ANOTA
8.7.2025 | por Teatrojornal
Foto de capa: José de Holanda
O novo e 14º espetáculo da Companhia de Teatro Heliópolis, A boca que tudo come tem fome (Do cárcere às ruas), que cumpre temporada de quinta (10) a 3 de agosto no Sesc 14 Bis – Teatro Raul Cortez, em São Paulo, traz à lembrança, por contraste, duas peças do santista Plínio Marcos (1935-1999): Barrela (1958), uma noite na cela em que seis presos estão sujeitos a regras próprias tão violentas quanto o sistema prisional do Estado, até que a chegada de um sétimo personagem irrompe descontrole; e, trinta anos depois, A mancha roxa (1988), que também se passa em uma cela, dessa vez em presídio feminino, mostrando seis personagens às voltas com perturbação física e psíquica ou doença que, à época, costumava ser associada à Aids, jamais mencionada no texto, tampouco qualquer outra enfermidade é nomeada.
Ambas configuram um retrato brutalista do que ocorria à época “atrás desses muros”, como dizia Marcos, a espelhar o desprezo de parte da sociedade brasileira por pessoas que praticam crimes, visão comumente atrelada à cor da pele, ao CEP.
Segundo a plataforma Observatório Nacional dos Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em fevereiro de 2025 o Brasil contava uma população prisional de mais de 850 mil pessoas, a terceira maior do mundo. Desde o ano 2000, esse número quase quadruplicou, expondo a crise perpétua do encarceramento em massa. Cerca de um terço das unidades foi avaliado com condições ruins ou péssimas entre 2023 e 2024. Como se sabe, há questões de classe e de raça, lotação, alta proporção de prisões provisórias, ou seja, que aguardam julgamento, múltiplas causas e consequências da falta de ressocialização, entre outras evidências históricas.
O olhar do Estado e da sociedade para as questões relativas à vida após o desencarceramento, que acomete geralmente pretos e pobres, ainda é muito restrito, inviabilizando a possibilidade de se viver dignamente
Miguel Rocha, encenador
Dois trabalhos anteriores da Heliópolis, [IN]JUSTIÇA (2019) e CÁRCERE ou Porque as mulheres viram búfalos (2022), problematizaram, respectivamente, o sistema judiciário e as agruras e condições das pessoas privadas de liberdade, assim como esses sintomas atingem diretamente seus familiares. Com dramaturgia de Dione Carlos e encenação de Miguel Rocha, cofundador da companhia há 25 anos, A boca que tudo come tem fome (Do cárcere às ruas) caminha em sentido oposto a Barrela e A mancha roxa: aborda a vida e os obstáculos enfrentados por pessoas egressas do sistema penitenciário e, para tanto, conjuga atuantes cujas presenças indicam construções sociais e culturais de feminilidades e de masculinidades.
A peça deseja jogar luz sobre a seguinte questão: “O que significa recuperar a liberdade?”. Em cena, igualmente seis pessoas que passaram por prisões brasileiras têm suas trajetórias entrelaçadas. Diante das dificuldades de reinserção social e reconstrução da própria vida, cada uma delas, a seu modo, tenta encontrar uma saída. As marcas do período que passaram atrás das grades permanecem na memória, no corpo e nos afetos. Exu, o orixá das encruzilhadas e destrancador dos caminhos, dentre as religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, aparece como uma presença provocativa ao despertar naqueles sujeitos a fome por novos começos e a avidez por dignidade.
Em seu Dicionário escolar afro-brasileiro (Selo Negro Edições, 2015), o compositor, cantor, escritor e estudioso Nei Lopes assim elabora o verbete “Exu”: “Orixá da tradição iorubana. De acordo com a filosofia iorubá, representa a síntese de todas as forças que regem o universo e possibilitam a existência, forças que se equilibram entre o negativo e o positivo, o bem e o mal, o quente e o frio etc., latentes em toda a natureza, como também ensinam as filosofias orientais. Na África, por não compreenderem essa dinâmica, antigos missionários católicos europeus confundiram Exu com o demônio dos cristãos, numa confusão que persiste até os dias de hoje”.
Segunda parceria com a Heliópolis, após CÁRCERE ou Porque as mulheres viram búfalos, Dione Carlos afirma que a peça “mergulha na subjetividade de figuras que lutam para sobreviver ao abandono social de toda uma vida (algo que persiste após o encarceramento)”, como escreveu em seu perfil numa rede social. Em síntese, uma escrita enquanto ato de visibilizar. “A chave da cadeia está nas mãos de Exu, que simboliza a encruzilhada pela qual passam estas pessoas. Banhadas por esta força, acompanhamos a saga de seis sobreviventes do sumidouro Brasil.”
A encenação de Miguel Rocha se dá em um espelho d’água, uma cenografia de Telumi Hellen, que usa a simbologia do deságue para o momento em que o egresso sai da prisão, quando percebe tudo como novo. O reflexo reporta ao aprisionamento das emoções, às vivências e memórias que afloram quando “a liberdade canta”. “A saída da prisão é um desaguar. A força da água tanto pode purificar como ser violenta, e o reflexo na água pode ser espelho que leva as personagens a encararem a própria situação”, diz Rocha.
Este é o ponto de partida para a imersão na realidade que se apresenta, nos obstáculos que enfrenta o sobrevivente do sistema carcerário para reafirmar a própria cidadania. “O cárcere não termina no cárcere” – é o que constatam as personagens que carregam o estigma de serem ex-detentos/tas, com o ônus de uma multa prisional a ser paga, com as dificuldades para reativar a documentação, os hábitos e experiências adquiridos na prisão, os fatores emocionais consequentes e os desafios e as armadilhas da liberdade que não raramente os levam à reincidência.
O espetáculo espera colocar em cena a carga que o passado representa na vida das personagens egressas da prisão, mas não se fecha nisso. A dramaturgia não se pretende determinista ao ponto de condicionar a experiência do cárcere à experiência do crime. “O olhar do Estado e da sociedade para as questões relativas à vida após o desencarceramento, que acomete geralmente pretos e pobres, ainda é muito restrito, inviabilizando a possibilidade de se viver dignamente”, afirma o diretor. “É fato que esse é um processo circular com as mesmas pessoas; as mazelas sociais se repetem nesse lugar de violência e invisibilidade, o que acaba sendo um entrave para a transformação. É preciso fugir desse ciclo para que haja mudanças. Nosso trabalho busca compreender e refletir sobre esse contexto histórico-social.”
A Companhia de Teatro Heliópolis busca sempre trabalhar com a perspectiva de histórias humanas em que a experiência estética é alinhada ao discurso. O texto, a música ao vivo, o figurino, o corpo em cena, a luz e as imagens criadas colaboram para a expansão do discurso. “Nosso desafio não é somente contar a história, mas como contá-la. Todos esses elementos são costurados, tecendo a cena que queremos apresentar. O que fazemos é teatro, então procuramos extrair a poesia contida mesmo nos temas mais densos para propiciar ao espectador experiência artístico-poética”, ambiciona Rocha.
A boca que tudo come tem fome (Do cárcere às ruas) resulta do projeto “Do cárcere às ruas: O estigma da vida depois das grades”, contemplado na 43ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. A pesquisa parte da premissa de que o encarceramento deflagra traumas, comportamentos e perspectivas que inevitavelmente estarão presentes na retomada da vida. Intenta compreender as consequências do aprisionamento nas tentativas de adaptação fora da prisão e na reconstrução das vidas.
Rocha ressalta a dificuldade em encontrar material, tanto acadêmico quanto artístico e literário, sobre o assunto. Para aprofundar no tema, a companhia realizou entrevistas com egressos na comunidade de Heliópolis e em instituições de acolhimento e de ativismo em prol do desencarceramento e abolicionismo penal. Bem como organizou o Ciclo de Debates Públicos, em fevereiro de 2025, com quatro encontros abertos e gratuitos para discutir com a plateia e com seus integrantes o eixo temático.
Na ocasião, participaram o assistente social Fabio Pereira, articulador político da Amparar (Associação de Familiares e Amigos de Presos/as e Internos/as na Fundação Casa) e membro da Frente Estadual pelo Desencarceramento de SP, da Agenda Nacional Pelo Desencarceramento e da RIMUF (Red Internacional de Mujeres Familiares de Personas Privadas de la Libertad), com o subtema “Rede de apoio: a volta ao convívio”; o rapper e compositor Dexter, o Oitavo Anjo, com “Fora das grades: história em primeira pessoa”; a psicóloga Tempestade, uma das percursoras do movimento anticárcere, em São Paulo, sobrevivente do sistema prisional, integrante da Frente Estadual pelo Desencarceramento SP e idealizadora do mutirão nas saidinhas das unidades prisionais femininas da capital paulista, com “Retomar a liberdade, recuperar a cidadania”; e o professor Vicente Concilio (Universidade do Estado de Santa Catarina), ancorador do projeto pedagógico Práticas de Infiltrações das Artes Cênicas em Espaços de Vigilância e coordenador de oficinas de teatro no Presídio Feminino e no Centro de Internação Feminina (Socioeducativo) em Florianópolis, com “Imaginar uma nova vida: o teatro e o pós-prisão”.
Os debates contaram com participação da mediadora Maria Fernanda Vomero, jornalista, doutora em Artes Cênicas (USP) e orientadora criativa de processos artísticos, a exemplo da conciliação do trabalho de provocadora teórico-cênica na montagem da companhia prestes a estrear. O processo criativo somou ainda, na qualidade de comentadores, o artista afro periférico, músico e historiador Salloma Salomão e o jornalista e escritor Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
[Este conteúdo tem apoio do Sesc São Paulo]
Serviço
A boca que tudo come tem fome (Do cárcere às ruas)
Companhia de Teatro Heliópolis
De 10 de julho a 3 de agosto.
Quinta a sábado, 20h, domingo, 18h. Sessões com libras: 24 e 25/7, quinta e sexta, 20h. Sessões com libras e audiodescrição: 26 e 27/7, sábado, 20h, e domingo, 18h.
Sesc 14 Bis – Teatro Raul Cortez (Rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista, tel. 11 3016-7200).
135 minutos | Livre | Acessibilidade | 523 lugares.
R$ 60 (inteira), R$ 30 (meia-entrada) e R$ 18 (credencial plena).
É possível comprar direto nas bilheterias das unidades ou pelo link https://www.sescsp.org.br/programacao/do-carcere-as-ruas/.
Ficha técnica
Concepção geral e encenação: Miguel Rocha
Dramaturgia: Dione Carlos
Elenco: Cristiano Belarmino, Dalma Régia, Davi Guimarães, Jucimara Canteiro, Klavy Costa e Walmir Bess
Música original e direção musical: Alisson Amador
Música A benção: Júlia Tizumba
Música em cena: Alisson Amador, Amanda Abá, Denise Oliveira e Nicoli Martins
Cenografia: Telumi Hellen
Assistente de cenografia: Nicole Kouts
Figurino: Samara Costa
Assistência de figurino: Clara Njambela
Iluminação: Miguel Rocha
Provocação vocal: Alisson Amador, Edileuza Ribeiro e Isabel Setti
Direção de movimento: Erika Moura e Miguel Rocha
Provocação corporal: Erika Moura
Oficinas de dança: Ana Flor de Carvalho, Diogo Granato, Janette Santiago e Marina Caron
Criações coreográficas: O coletivo, Erika Moura, Diogo Granato e Janette Santiago
Provocação teórico-cênica e mediação do ciclo de debates: Maria Fernanda Vomero
Estudos em teatro épico, performance e dança: Alexandre Mate, Murilo Gaulês e Sayonara Pereira
Operação de luz: Gabriel Rodrigues
Operação de som: Lucas Bressanin
Microfonação: Katheleen Costa
Cenotécnia: César Renzi
Convidados do ciclo de debates: Fábio Pereira, Dexter, Tempestade e Vicente Concílio
Comentadores: Bruno Paes Manso e Salloma Salomão
Assessoria de imprensa: Eliane Verbena
Coordenação de comunicação: Luiz Fernando Ferreira
Assistência de comunicação: João Teodoro Junior
Fotografia: José de Holanda
Registros do processo de criação: João Guimarães
Edição de textos para o programa da peça: Maria Fernanda Vomero
Direção de produção: Dalma Régia
Produção executiva: Álex Mendes e Miguel Rocha
Idealização: Companhia de Teatro Heliópolis
Realização: Sesc São Paulo.