, ele mesmo que voltou à vida, extinto duas vezes desde sua criação, em 1985.

Brasil ontem, Argentina hoje

Por contraste, em chave trágica que o Brasil conheceu de perto com o grupo político antecessor no poder, a vizinha Argentina enfrenta o desmonte criminoso em setores públicos essenciais como saúde, educação e cultura.

São dramas históricos urgentes e em certa medida simétricos.

Um dos alvos do presidente Javier Milei, de ultradireita no espectro político, empossado em 10 de dezembro de 2023, é o Instituto Nacional del Teatro, do Ministerio de Cultura (pasta que acabou de ser extinta para dar lugar à Secretaría de Cultura, conhecemos esse filme).

Criado por meio da Ley Nacional del Teatro número 24.800, de 1997, o INT é o órgão regulador da promoção e apoio à atividade teatral no país.

Em dezembro e neste janeiro, artistas, produtores e demais profissionais envolvidos com as artes cênicas promoveram um abraço simbólico ao edifício sede do INT, mesmo endereço do Teatro Regina, na região central de Buenos Aires.

Outros órgãos estruturantes do fazer artístico-cultural-científico argentino também estão ameaçados, como o Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), o Instituto Nacional de la Música (INAMU), o Fondo Nacional de las Artes (FNA), a Comisión Nacional de Bibliotecas Populares (CONABIP) e o Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Todos estão aliados ao INT e demais sindicatos dos trabalhadores e associações da sociedade civil no engajamento à greve nacional de 24 de janeiro, convocada pela Confederação Geral do Trabalho da República Argentina (CGT).

Em artigo publicado no jornal Página 12, no último dia 11, o cineasta Adolfo Aristarain, de 80 anos, diretor de filmes como Tiempo de revancha (1981) e Un lugar en el mundo (1992), crava no título que é hora de Ganar la calle hasta que caiga el Gobierno, chamando trabalhadores da cultura e a população em geral a ir às ruas para protestar.

Num dos trechos que traduzimos, Aristarain reage às medidas inescrupulosas em curso: “Eles não são piratas, não tinham chefe. Eles são Corsários. Eles trabalhavam saqueando territórios e tinham licença para navegar no curso do mar que escolhessem. Eles pagaram a parte acordada aos Impérios e ficaram com a sua parte. Eles não tinham país, apenas proprietários”, escreve.

A Argentina passa por um teste cruel para saber até que ponto seu povo vai se empenhar contra os desmontes dos sistemas de educação, saúde, cultura, seguridade etc.

Coronel Mostarda Artistas da Cia. Domínio Público, de Campinas (SP), em ‘Posso dançar pra você?’, obra que se pretende equilibrar na fronteira entre a dança contemporânea, o teatro, a performance e a intervenção para um convite a encontros mais sensíveis, ao afeto e à quebra dos automatismos presentes nos espaços públicos urbanos

De volta ao panorama cultural da sociedade brasileira traçado pela pesquisa Hábitos Culturais, resgatamos uma passagem do episódio Uma conversa sobre gerações com Alexandre Kalache, que o podcast Finitude tocou em julho de 2021, quando a crise humanitária provocada pela Covid-19 ainda se fazia sentir profundamente sob Jair Bolsonaro. Formado em medicina havia meio século, o gerontólogo e epidemiologista presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil percorreu da velhice em si à falta de perspectiva da juventude.

“Que chance tem a garotada de hoje, que está submetida, já, a um governo semianalfabeto? Se falta letramento científico, letramento para a saúde nas mais altas autoridades, nós estamos ficando um país tosco. Quando um país fica tosco, não investe na arte, na cultura, na ciência, nós estamos desinvestindo. A universidade onde me formei, antiga Universidade do Brasil, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, não sabe se vai ter dinheiro para pagar a conta, que dirá as bolsas para a pós-graduação. Os laboratórios [estão] fechados, não têm água corrente, não têm eletricidade. É uma situação muito crítica, que não me deixa otimista não. A gente tem que ter um choque de realidade e a sociedade civil é que pode dar esse choque de realidade”, diz Kalache. “Temos que ser nós, sociedade civil, para gritar. Eu gosto muito desse papel. Poxa, eu fui líder estudantil nos anos 1960, não vai ser agora que alguém vai me mandar calar a boca.”

Numa hipótese disruptiva, trabalhadores de todos os campos da cultura e os públicos do Brasil – país que analistas políticos dizem cindido – resistiriam em jamais retroceder ao pesadelo de há pouco?

.:. Baixe e leia a pesquisa completa aqui.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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