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“Diario de Mogi"

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O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 26 de outubro de 1997.   Caderno A – 6

Tusp resgata 30 anos depois, o espírito de 1968 na peça histórica de Consuelo de Castro 

VALMIR SANTOS

São Paulo – Passaram-se quase 30, anos, e 1968 continua dando o que fa­lar. “Prova de Fogo”, a primeira peça de Cansuelo de Castro, foi escrita naquele ano. O texto, a­gora encenado pelo grupo Tea­tro da Universidade de São Pau­lo (Tusp), soa datado em boa parte do seu conteúdo ideológi­có. Bill Clinton visitou o Brasil há poucos dias e não se viu grandes mobilizações anti-im­perialismo ianque, como se rotulava o bicho-papão capitalista em tempos idos.

Descontado o blablablá infi­nitesimal sobre os papéis hístó­ricos da esquerda e da pequena burguesia, o que realmente con­tinua chamando atenção em “Prova de Fogo” é a inconformação pungente dos seus perso­nagens. Três décadas atrás, os estudantes não precisavam de minissérie televisiva para sair às ruas.

A força da união, com per­dão do clichê, é a essência da peça de Consuelo de Castro. Seu olhar é coletivo. Quando cria atalhos para os relacionamentos amorosos, os diálogos perdem o brilho. Os paralelos pessoais, mesmo resvalando no comportamento da geração 68 (virgindade, aborto e fidelidade, remas recorrentes), são ofusca­dos pelo eixo político-social.

Nesta seara, Consuelo revela domínio pleno. Ela tinha 22 a­rios quando deu à luz sua primeira peça. Engajada no movimento estudantil à época, a au­tora escreveu do olho do fura­cão. A montagem do Tusp, sob direção de Abílio Tavares, privi­legia esta tensão e centra fogo no coletivo.

São 28 atores, boa parte de­les universitários sequer nasci­dos em 1968. No geral, de­monstram pouca intimidade com a arte da representação. As marcações de cena são visí­veis; toda a movimentação é rí­gida, “dura”, inclusive nas pou­cas coreografias.

A “moldura”, que esconde muito da espontaneidade, é compensada pela energia bruta do “coro”. É ali que Tavares explora toda a potencialidade des­ses jovens aguerridos. A rebel­dia juvenil como conteúdo hu­manista está na intenção dos gestos; nos gritos de guerra; na disparada pelo palco-corredor do prédio da rua Maria Antonia, mesmo local onde se deu o con­flito em 1968.

Um grupo de estudantes o­cupa a Faculdade de Filosofia e Letras da USP (hoje endereço do Centro Universitário Maria Antonia). Protestam contra a re­forma educacional do governo e endossam o descontentamento dos operários no País. A polícia dá ultimato de três dias para o prédio ser abandonado. “Prova de Fogo” se passa nesses eter­nos três dias, cruzando ficção e realidade.

Os universitários não cedem. A polícia, truculenta ao dobro naquela épo­ca, porque balizada pelo regime totalitário dos militares, invade o prédio e prende pelo menos 80 estudantes. Antes do cerco, a re­pressão havia matado um estudante que par­ticipava de uma passe­ata.

Abílio Tavares foi muito feliz na abertu­ra e fechamento do es­petáculo, com Luis (Milton Gruppo Jr.), o estudante assassina­do. Primeiro, ele sur­ge ingressando na es­cola. Depois, se des­pede para, em segui­da, morrer estirado no chão. Nas duas ocasi­ões, sempre com o “testemunho ocular” da bandeira do Brasil. Passado e presente se encontram com recur­sos cênicos simples e eficientes.

A história de Con­suelo de Castro parece um roteiro de filme, tanto impõe-se a ação, do início ao fim. Na montagem, destacam-se o cortejo das mães e a cena da invasão, com o corre-corre, gritos, tiros e bombas de gás simulados pela coreografia e pelo espocar de bombinhas.

Não há grandes intepretaçõ­es. Álvaro Franco (Zé Freitas) tem o melhor desempenho, colocando bem a palavra, fazendo conciliar os lados Don Juan e re­volucionário do líder dos estudantes. Dar peso e cadência às falas é o que falta a Cléuma Nu­nes Argolo (Júlia). O papel de a­mante e opositora em causa comum constitui, em si, um desa­fio que não é vencido em sua plenitude, por causa do desperdício das pausas. Boa surpresa Marília de Santis (Vilma) cantando ao violão. Idem para o bêbado de Regis Salvarani (Alberto), bambean­do com segurança, sem fazer uso da caricatura. Quando atira sua arma imaginária contra as mazelas, apontando para a pia­téia, esta engasga o sorriso com um silêncio pertubador.

Em 1993, Aimar Labaki montou a mesma peça, no mes­mo local. O público seguia os a­tores em algumas salas do pré­dio. Com elenco maduro, por assim dizer, o espetáculo inves­tia mais na interpretação. Havia densidade nas cenas.

Aqui, na “Prova de Fogo” do Tusp e Abílio Tavares, importa mais o trânsito, a “ponte” de uma geração reprimida, mas inquieta, para uma geração Coca-Cola, “livre” mas amorfa. Caíram os muros, os “ismos”. E os 28 atores que picham a parede, urram e aplaudem-se ao som de Legião Urbana estão a reivindi­car todo o tempo do mundo. In­felizmente, a urgência dos tempos está aí. Por um instante, movido pelo impulso daqueles estudantes, a utopia parece se instalar. Contudo, é sair do teatro e lá vêm as imagens da exposição, no próprio saguão, das fotos terríveis de corpos de judeus mortos pelo regime nazista… Ontem, hoje e sempre?

Prova de Fogo – De Consuelo de Castro. Direção: Abílio Tavares. Com Tusp (Mariana Voos, Pedro Luis Sanches, Alexandre Lima, Anderson Silva Lins, Andréa Reis etc). Segunda a sábado, 21h; domingo, 20h. Centro Universitário Maria Antonia (rua Maria Antonia, 294, Santa Cecília, tel. 255-5538) R$ 10,00 e R$ 8,00 (sexta) 100 minutos.

 

“Peep Show” diverte sem compromisso

São Paulo – O descompro­misso é a própria razão de ser de “Peep Show”. Um musical? Uma revista? Um show? Todos. O espetáculo pa­rece o tempo todo em cena aber­ta. As 17 moças e os três rapazes dão conta de entreter com pouco samba no pé e muitas gags em torno do universo dos peep shows – cabines onde as garotas fazem striptease mediante de­pósito de ficha no caça-níquel (“Paris Texas”, 1976, o filme de Win Wenders, propagou este í­cone voyeur).

Os diretores Maurício Mo­rais e Marcos Botassi instalam um clima de boate no palco. Melhor, estendem o agito até às poltronas. Entra-se no Teatro Hilton e lá estão as peeps, as dançarinas voluptuosas em suas plumas e peças diminutas.

A história trata das tentativas ingratas de um cliente, Joel Ju­bileu (Antonune Nakhle), na escolha da moça que se encaixe no seu objeto do desejo: aquela que saiba sambar com molejo origi­nal.

Quem comanda a casa é Tâ­nia Tubarão (Eliete Cigarini). Sob suas ordens, as garotas en­carnam fantasias para atender ao menu de homens exigentes. Assim, Rose Rímel (Adriana Mattos), Pamela Power (Cibele Cavalli), Priscila Pistache (Cláudia Cavalheiro), Tina Thinner (Heloísa Nur), entre outras, vão desfilando suas “qualidades” para um insaciável Joel Jubileu.

Em meio ao périplo do cliente, desenrola-se a disputa pelo “ponto” das garotas, a chegada de “carne nova”, Fifi Frontal (Christina Guimarães) e o galentaio do soldado Rigobelo; (Tico D’Godoy).
 

Peep Show – De Maurício Morais e Marcos Botassi. Com Andréa Duque, Paula Miroe, Paulo Mendes, Veridiana Toledo e outros. Sexta e sábado, meia-noite. Teatro Hilton (rua Ipiranga, 165, Centro) R$ 20,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 12 de outubro de 1997.   Caderno A – 3

VALMI
R SANTOS

Maisuma Mostra Escolar de Teatro. A quarta edição do evento representa o esforço do diretor de Cultura, Denerjanio Tavares de Lyra, no exercício da manutenção da cena mogiana. Infelizmente, a realidade conspira sem muito alento para este que é mais um dos eventos temporões aos quais a cidade se acostumou nos últimos anos.

O projeto Oficinas de Inverno, sempreem julho, o carro-chefe da Cultura, é o melhor exemplo desta concentração que não aponta nenhum caminho, a não ser o da fragmentação, do estilhaçamento de qualquer processo criativo.

Ou alguém ainda acredita que um oficina de iniciação teatral de um mês torna qualquer pessoa capacitada para subir ao palco e dizer a que veio? Falta, e sempre este crítico insistiu na tecla, um trabalho efetivo que fundamente o ofício de ator. Na cidade, temos um esboço do TEM e do Tumc. Cada um a seu modo, Clarice Jorge e Adamilton Andreucci Torres disseminam suas utopias possíveis – ou não.

Para a consolidação de um grupo teatral, de escritores, de artistas plásticos, de músicos, enfim, qualquer que seja o chão de estrelas, o tempo é precioso. O amadurecimento criativo por vezes dura uma geração. Nada surge do acaso.

Teatro escolar raramente dá em bom teatro. O que se espera de uma mostra como a que começa quarta-feira é justamente o mínimo da aventura do palco, do mergulho artístico para trazer à baila a magia da comunicação ator-público. Um pouco desta aventura foi proporcionado em mostras anteriores, com destaque para os trabalhos ancorados por Robson Santos e de Eliene Rodrigues.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 12 de outubro de 1997.   Caderno A – 4

Berliner Ensemble questiona a canonização do mito, seus herdeiros e a falta de verba

VALMIR SANTOS

São Paulo – Problemas, problemas, problemas… Quer na boca do primeiro-ator do grupo, Martin Wuttke, 35 anos, quer na boca do as­sistente de direção, Stephan Suschke, 36, trata-se da palavra mais repetida quando o assunto diz respeito ao Berliner Ensem­ble. Da “sombra” do seu funda­dor e ideólogo, Bertolt Brecht (1897-1956), passando pela marcação cerrada dos herdeiros, pelo patrulhamento político-ideológico após a queda do Mu­ro de Berlim (1989), até o recor­rente aperto financeiro, enfim, vários são os obstáculos enfren­tados pela lendária trupe alemã criada há 48 anos.

São notas destoantes tocadas sem constrangimento, aliás com muita transparência, por Wuttke e Suschke, na conversa com os jornalistas brasileiros na quarta-feira passada, véspera da estréia de “A Resistível Ascensão de Arturo Ui”. A montagem foi en­cenada quinta e sexta, no Teatro Sesc Anchieta, e marcou a primeira turnê do Berlilner Ensem­ble pelo País, com apoio do Ins­tituto Goethe.

Wuttke fala dos problemas com conhecimento de causa. Ele foi diretor artístico da com­panhia durante nove meses, lo­go depois da morte de Heiner Müller, no final de 1995, que in­clusive assina a direção do espe­táculo apresentado em São Pau­lo. Wuttke abdicou do cargo jus­tamente por causa da “canoni­zação” que ainda cerca a obra do dramaturgo alemão.

“Os herdeiros da família de Brecht e muitos políticos ainda vêem a obra como se fosse um museu. Quem tem idéias novas encontra muita resistência”, ar­gumenta o ator.

No contexto ideológico, o entrave é a revisão histórica pela qual o mundo geo-político vem passando nos anos 90. Para Wuttke, o teatro político como instrumento revolucionário não se sustenta mais com o panora­ma atual. Uma alternativa, des­taca o ator, seria encontrar uma terceira via, fiem à esquerda, nem à direita, que permita um novo ponto de vista.

Por trás dos seus óculos es­curos, com pinta de ator cine­matográfico, Wuttke aprofunda sua análise. Na cena alemã, o Berliner Ensenble constitui uma das últimas resistências ao cha­mado “teatrão”, aquele que reza segundo o lucro comercial. “Hoje, nossos palcos correm atrás dos sucessos da TV e do ci­nema”, critica.

Conseqüentemente, mudou também a percepção do público. Antes do Muro cair, predomina­vam os espectadores do lado o­riental da cidade. Hoje, a platéia é formada basicamente por gen­te que tem o olhar ocidental co­mo parâmetro de espetáculo. “Antes, comprava-se cinco in­gressos com o valor de uma camiseta. Hoje, o custo de cinco camisetas equivale a um ingres­so”, compa­ra o assis­tente de di­reção, Stephan Suschke. Ao que pa­rece, o péri­plo para se levar uma montagem ao palco, nos tempos que correm, é tão co­mum aqui quanto lá fora.

E por fa­lar em di­nheiro, os represen­tantes do BE não re­velam o va­lor, mas ga­rantem que o subsídio do governo alemão re­duziu consi­deravelmente nas últimas temporadas. Para man­ter uma equipe média de 30 pessoas, incluindo o elenco de 22 atores, é preciso muito fôle­go administrativo. O que Wutt­ke provavelmente percebeu, de­cidindo canalizar toda sua ener­gia para o palco – o empreendi­mento, no caso, é de grande montagem, mas condizente com sua condição de artista maior, co­rno os críticos do seu país reco­nheceram quando da estréia de “Arturo Ui”, em 1995, outogan­do-lhe o prêmio de melhor ator daquele ano.

Wuttke, é claro, não chegou a conhecer Brecht. Ele não mitifica tanto as teorias do ho­mem que catalisou a revolução teatral na Alemanha pós-guer­ra. Na sua opinião, a técnica do distanciamento se tornou lugar comum em qualquer montagem nos quatro cantos do planeta, como uma incorporação ele­mentar. “Um personagem mau tem que ter algo de bom tam­bém, e vice-versa. Se for uma, coisa só, fica muito chato”, explica. Ele faz bagle das milha­res de toneladas de papéis gas­tos em livros que mais teorizam sobre o distanciamento do que realmente o levaram à sua prá­tica.

Peça adapta gângster para o regime nazista

São Paulo – “A Resistível Ascensão de Arturo Ui” foi escrita por Brecht em 1941, durante o exílio na Finlândia. Ele se inspirou na Chicago de Al Capone e suas guerras de gansters para reproduzir sua época e o período nazista. Go­ebbels, o homem que ascendeu Hitler, por exemplo, é um dos personagens mais explícitos.

A crítica de Brecht, porém, transcende o nazismo. O dramaturgo quer desacreditar também a sociedade sem es­crúpulos, dominada por egoís­tas e arrivistas, o mundo sem solidariedade do capitalismo.

“Arturo Ui é um papel fas­cinante. Ele é um bom entretai­ner”, observa o intérprete Mar­tin Wuttke. A turnê brasileira do Berliner Ensenble foi des­falcada pelo ator veterano Ber­nhard Minetti, 90 anos,com problemas de saúde. Sua per­formance no papel de Ator (dentro da peça) é uma das mais elogiadas pela crítica tea­tral alemã.

O BE foi fundadopor Helena Weigel e Brecht em 1949. Após a morte do autor, em 1956, Helene continuou seu trabalho. Como sucessores dela, passaram pelo grupo Ruth Berghaus e Manfred Wekwerth – até que no início da temporada 1992/93 o BE foi transformado de teatro municipal em companhia limitada. 


Wuttke comanda espetáculo

São Paulo – Não foi por acaso que Charies Chaplin associou o seu célebro personagem Carlitos à figura de Adolf Hitler. Há muito de cômico na expressão gestual do ditador. A começar pelo bigodinho indefectível. Pois o ator Martin Wuttke e a encarnação dos dois no papel de “A Resistível Ascensão e de Arturo Ui”.

E ele, Wuttke, o dono do es­petáculo. Nas apresentações do Berliner Ensemble no Teatro ­Sesc Anchieta, quinta e sexta-feira passadas, o que se viu foi um trabalho esmerado de ator.

Wuttke traduz em trejeitos, cacoetes e andar manco a personalidade esquizofrênica do mafioso criado por Bertold Brechet. Um texto interpretado em alemão, com tradução simultânea, e ainda assim o ator vence a barreira da língua para ter o público em suas mãos. Não foram poucas as gargalhadas em quase três horas de encenação.

A montagem de “Arturo Ui” por Heiner Müller é estupenda pela matéria-prima humana. Em cena, 22 atores tarimbados, de técnica apurada, com destaque para Hermann Beyer (Roma), Stefan Lisews ki (Dogsborough) e Michael Altmann (ator).

 

Espetáculo abençoa a imagem como ela é

São Paulo – “Uma contradi­ção dialética, sem síntese”.

A frase que o Papa/Zé Cel­so diz no canto 2 dos seus “solu­ços” capta muito bem a alma deste artista seminal e controver­so da cena teatral brasileira. Seu espetáculo mais recente, “Ela”, expõe um ator e encenador em plena forma, a sustentar sua arte no corpo quebradiço pelos 60 anos, humano que é, mas alicerce do Teatro Oficina.

Expõe não, escancara. É na porralouquice, na quebra de qualquer resquício de organiza­ção, de ordem, num alheamento ímpar, que a companhia Uzyna Uzona conspira para fazer valer a energia bruta da atuação. A marca dionisíaca, como em “Ham-let” ou “Bacantes”, está lá no “corredor” arquitetado por Lina Bo Bardi. Qual espetáculo deixaria o público esperando do lado de fora, cerca de 50 minutos, enquanto atores e cenógrafos estão a pendurar no teto do teatro os retratos gigantes de Cacilda Becker e João Paulo 20, ambos decorados com bexigas douradas, reluzentes? Claro, não há nada de vanguarda nisso. Ao contrário. Na estréia houve gente que até reclamou. Assim que abriram-se as portas, porém, o que importava então era a festa.

“Ela” começa, enfim. A sensação de faxina que a cenografia imprime condiz com a “limpeza”, o “enxugamento” do elenco. Não está em cena o jogo coletivo, a ocupação desesperada do espaço, mas a fluência requerida de cada um dos intérpretes. A exigência é maior.

José Celso Martinez Corrêa, Zé Celso, serviu de epicentro no mesmo dia em que seu personagem real beijava o solo do Rio de Janeiro. Sob o signo de Jean Genet, ou São Genet, dramaturgo francês morto em 1986 (“O Balcão”, “As Criadas”, “Pombas Fúnebres”), o ator surge vitalizado, senhor absoluto do espetáculo.

Em suas vestes papais, alvas; em sua máscara facial que equilibra a expansão de um Marcel Marceau (Bip) ou a introspecção de um Kazuo Ohno, Zé Celso canta, dança e domina o verbo com envolvimento. De onde quer que se sente, mesmo quando a visão é prejudicada pela estrutura da arquibancada, é impossível não prestar atenção nele.

O Mestre de Cerimônias (Marcelo Drummond) recepcina o Fotógrafo (Fransérgio Araújo) para tomar imagens do Papa (Zé Celso). Um Cardeal (Vadim Nikitin), um doidivanas, chega a ser confundido com Sua Excelência. Os quatros, sobretudo os três primeiros, estabelecem diálogos em que predomina o tom filosófico, existencial.

“Se são meus olhos, não será Ela. Se é Ela, não serão meus olhos”, divaga o Mestre de Cerimônias, numa performance segura de Drummond, um cecerone diante da platéia. “Só porque sou Papa não passo de pose?”, dispara Zé Papa, preocupado em encontrar um ângulo que o aproxime mais de Deus – de olho nos 15 milhões de “selvagens” que esperam pela graça dos santinhos. A imagem, Ela, só é atingida quando Zé Papa senta no penico. Mas “papa não tem c…”, desconsola-se.

As melhores passagens acontecem nos “soluços” divididos em cinco cantos. Os três declamados por Zé Papa destacam-se pela presença cativa do ator – movimentos leves, inclusive tocando ao piano, como num musical da Broadway nos anos 50.

Bastante oportuna a montagem. “Ela” destoa do coro hipócrita da Imprensa em torno do poder do Vaticano. “Ela” celebra Genet em seu corte mais uma vez profundo de um modelo hegemôni­co de sociedade que tanto desprezou em vida, sob a perspectiva do porão, do subsolo. “Ela” faz as pazes de Zé Celso com a cena aberta em grande estilo, com o público nas mãos, sem necessariamente tangenciá-lo.

“Ela” é o risco equilibrado de quem perscruta os assim chamados deuses do teatro. Atirando-se contra a falta de dinheiro, o desamparo do Estado. Aventu­rando-se na maravilhosa contribuição dos erros e acertos que fazem de cada apresentação uma experiência única. Nesse terreno, Zé Celso é a benção em pessoa. 

Ela – De Jean Genet. Direção: José Celso Martinez Corrêa. Com Cia. Uzina Uzona. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 604-0678). R$ 20,00. Às quintas, todos pagam meia. No próximo, excepcionalmente, não haverá sessão. 90 minutos.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 05 de outubro de 1997.   Caderno A – 4

Atriz é destaque da montagem dirigida por Jorge Takla e centrada no mito datragédia grega

VALMIR SANTOS

São Paulo – Começa o es­petáculo e Medéia respi­ra fundo, arranhando o silêncio que é quebrado logo em seguida, com uma se­quência verborrágica de tirar fôlego, literalmente. O prólogo de Walderez de Barros, no pa­pel-título, escancara para o público, de chofre, que estamos diante de uma avalanche de emoção de estado bruto – e la­pidar.

Uma verdadeira dama do teatro brasileiro, a fazer páreo com uma Fernanda Montene­gro, uma Marília Pêra, Walde­rez é o álibi mais convincente do diretor Jorge Takla para a abordagem do mito na adaptação que fez para a tragédia grega. Takla visita os textos de Eurípe­des e Sêneca para singrar o ho­mem moderno e iluminar suas vicissitudes.

A Medéia que Walderez mostra é menos a mãe assassi­na, capaz de pôr fim à vida de seus filhos em nome do amor. Expõe, sim, a permissividade da alma em sua queda. Mata para punir Jasão, o marido que a troca por uma princesa. “Quero que eles sejam filhos de rei”, justifica um Jasão cal­culista, frio até à medula no seu invólucro de sábio. No trânsito entre os limites da loucura e da razão, Medéia é mo­vida pelo coração que bate em seu peito.

Sabe-se que clássicos não são para qualquer um. Paulo Autran esperou anos a fio para chegar aos pés de Rei Lear, le­vado à cena em temporada re­cente. Claro, Walderez não a­braçou Medéia por acaso. No palco do Sesc Anchieta, cada gesto, cada olhar, cada palavra a propagar pelo ar, tudo reverte em esplendor, em arrebatamen­to. Walderez é vibrante. Com seu corpo entranhado na perso­nagem, resta o desequilíbrio a­tordoante, o transe diante do ho­rizonte finito. Nada é desperdi­çado.

Na “Medéia” de Takla, ela é epicentro. O determinismo mas­culino da tragédia é como que dissimulado pela presença da a­triz. Jasão (Francarlos Reis), Creonte (Oswaldo Mendes) e o Coro (seis rapazes) giram em torno da mãe-esposa-abandona­da, depois expatriada, desolada. E tamanha a presença e a força de Walderez em cena, que a me­mória pesca a “Des-Medéia” de Denise Stoklos, aquela que dá a volta por cima e vira o jogo. Mas os mitos são mitos…

Como diretor de óperas, também, Jorge Takla dá um tratamento etéreo à montagem que confere com uma perspectiva contemporânea da tragédia. A luz que assina ao lado de Davi de Brito, imprime um visual di­fuso no tempo e no espaço. O cenário de Charles Moeller, com suas portinholas e paredes de re­boco, também acentuam essa distensão. O deslocamento do Coro e sua interação com os per­sonagens centrais tangencia a a­ção com fluência.

A montagem de “Medéia” conquista pela sua limpidez e concomitante visceralidade. Consegue ser funcional sem a­borrecer. Emociona pelo que há de mais sagrado no teatro: o ator. A diva Walderez de Bar­ros, esbanjando maturidade, le­va nas costas a grandiosidade do papel e a responsabilidade de ter o público nas mãos, do i­nício ao fim. Melhor: transcen­de, porque sua Medéia é me­morável.

 

Medéia – De Eurípedes e Sêneca. Adaptação e direção: Jorge Takla. Tradução: Mário da Gama Kury. Com Carlos Teixeira, César de Castro, Eliézer de Souza, Kao Monteiro, Otávio Juliano, Rodrigo Lombardi e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 20,00 e R$ 10,00 (comerciários e estudantes). Até 2 de novembro.

  

“Noturno” quer expurgar a modernidade

São Paulo – Nos seis anos de intervalo da estréia do musical “Noturno”, as mu­danças pessoais não foram me­nos aceleradas do que as glo­bais. Em 1991, a bandeira da paz e amor a la anos 70 já se mostrava defasada com os tem­pos de individualização sem fim. Agora, na reestréia, a sen­sação é de que o roteiro assina­do e dirigido por Oswaldo Mon­tènegro continua navegando contra a corrente.

Na cruzada contra “a moder­nidade clara”, contra “o mundo conformado”, o cantor e compositor de “Bandolins” faz um libelo à existência poética. Ou sseja, quer através da música transmitir toda uma filosofia de vida canalizada para o prazer.

“Noturno” exorciza a veloci­dade com o que resta de utopia possível. Desacelera para dar espaço ao sonho, à arte por ex­tensão.

É uma pretensão e tanta pa­ra uma platéia que beira o his­terismo a cada canção, urrando e aplaudindo como se num au­ditório de programa de TV.

A contradição, que se dá também dentro do palco, no e­lenco gigante de 60 jovens bas­tante esforçados – e empolgados – enfim, a contradição reflete o próprio estado de coisas a que chegamos: centenas de adoles­centes assistem ao que não têm condições de colocar em prática na vida real, por impotência, que seja, diante do “sistema”.

Como numa das falas do tex­to, os espectadores de “Notur­no” são jovens que, em sua mai­oria, saem à noite para procurar o que nunca vão encontrar. Não é à toa que o espetáculo lembra, em algumas passagens, o simi­lar que marcou época pelo seu conteúdo revolucionário: “Hair”, que chacoalhou o status quo norte-americano na década de 60, em oposição à Guerra do Vietnã.

Mas a “revolução” de “No­turno” não é tanto de ordem po­lítica ou estrutural; é iminente­mente pessoal, interior, de den­tro para fora.

Quanto à montagem, de vol­ta ao cartaz no Teatro Dias Go­mes, mantém muito da concep­ção original. Não há, como nos últimos musicais que vêm sendo apresentados nos palcos bra­sileiros, aquele virtuosismo téc­nico ou mesmo exarcebação es­tética.

Pelo despojamento das cenas e pela exploração dos espaços a­lém-palco, “Noturno” se assemelha a um trabalho circense, onde a performance física dos a­tores é exigida a todo instante.

 

LEITURA

Os quadros não seguem, a­parentemente, uma narrativa u­niforme. São músicas/histórias independentes, em que a leitura se dá mais pela interpretação vocal e pela movimentação coreográfica – esta muitas vezes “poluída” e ainda presa a uma marcação mecânica.

Quando se deixa levar pela dramatização, sempre recorren­do à comédia aberta, como em “Surfistas de Cristo”, o resulta­do é regular.

Falta um processo mais pro­fundo nas atuações. Sobra cari­catura gratuita, porém cara à hegemonia do projeto. A Oficina dos Menestréis, comandada por Deto Montenegro (irmão) e Candé Brandão, explora nos cursos de ator o reflexo, a per­cepção e a intuição.

No palco, em nome do que pode ser uma valorização ob­sessiva do gesto e do movimen­to, dá a impressão de que “ma­lhar” importa mais do que “atu­ar”, quando deveria ser o con­trário.

“Noturno” se sustenta mes­mo pela música. Maior evidên­cia disto é o lançamento do CD com as 19 canções do espetá­culo, com letras de Oswaldo Montenegro, Peter Gabriel, U2 e Prince (ops, ex), entre outros.

As interpretações de Tania Maya, Estela Cassilatti, Débora Reis, Eduardo Costa e Marcelo Palma traduzem na voz o espíri­to libertador proposto pelos au­tores. Em especial o trio femini­no arrebatador – Tania Maya, ressalta-se, é a Enya brasileira, com toda a sua peculiaridade preservada, como se viu em re­cente participação no show do “padrinho” Oswaldo Montene­gro. 

Noturno – Direção: Oswaldo Montenegro. Com grupo Oficina dos Menestréis. Segunda a terça, 21h. Teatro Dias Gomes (rua Domingos de Moraes, 348, próximo ao metrô Ana Rosa, tel. 571-6177). R$ 15,00. 75 minutos.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 14 de setembro de 1997.   Caderno A – 4

Nelson de Sá lança coletânea de textos sobre a cena teatral na metade dos anos 90

VALMIR SANTOS

São Paulo – Em cerca de nove anos de crítica, Nelson de Sá conseguiu imprimir um estilo bastante adverso dos seus contem­porâneos e predecessores na a­nálise jornalística do teatro. Sua atitude pouco condecendente cóm a chamada classe teatral, esquivo ao paternalismo macar­rônico, é um diferencial que de­põe em favor de uma ética mais do que jornalística, pessoal.

Se Frank Rich, o crítico do “New York Times”, é conhecido como “o açougueiro da Broadway, como Sá gosta de lem­brar, este seria então o equiva­lente no jornalismo brasileiro, guardado o devido tom sensaci­onalista. A contundência e a sem-cerimônia com que assina suas críticas na “Folha de S. Paulo” lhe rendeu, como se pra­xe, muitos “inimigos”. Mas, por outro lado, o respeito também fundamentou-se.

O distanciamento do perso­nalismo afetado de autores, di­retores e atores, laureados até final dos anos 80, permitiu ao crítico se ater somente ao objeto artístico, ao espetáculo em si. A troco de muitas réplicas, de mu­itas cartas desaforadas, de muita bílis destilada, o jornalista da “Folha” acabou diluindo um pouco da cultura protecionista em relação aos artistas de teatro. Chega de piedade e vamos à arte, que é o que interessa, parece ter exclamado.

Quando começou a escrever sobre teatro, Sá estava na casa dos 27, 28 anos. Em função da idade, trazia um desprendimen­to para transmitir ao leitor, alvo confesso, o que pressupunha verdade, por mais que às vezes subjetiva. Escrever para um jor­nal que endeusa a objetividade também foi – e continua sendo – desafio e tanto.

Teatro é arte de uma humani­dade infinita. Sintetizar a apre­sentação de uma peça com olhar hermético é sacrificar sua es­sência. Nelson de Sá surge na platéia sempre munido de blo­quinho, anotando falas/falhas. Se deixa respaldar pela técnica, obviamente, mas a percepção a­guda está lá, antenada com a emoção.

Não faz o gosto não gosto. Mas não tem pudor algum em concluir que uma peça é chata. Tampouco se esquiva da beleza de uma Bete Coelho, elogiando-a ­como bela, sim. Conceitos subjetivos, vale lembrar de novo, sobrepostos ao padrão jor­nalístico. Ele, crítico, também se permite um pouco especta­dor. Sentimento e razão, eis a dupla via.

São considerações prelimi­nares de quem acompanhou, na primeira metade desta década, boa parte das críticas publicadas na “Folha”. Elas estão agora compiladas em “Divers/Idade – Um Guia para o Teatro dos Anos 90”, lançamento da editora Hucitec. Aqui, Nelson de Sá reúne seus principais textos e produz um instantâneo do que se está levando nos palcos do Brasil e do mundo. A “orelha” é assinada por José Celso Marti­nez, enquanto a fotógrafa Leni­se Pinheiro responde pelo rico material ilustrativo.

De 90 a 96, o exercício da crítica representou também o amadurecimento do jornalista. Antes, Sá conheceu Miroel Sil­veira, trabalhou com Paulo Francis. Se angustiou pela in­fluência “avassalado­ra” de Décio de Almeida Prado, 80 anos, o pai da crítica tea­tral brasilei­ra. Essa formação é descrita no último texto do volume, adaptação de palestra sua no Festi­val Internacional de Londrina.

Em 479 páginas, a­companha­se o esforço obsessivo de Sá em inter­pretar para onde estão soprando os ventos do te­atro. Esta ânsia pelo novo, pelo crítico-ante­na a que se propõe, bali­za o trabalho do jornalista na “Folha”.

Algumas questões lhe são pertinen­tes. Na vira­da dos anos 80 para os 90, a estética visual cedeu espaço também para o verbo, numa valorização da dramatur­gia. Como sintoma maior, o crítico cita a morte do encenador polonês Tadeuz Kantor, em de­zembro de 1990, fonte da qual Gerald Thomas bebeu até a úl­tima gota.

Nessa guinada para a drama­turgia, portanto, despontam re­vival de Shakespeare e Nelson Rodrigues. Na esteira, surgem nomes na cena brasileira, como Luís Alberto de Abreu, Fernan­do Bonassi, Beatriz Azevedo, Hugo Passolo, Bráulio Tavares.

O critico também identifica a retomada de um teatro popular calcado no rito religioso. Encenadores como o pernambucano Romero de Andrade Lima (“Au­to da Paixão”), o mineiro Gabri­el Villela (“Rua da Amargura”), e o paraibano Luiz Carlos Vas­concelos (“Vau da Sarapalha”) catalisam uma simbiose entre o erudito e o po­pular. E o acento religio­so, cristão, transcende o regional e che­ga à cultura ur­bana nas mon­tagens do jo­vem diretor Antonio Araú­jo (“O Livro de Jó”).

“Divers/Ida­de” reflete ou­tro aspecto marcante na crítica de Sá. Trata-se de uma preocupa­ção com o teatro que estã sendo feito lá fora. Ele cos­tuma acompa­nhar tempora­das em Lon­dres e Nova Iorque e acaba servindo como introdutor de muitos nomes até então des­conhecidos por aqui. Nes­ta era globali­zada, nada mais pertinen­te.

Foi assim que “Angels in America”, a peça do americano Tony Kushner, começou a ga­nhar espaço no Brasil. Sá consi­dera este o espetáculo-síntese dos anos 90, com sua forte te­mática social, política, sexual, enfim, demasiada humana. E se leu sobre o diretor canadense Robert Lapage, sobre a diretora americana Elizabeth LeCompte (que depois veio ao Brasil com seu Wooster Group). E se leu sobre o escritor e dramaturgo caribenho Derek Walcott, de­pois Nobel de Literatura, que reivindica a volta dos poetas ao teatro, expurgados pela cena moderna (ou pós).

Além das críticas, propria­mente, o livro apresenta entre­vistas e panoramas. Sá, por e­xemplo, costuma “visitar” a temporada carioca uma vez por ano, estabelecendo a ponte num eixo normalmente picha­do pelo preconceito em relação ao “teatrão”, comercial. No Rio, como se sabe, existem óti­mos trabalhos com gente como Aderbal Freire Filho, Amir Haddad, Moacyr Góes e Enri­que Diaz, para citar alguns di­retores.

Como o próprio intertítulo sugere, “Divers/Idade” resulta exatamente num guia para o que vem sendo feito nos palcos brasileiros e internacio­nais. É claro, não se po­de abarcar tudo. Sá até que tenta. De quando em vez assiste a algum espetáculo “à mar­gem”, como o fez em “Boca de Lobo”, com garotos de periferia que verteram a linguagem do rap para o teatro.

O livro constitui, por extensão, uma aprecia­ção crítica da crítica. A coletânea de textos ex­põe um Nelson de Sá passional, que pulsa pe­lo teatro diante de tanta adversidade – há o cinema, a música e a televisão, do­nos do mercado cultural. A dis­tância jornalística não bloqueia a veia teatral. Peças amadoras, cursos de dramaturgia, assistên­cia com José Celso Martinez (“As Boas”), enfim, Sá não pas­sa incólume. Pode-se descordar das suas interpretações, com certeza, mas “Divers/Idade” é a resposta de quem cumpre o e­xercício da crítica com paixão e entrega diária.

 

Divers/Idade – Um guia para o teatro dos anos 90 – De Nelson de Sá. 479 páginas. Fotos de Lenise Pinheiro. Lançamento da editora Hucitec (rua Gil Eanes, 713, São Paulo, CEP 04601-042, tel. 530-4532). R$ 38,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

 O Diário de Mogi – Domingo, 31 de agosto de 1997.   Caderno A – 3

VALMI
R SANTOS

São Paulo A figura de Plínio Marcos, com sua camiseta re­gata, seu chine­lão, sua bolsa de livros, a peram­bular pelos tea­tros da Capital, no ganha-pão às próprias custas, traduz muito do espírito controverso do escritor. No curso dos 62 anos de vida, ele sempre optou pela margem, pela periferia, pela contramão.

“Navalha na Carne”, “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, “A­bajur Lilás”, “Querô” – para citar algumas -, suas peças já escanca­ram essa condição de artista que carrega uma bandeira. “Eu quero é contar a história da gente mi­nha, que é essa gente que só pega a pior, só come da banda podre, o bagulho catado no chão da fei­ra. Quero falar dessa gente que mora na beira dos córregos e quase se afoga toda vez que cho­ve. Quero falar dessa gente que só berra da geral sem nunca influir no resultado.”

È assim que Plímo se define em “Figurinha Difícil – Pornografando e Subvertendo”, lançamento recente da Editora Se­nac. Neste livro, ele revela um lado pouco conhecido da sua obra. È um excelente contador de histórias, de “causos” que re­montam à sua Santos natal, on­de começou mais de 40 anos atrás, sob a lona de um circo. De quebra, relata episódios da sua relação sempre espinhosa com o regime militar.

“Figurinha Difícil…” vem embasar a facilidade com que o autor de “Dois Perdidos…” tran­sita na linguagem das ruas. Uma oralidade espontânea, pre­enchida com uma língua afiada, ora ou outra com palavrões, sim, como convém ao povão.

Mesmo o leitor não afeito à história recente do Teatro Brasi­leiro vai encontrar no livro cota de humor para se entreter com garantia. Dom Hélder Câmara driblando o cerco da censura para assistir a “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, gesto decisi­vo para a liberação da peça; Plí­nio contando sobre como caiu nas mãos de uma mãe-de-santo e foi protagonista de uma ma­cumba numa encruzilhada mo­vimentada de São Paulo, o que lhe rendeu uma “viagem” no camburão da polícia; a incrível saga surreal de Nego Orlando, o amigo de juventude em Santos, que expulsou um burro do cam­pinho de futebol com um murro no animal, garantindo um pê­nalti para seu time; enfim, são passagens que envolvem porque rememoradas pelo autor com muita leveza.

Plínio deixa claro que uma regra em sua trajetória foi sem­pre caminhar, ir à luta, sem cho­rar as pitangas, mesmo diante das maiores diversidades que um ser humano pode passar submetido a um governo auton­tário. Dividido em cinco partes, “Figurinha Difícil…” é uma lei­tura que converge o dramatur­go, o homem e o cidadão – todos funâmbulos entre a tragédia e a comédia. A emoção em Plínio oscila nos dois extremos, daí sua riqueza.
 

Figurinha Difícil – Pornografando e Subvertendo – De Plínio Marcos. Editora Senac (rua Dr. Vila Nova, 228, 4º andar, tel. 236-2136. R$ 25,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 31 de agosto de 1997.   Caderno A – 4

Monólogo traz escritor na prisão repudiando a sociedade que o condenou

VALMIR SANTOS

São Paulo – O fantasma do irlandês Oscar Wilde (1854-1900) continua puxando a coberta das seciedades hipócritas e ditas pu­ritanas. Há 102 anos, o escritor irlandês foi julgado e condena­do a trabalhos forçados por comportamento “pervertido e homossexual”. Até os dias de hoje, a sentença histórica serve como símbolo da luta pela liber­dade sexual. “Oscar Wilde”, o monólogo interpretado por Eli­as Andreato, expõe uma “carta” do autor de “O Retrato de Dori­an Gray” despachada ao seu a­mante e, mais abrangentemente, à sociedade que condenou.

Despachada entre aspas. Wilde nunca a enviou. Lorde Alfred Douglas, ou Bosie, como tratava o jovem por quem se a­paixonou, faltou com a recipro­cidade quando o caso desse “a­mor que ousa dizer seu nome” veio à tona. Chegaram ao co­nhecimento do marquês de Queensberry, pai daquele belo rapaz, correspondências na qual o remetente tecia loas ao desti­natário do tipo “Tu és a coisa di­vina que eu desejo”.

Foi um escândalo para a épo­ca. Julgado numa Londres mo­narca, meca do conservadoris­mo de então, Wilde não teve a­tenuante. Ainda mais porque dono de língua afiadíssima, tão cruel e espantosamente sensata com as vicissitudes humanas (leia, nesta página, diálogo in­defectível com o promotor). Custou-lhe dois anos vendo o sol nascer quadrado, submetido a trabalho forçado.

No monólogo em cartaz na ironicamente intitulada Sala Vi­toriana, do Stúdio Cristina Mutarelli – um novo, pequeno e a­conchegante espaço na Capital -, temos a palavra de Wilde embalsamada pelo corte refratá­rio às regras de uma falsa moral.

Em menos de uma hora, as frases se amontoam e parecem não caber mais no palco/cela diminuto. O público de cerca de 20 pessoas, lotação máxima, es­pia as deduções cristalinas de Wilde quanto ao que há de mais comezinho numa relação opres­sora.

Frasista contumaz, o autor de “A Importância de Ser Pru­dente” e “Salomé”, estilhaça com lascívia e sem complacên­cia. Exemplos:

“Nunca adorei ninguém, a não ser a mim mesmo.”

“Porque todos os homens matam o que amam mas nem to­dos morrem por amor?”

“A arte só começa onde ter­mina a imitação.”

“Estamos no país dos hipó­critas.”

“A arte não deve aspirar ao público; é o público quem deve aspirar à arte.”

“Eis o resultado de tê-lo en­viado uma carta.”

São algumas das muitas fra­ses jorradas por uma interpreta­ção intensa de Elias Andreato. Ele domina o timming de cada fala. Se relaciona tranqüilamen­te com o pouco espaço que divi­de com uma poltrona, uma taça de alumímo, um varal… O ator, que vem de outro monólogo im­placável, “Van Gogh”, no qual mergulhava fundo na loucura sã, volta a atingir o equilíbrio neste “Oscar Wilde”, desta vez não necessariamente com tanta introspecção. Afinal, Oscar Wilde era de uma elegância de um dândi.

Viven Buckup, a preparado­ra corporal que vem se dando muito bem na direção (“Para Sempre” e “Cenas de Um Casamento”), consegue aqui, mais uma vez, desfocar a montagem da figura predominante do dire­tor. Quanto menos aparece, mais se percebe o trabalho de Vivien, que parece dialogar com tranqüilidade com seus atores.

Atuação e texto harmonizam de tal forma que resta a limpi­dez do verbo ecoando nas quatro paredes – contando a imaginária. Quando mede o tempo pelo “latejar da dor”; quando condena a superficialidade das relações, sejam heteros (o casa­mento com Constance, aos 30 anos, foi para ele uma decepção) ou homossexuais; quando condena a unanimidade burra da o­pinião pública; quando ridicula­riza a imprensa sensacionalista; enfim, quando raspa lá dentro de si para transformar bílis em poesia, Oscar Wilde, via Andre­ato, não reivindica outra coisa que não a supremacia do belo sobre o sofrimento – aquele como conseqüência deste.

Uma ode à condição de artis­ta numa época tão adversa – é­poca que se reproduz em novos códigos, de quando em quando -, “Oscar Wilde”, o monólogo, lapida a emoção com poder arrebatador de transferência. O autor, o ator e a cenografia do talentoso Namatame suspen­dem o tempo e o espaço e transpõem o espectador para aquele lugar nenhum em que o pensa­mento é banhado pela luz e pelo silêncio.

 

Oscar Wilde – Adaptação e interpretação de Elias Andreato. Direção: Vivien Buckup. Sexta e sábado, 21h30; domingo, 20h. Studio Cristina Mutarell (avenida Nove de Julho, 3.913, Jardim Paulista, tel. 885-7454). R$ 15,00. 20 lugares. Até 28 de setembro.

‘O Homem e a Mancha’ leva à introspecção

 São Paulo – Caio Fernando Abreu, um dos nomes mais importantes da literatura brasileira contemporânea, autor de “Morangos Mofados”, tam­bém se inclinou para o campo da dramaturgia. Faz pouco tem­po, estava em cartaz na Capital “A Maldição do Vale Negro”, um melodrama. Antes de mor­rer, em 1995, ele deixou pronto “O Homem e a Mancha”, mo­nólogo interpretado agora por Marcos Breda, sob direção de Luiz Arthur Nunes, ambos con­terrâneos e amigos de Abreu.

Morto em decorrência da Aids, o autor consegue exorcizar a doença sem mencioná-la. Pre­fere enveredar pelos labirintos da literatura, especificamente da dramaturgia, para produzir um texto que diz respeito ao momen­to pelo qual estava passando. “O Homem e a Mancha”, ao mesmo tempo, constitui um exercício instigante de introspecção.

Abreu remove a máscara e pede um ator despido de perso­nagem. A história começa as­sim. Aos poucos, o ator, no caso Breda, ingressa no universo de Miguel Quesada, agora sim no plano da ação propriamente tea­tral. Quesada é um aposentado que abdica de viver e decide se manter recluso em sua casa – um distanciamento comparado a Proust ou Onetti, citados inclu­sive. Romper com o mundo lá fora é o cúmulo da interioriza­ção; do voltar-se para si como ú­nica forma de manter-se agarra­do ao fio da vida que resta.

O movimento de Quesada, um delírio em que tempo e espa­ço se deslocam a todo instante, deixa explícito a convivência de Caio Fernando Abreu com a do­ença. As crônicas, publicadas no jornal “O Estado de S. Pau­lo”, prenunciavam o transborda­mento da sensibilidade.

Não, “O Homem e a Man­cha” não é uma efeméride. Pos­sui estrutura dramatúrgica, traz no cerne um libelo à arte da interpretação – o ator perde sua neutralidade para o persona­gem, e depois a recupera ao fi­nal; mas nunca se sabe onde co­meça uma ou termina outra.

Marcos Breda tem um de­sempenho comovente, uma en­trega total ao texto. Com toda a pobreza dos recursos de ceno­grafia e iluminação, à la Eugê­nio Barba, sobrepõe-se o seu trabalho de interpretação. Na Sala Minam Muniz do Teatro Ruth Escobar, o espaço peque­no empresta maior visceralida­de na aproximação com o pú­blico.

O diretor Luiz Arthur Nu­nes pretende esse despojamen­to, como indica o espírito da o­bra de Abreu. Nessa pulsão o­nírica, em que vírus e imagina­ção se confundem, “O Homem e a Mancha” confessa a necessidade do outro. A chance de compartilhar com familiares e amigos, principalmente com a criação literária, foi um alento para o escritor e dramaturgo gaúcho.

O Homem e a Mancha – Sexta, 22h; sábado, 21h; e domingo, 20h. Teatro Ruth Escobar/Sala Miriam Muniz (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). R$ 15,00. Até 28 de setembro.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 24 de agosto de 1997.   Caderno A – 4


Marco Ricca vai aos limites do personagem nesta montagem do diretor Ulisses Cruz

VALMIR SANTOS

São Paulo – Ninguém pas­sa incólume ao príncipe Hamlet. Desde o final do século, até os tempos que correm, seus intérpretes mais veementes foram ao fundo do poço para trazer à luz o som e a fúria deste que é considerado um dos mais perfeitos persona­gens criados por William Shakespeare. Edmundo Kean, Lau­rence Olivier, John Gielgud, Pe­ter O’Toole, Sarah Bernhardt, para citar célebres nomes do te­atro e do cinema mundial, sen­tiram os fantasmas em seus calcanhares.

Nestes anos 90, o diretor Jo­sé Celso Martinez Corrêa e sua companhia Uzyna Uzona celebraram Shakespeare no Teatro Oficina com uma montagem di­onisíaca e hifenada de “Hamlet”. Zé Celso carnavalizou, com Marcelo Drummond, a ce­na em quase cinco horas de espetáculo. É a lembrança mais fresca da peça em palcos paulis­tanos.

E “Hamlet” é revisitada ou­tra vez. Quando Ulysses Cruz topou o convite de Marco Ricca para o projeto da peça, havia uma dúvida hamletiana se o di­retor radicalizaria na sua con­cepção pop para o bardo inglês. Quem assistiu a “Péricles – Prín­cipe de Tiro”, outro Shakespea­re, que resgatou o público para o Teatro Popular do Sesi, sabe do que se está falando.

O forte apelo visual daquele espetáculo, com uma complexa mecânica de palco e cenários grandiosos, acabou  os jovens para a tragédia que, afinal, era sua essência. No recente “Rei Lear”, outro mítico papel shakespeariano, com Paulo Autran encabeçando Ulysses Cruz surgiu comedido, talvez pela presença do ator consagrado.

Mas o”Hamlet” que se vê no palco do Teatro Sérgio Cardoso, ainda que com solos de guitarra e com a globalizadíssima “As Time Good Bye” equilibra o espírito e a palavra de Shakespeare com este final de século descartável. Mais: não tem vergonha de apontar em meio à tragédia clássica.

O “Hanilet” de Ulysses Cruz indica um momento luminoso na sua carreira. E a maior evidência da maturidade artística, em 12 anos de direção, cristalizando um processo que reconhece a importância do trabalho de ator, mas não ignora o que lhe rodea em cena, a relação espacial, física.

Alguns elementos refletem, aqui, a evolução conceitual do encenador. Os músicos que executam a trilha ao vivo retorna ao mesmo segundo plano, suspenso. O público vê e ouve os músicos. O preenchimento do espaço (plano, lateral e aéreo) se dá pela movimentação dos atores, quer em bloco ou individualmente.

Outro aspecto marcante desta montagem é a possibilidade que o diretor tem de trabalhar com atores já afinados com sua concepção de teatro. Por exemplo: Mariana Muniz, Marcos Daud e Hélio Cícero estavam em “Perícles”; Rubens Caribé e Milhem Cortaz contracenaram em “O Melhor do Homem” – direções do próprio Cruz. Nos papéis principais, tem-se Ernani Moraes (ex-Tapa), de volta à Capital como o Rei Claudius, e o primeiro-ator da montagem, Marco Ricca, na pele de Hamlet.

O perfil do personagem, transitando entre a loucura deliberada e a consciência dilacerante, remonta, de forma impressionante, aos dois últimos papéis que Ricca interpretou no teatro. A visceralidade de Paco em “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (Plínio Marcos) e a busca utópica de Treplev em “A Gaivota” (Tchecov) estão embutidas na angústia e no desespero do príncipe da Dinamarca.

Logo na sua primeira entrada, Ricca deixa transparecer no corpo a retidão de hamlet. Seu andar é tenso, passa assim praticamente o tempo todo, como se cobrado pela força divina que vem dos céus e entra em choque com a confusão terrena. O paiem vida assusta, imagine seu fantasma! (A premissa freudiana em Shakespeare é uma leitura bastante interessante).

Uma navalha na carne. É assim quem o Hamlet de Ricca monologa com o “ser ou não ser” contemporâneo. Na boca de cena, rosto espumado, barba para fazer, a vida lhe roga um sentido… Mas, como bem afirma o Rei claudius adiante, em simulacro de comiseração movido pelo chão  que lhe engole, “palavra sem pensamento nunca comovem os céus”.

Marco Ricca, 34 anos, vai aos limites que Hamlet impõe. O humor nervoso, a vigília do olhar espantado, a dor que penetra como uma faca, a composição corporal da loucura sã, enfim, as músicas ficam patentes em cada fala, gesto ou movimento.

Não é só Hamlet/Ricca quem quebra o gelo da tragédia, de quando em vez, com humor sutil. Ernani Moraes, um tio Claudius fanfarrão, e principalmente Marcos Daud, um impagável Polonius e um coveiro idem, tê m lá seu quinhão. Daud, aliás, traduziu e adaptou o texto de Shakespeare.

Na linha, pode-se dizer, cômica, destaca-se ainda Hélio Cícero (Fantasma do Pai de Hamlet e o hilário Osric, um cortesão). Plínio Soares, (Horácio, amigo de Hamlet), Rubens Caribé (Laertes, filho de Polonius), Mariana Muniz (Gertrdes, mãe de Hamlet) e Julia Feldens (Oféilia, filha de Polonius, difícil e alentadora performance desta gaúcha de  19 anos) são outros destaques de um elenco coeso.

Esta superprodução prima por uma estrutura gigante de  cenário, que representa um castelo medieval mais não “polui”. Ao contrário, Ulysses Cruz e Cyro menna Barreto, responsáveis pela cenografia, atentam para a importância do espaço vazio, o vácuo como força-motriz . A iluminação de Domingos Quintiliano desenha o espaço, o tempo e o ator com uma influência raramente alcançada. Os figurinos de Elena Toscano trazem o estilo étnico-militar em voga na moda européia, sintomaticamente atemporais.

O quarteto musical (guitarra, teclados, sax eletrônico, violoncelo e flauta), sob direção de Eduardo Queiróz, interpreta a trilha sonora ao vivo, dialogando do início ao fim com a movimentação dos personagens. O tom minimal traduz a imperfeição humana em seu estado mais instintivo/primitivo.

É a grande montagem deste ano nos palcos paulistanos, até agora. Em cerca d eduas horas e meia, em dois atos, não há indício  de cansaço. Tampouco é fast food, porque a densidade e o impacto não diluem. O espectador vai encontrar um Shakespeare revigorado para o teatro de hoje. “A peça é o meio pelo qual eu apanharei a consciência do rei”, deduz Hamlet, quando pede à trupe de atores recém-chegada ao reino que encene o assassinato do seu pai. É espelho do autor que Cruz, Ricca e cia. fazem refletir em direção  aos olhos de uma platéia que, como na história do príncipe, também habita este “lugar cheio de truques” que é o mundo.

Hamlet – De Willian Shakespeare. Direção: Ulysses Cruz. Com Bartho de Haro, Marcelo Decária, Marcos Suchara, Nicolas Trevijano, Plínio Soares e outros. Quarta a sábado, 20h. Domingo, 18h. Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, tel. 288-0136). R$ 20,00 (sexta e domingo) e R$ 25,00 (sábado). Duração: 150,00, dois atos com intervalo de 12 minutos. Censura livre. Até 15 de outubro.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 17 de agosto de 1997.   Caderno A – 3


Música do novo CD, “Uma Outra Estação”, sintetiza obra do vocalista da Legião Urbana

VALMIR SANTOS

 

São Paulo – Muita gente que nunca discutiu Freud e Jung em mesa de bar acabou se transformando um pouco em psicólogo de Renato Russo. Cantando à frente da Le­gião Urbana, em 11 anos de es­trada, ele exorcizou seus fantas­mas – e os nossos. Ao mesmo tempo gozou como intérprete e ícone de uma geração. Assim, seus fãs testemunham, a cada canção, uma cumplicidade aca­chapante. Era o irmão mais velho da turma, já disse por traduzir inquietação, rebeldia e a centelha amorosa que mobiliza todo ser no curso de uma vida.

Nos shows, na cara a tapa para a multidão incógnita, Re­nato Russo não poupava adre­nalina. Projeto SP, extinta casa noturna, bairro paulistano da Barra Funda, i­nício dos anos 90. Aniversário da revista “Bizz” – hoje – “Showbizz”. Legião Urbana para assoprar velinhas da publi cação. Ele rola pelo palco, se contorce to­do, mastiga as folhas verdes espalhadas pelo chão, se embaraça no fio do mi­crofone. No repertório especial daquela noite, só covers. Dá-lhe Smiths, Rolling Stones, Doors, Hendrix.

O fã torcia por baladas de “As Quatro Estações”, então re­cém-lançado. E o que veio da fumaça de gelo seco era um Re­nato lisérgico, totalmente toma­do por sabe-se-lá-o-quê. Na ter­ra em transe, era embarcar ou largar. Para aquele público pe­queno, foi realmente uma via­gem e tanto.

Salto para dois anos depois. Ajuventude lota as arquibanca­das do Ginásio do Ibirapuera e brinca de “ôla”, levantando o corpo, esticando os braços. A pista também está apinhada. “É Legião/ é Legião/ Olê, olê, olá”, entoa o coro entorpecido como se formado por fiéis à espera do Messias. E ele vem, detonando “Que País é Este”.

Renato nunca se sentiu à vontade com essa coisa de ídolo de porta-bandeira. Mas a aura lhe perseguia o tempo todo, dado o arsenal polêmico que o poeta carregava em suas letras e na vida pessoal. Cantava “Que País É Este”, naquele Ibirapuera sequioso, quando um garoto qualquer mirou e acertou a lati­nha de cerveja no alvo/ídolo.

“Pára, pára”, ordenou o can­tor aos companheiros da banda. Ficou pê da vida. Se sentiu vilipendiado com a agressão e se retirou do palco. O ginásio es­tremeceu. Mais de 20 mil pesso­as não curtiram sequer uma mú­sica na íntegra e ia acabar assim o sonho de Legião ao vivo? Na­da! Assovios, aplausos e nova­mente o coro pedia a volta de Renato. Ele esfriou a cabeça, sabia que suspender o show pa­ra uma multidão daquelas equi­valeria a genocídio. Voltou, deu sermão e converteu fúria e fres­cura em uma das melhores apre­sentações da banda.

São lembranças de uma épo­ca rememorada com o lançamen­to de mais um disco da banda, “Uma Outra Estação”. O traba­lho que estava praticamente pronto antes da morte de Renato, dez meses atrás, tem a virtude de resumir a trajetória dos rapazes de Brasilia. Ouvindo-se o CD, fi­ca claro que o vocalista tinha “consciência” da sua partida.

É um disco emocionante. Renato surge desafinado, com voz sôfrega. Fala das dores da vida e do tratamento e luta con­tra a Aids – uma luta, conforme os amigos e familiares, da qual preferiu abandonar as armas.

Mas “Uma Outra Estação” não carrega na morbidez. Tem as palavras em jorro, dispensan­do o meio-termo,’ tocando direto nas flores e nas feridas. Renato Russo parece estar dizendo as­sim: “Olha, gente, estou indo embora mas quero deixar essas belas canções para vocês. Foi tudo muito legal, mas a vida éassim mesmo. E vale a pena. Ah, não se esqueçam de mim, tá”…

Para uma geração que atra­vessou a utopia amorosa e o va­zio político das Diretas que não vingaram – e continua nesta vala social comum dos sem-fim -, a Legião Urbana preenchia parte do chão. Renato, Dado Villa-­Lobos, Marcelo Bonfá e Renato Rocha, a formação inicial, quar­teto-dos-sonhos-em-si, traduzia no som básico de voz, baixo, bateria e guitarra a ração/razão de esperança para um cotidiano amargo.

De cantar as mazelas do País e de sobretudo falar aos jovens de sua época com o coração, a banda foi abraçada por meninos e meninas carentes de referênci­as. Tudo isso somado aos conflitos da impossibilidade amo­rosa, das pequenas imperfeições das amizades, da hipocrisia familiar e religiosa, da barra de e­xercer a sexualidade com pleni­tude, do fantasma da Aids.

As letras convergem sempre para um sentido humano. A “seita” Legião Urbana celebra o fim de todo e qualquer precon­ceito. A premissa de que cada um leva a vida que quer para si, desde que não vaporize o próxi­mo, reluz como ouro no conjun­to da obra. Essa mínima noção de humanismo é colírio para a modorrenta rotina moderna.

“Uma Outra Estação” equi­vale ao disco “Dois” (1986) em termos de poesia bruta. Há uma suavidade nessa despedida, uma melancolia angelical de solos de violão, guitarras e teclados (Carlos Trilha) a contemplar um ciclo que, com a morte do seu protagonista, chega ao fim. Fai­xas como “La Maison Dieu”, “Comédia Romântica”, “Dado Viciado”, “Antes das Seis”, “Mariane”, “Marcianos Inva­dem a Terra” e “Travessia do Eixão” são excelências roquei­ras da fábrica Legião, como nos bons velhos tempos.

E a canção que melhor defi­ne a figura humana de Renato Russo é “Clarisse”. A história dessa menina de 14 anos, o seu desespero diante da vida, sua solidão, suas tentativas de suicí­dio, sua prisão no quarto onde o álibi dos discos e livros já não funciona mais, sua convales­cença, sua tentativa de extrair lá do fundo da alma um resquício de força para tocar o barco nesta tempestade mundana…

Clarisse é Renato. A voz e o violão são autobiográficos nes­ta canção; um belo depoimento de um artista para seus fãs que continuam perambulando pelas ruas urbanas, já não com todo o tempo do mundo. Quem encon­tra apenas crepúsculo nas letras da fase terminal de Renato Rus­so, é porque não o aceitou como e1e era. Há aurora também.

Mesmo dizendo-se preso à gaiola, ele se despede em “Cla­risse” – mais de 10 minutos – co­mo um pássaro novo, longe do ninho, a “voar pelo caminho mais bonito”, tocando um violão triste e paradoxalmente sereno, que silencia vagarosamente – in­finito enquanto dura, como ensi­nou Vinicius. Mesmo mergulha­do no seu íntimo, carrega o olhar estrangeiro. Homossexual assu­mido, Renato também denuncia “A violência e a injustiça que e­xiste/ Contra todas as meninas e mulheres”, acentuando outra vez sua perspectiva humanista. Cla­risse é representante do Daniel na cova dos leões, do Eduardo e da Mônica, da Andrea Doria, do Maurício, da Natália, da Leila, do Dado viciado, da Mariane e de toda a geração coca-cola…

Conviver com a Legião Ur­bana e todo seu carisma foi que­brar muitas barreiras. Foi se conscientizar de um mínimo de cidadania. Foi se apaixonar e se deixar levar pelos meandros do túnel do amor que raramente dá em luz. Foi cantar suas músicas com os amigos nas ruas, praças e ônibus. Percorrer o asfalto à noite, numa esforçada perua Kombi azul, com o som no últi­rno volume – como sempre se recomendou nos encartes dos bolachões e CDs.

Foi ouvir “Quando o Sol Ba­ter na Janela do Teu Quarto” pela primeira vez e verter lágri­mas. Foi assistir a um segundo show no Ibirapuera e reduzir a percepção para tachar a banda de ultrapassada, dèja-vú, e ago­ra ter a chance da restauração, por mais hipócrita que pareça.

Afinal, quem haveria de ri­mar romã com travesseiro?

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 17 de agosto de 1997.   Caderno A – 4


Nova coreografia traz grupos de menores carentes da periferia e cidadãos-dançantes

VALMIR SANTOS

São Paulo – Mesmo a a­bundância de uma Carla Perez não traduz o reper­tório do corpo brasileiro. A vastidão das possibilidades corporais é maior do que nossa vã imaginação. Ivaldo Bertaz­zo vem batendo nessa tecla, ou nesse quadril, não é de agora. Suas idéias ganharam maior visibilidade no ano passado, atra­vés do projeto “Cidadão Corpo”, espetáculo e livro. A se­gunda fase vem com “Palco, A­cademia e Periferia – O Penhor Dessa Igualdade”, também um espetáculo, no Sesc Pompéia.

O que Bertazzo começou a fazer no ano passado, com uma éspécie de “desmontagem” corporal, percorrendo todos os os­sinhos com coreografias que privilegiam a movimentação coletiva, desta vez surge ampliado em cena. Num processo que e­rnerge do particular para o universal, o trabalho vai de encon­tro à margem.

Além dos bailarinos que de­senvolvem um processo mais profundo sob seu comando, e dos cidadãos dançantes, como chamam as pessoas “comuns” (profissionais liberais) que fo­ram incorporados à pesquisa, Bertazzo convoca grupos de percussão que atuam na perife­ria, vindos de vários pontos do Brasil.

Toda essa reverberação, so­mada ao gênio musical Naná Vasconcelos, desemboca num espetáculo contagiante. A pers­pectiva de uma cidadania atra­vés da manifestação do corpo coincide com este momento a­gudo da sociedade brasileira, onde o social se tornou pauta obrigatória, ainda que bastante desprezado.

É assim que “Palco, Acade­mia e Periferia” chama para a cena grupos como Lactomia (Salvador), Banda Bate Lata (Campinas), 16 Meninos da 13 de Maio (bairro paulistano da Penha), Favela Monte Azul (também da Capital) e Funk’n Lata (da Estação Primeira da Mangueira, Rio) – todos forma­dos por crianças carentes que vêem no exercício da arte um alento para a sobrevivência. Cada um se apresentou por dois dias consecutivos dentro do projeto. No domingo passa­do, O Diário conferiu a perfor­mance do Funk’n Lata.

Os meninos da escola de samba carioca estão acostuma­dos a se apresentar para grandes massas, em quadras ou casas noturnas onde são realizados os tradicionais bailes funk. No pal­co do Sesc Pompéia, o impacto da bateria foi arrebatador. A participação em si – e deve ter acontecido o mesmo com os ou­tros convidados – constitui um capítulo à parte. Quando destoa, complementa pela diversidade verde e amarela.

Antes deste coroamento da noite, acontece propriamente o espetáculo coreografado e diri­gido por Bertazzo. Durante 16 músicas interpretadas ao vivo por gente do quilate de Nelson Ayres e Rodolfo Stroeter, mais a magia percussiva de Naná Vasconcellos, e o que se descortina e uma identidade cultural, jeito brasileiro de ser.

O maculelê, a capoeira, o ba­lé clássico, a dança moderna e até um gestual oriental, enfim, o espetáculo é um leque expressi­vo. Além do estilo, a diversida­de é representada ainda pelo perfil corporal. São magros, gordos, baixos, altos, até gente de óculos entra na dança. Essa comum-união é uma das principais virtudes do trabalho de Bertazzo.

Ele descarta uma estética pré-estabelecida, calcada em códigos rígidos, e deixa vir à tona uma espontaneidade que aflora o jogo cênico. Daí o espírito lúdico, a celebração como um rito de festa, de encontro. Como a quadrilha junina afrancesada, um dos melhores momentos. Nada é certinho e o efeito coreográfico nasce disso.

“Palco, Academia e Periferia envolveu cerca de 190 pessoas, entre amadores e profissionais. A harmonia só foi atingida por conta de uma direção aberta e da entrega das pessoas em cena. Democratizar o acesso e desmitificar o estabelecido – as bases do projeto estão bem claras.

Palco, Academia e Periferia – O Penhor dessa igualdade – Coreografia e direção: Ivaldo Bertazzo. Última apresentação hoje, às 19h, com participação especial dos Meninos da Favela Monte Azul (SP) e Lactomia (BA). SESC Pompéia (rua Clélia, 93, Lapa, tel. 872-7700). R$ 20,00 (R$ 10,00 estudantes e comerciários).
 

“Prometeu Engaiolado” é maior que a encomenda

São Paulo – Voz pausada, andar vagaroso, Jorge Dória se esforça para driblar as limitações da idade – 61 anos – em mais uma comédia da car­reira que está completando meio século. A figura carismá­tica do ator é a razão de ser de “Prometeu Engaiolado”, um rasgo de atuação caipira em temporada no Teatro Maria De­lla Costa. Pena que o tamanho do texto e a duração da montagem, deponham contra o elenco.

Diante das limitações físicas de Dória, o autor Chico de Assis e o diretor João Bethencourt fariam um bem danado se reduzis­sem o tempo da peça, que se tor­na arrastada porque todo o ritmo está praticamente nas costas de Mauro de Almeida, o Prometeu, que constrói com talento a figu­ra de um jeca. Mas haja fôlego para carregar um espetáculo!

Eliana Barbosa, a Minervi­na, não ousa um milímetro além da caricatura fácil da noivinha submisa. Anna Cavazzani, com o papel reduzido da empregada, não tem sequer chance de dizer a que veio. Já Dória, o poderoso Coronel Procusto, uma mistura daqueles personagens pervertidos das histórias de Jorge Ama­do com o brucutu ACM, o sena­dor, vai de encontro ao desbra­gado humor popular do qual o público já é conhecedor – quer no palco, quer na televisão.

Jorge Dória traz a virtude de quem domina a cena aberta com muito jogo de cintura. Quando percebe que lhe escapou uma fala ou uma marcação, não titu­bea em recorrer aos “cacos”, os acréscimos de supetão ao texto original. Mas quando a interpretação exige muito esforço físi­co, como é o caso aqui, as limitações ficam patentes.

Longe do preconceito à ida­de, mas quando o trabalho artís­tico conjuga também o desempenho corporal e espiritual, o resultado é indiscutível.

“Prometeu Engaiolado”, que nada tem que ver com a tragédia seminal de Ésquilo, é uma comédia que exige muito. E, nun­ca é muito repetir, um remaneja­mento do autor ou do diretor – ou de ambos – não traria prejuí­zo algum. Como está, com variações abissais de ritmo, com “brancos” constrangedores para. o potencial de Jorge Dória e Mauro de Almeida, enfim, como está é frustrante. Pelo menos foi assim na estréia.

Prometeu Engaiolado – De Chico de Assis. Direção: João Bethencourt. Com Jorge Dória, Mauro de Almeida e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Maria Della Costa (rua Paim, 72, Bela Vista, tel. 256-9115). R$ 20,00 (quinta e sexta), R$ 25,00 (domingo) e R$ 30,00 (sábado). 120 minutos. Até 21 de dezembro.

Espetáculo se equilibra no caos humano

São Paulo – Depois de Fer­nando Arrabal, montado há pouco por alunos da Uni­camp, na excelente encenação dirigida por Márcio Tadeu, ou­tro autor espanhol filiado ao te­atro pânico ganha os palcos paulistanos. É a vez de Fernan­do Nieva, um dos mais impor­tantes nomes da dramaturgia contemporânea na terra de Gar­eia Lorca. O resultado alentador está a cargo da Companhia dos Lobos, sob direção de Marcos Azevedo, ex-integrante da Companhia de Opera Seca – leia-se Gerald Thomas.

“Trilogia da Danação”, o es­petáculo, reúne três peças curtas de Nieva. São textos que penetram fundo na condição huma­na. Os personagens transitam sempre no limite da existência, tataendo porões que conduzem à iminência do instinto animal em seu estado mais bruto.

Abre com “Não É Verdade”, uma intrincada história de terror com fortes tintas kafkianas. Uma mulher decide experimen­tar fortes emoções com um aventureiro que se mete na flo­resta para se reunir com um gru­po de lobos. Em nome da vora­gem, ela desbanca a ordem da vida cotidiana, deixando perple­xos o primo e a empregada que termina assassinada violenta­mente. “Os bichos, os bichos sãos austeros”, comenta um per­sonagem, imerso na loucura.

Na segunda peça, Nieva faz blague da universal historinha de Chapeuzinho Vermelho. Cansada do marido fleumático demais, a mulher o troca por um sujeito beberrão, com pinta de lobo mau, que a faz experimen­tar pervertidas taras sexuais.

“Trilogia da Danação” en­cerra com “Paixão de Cachor­ro”, a peça mais impactante. Nela, os protagonistas perdem os sentidos e o instinto animal é quem impõe as regras. Em certo dia, uma prostituta amanhece com um rabo peludo que brota­ do bumbum. A mulher encara o fenômeno com resignação cristã. Subumana frente ao espelho, acredita que o pecado veio a calhar. Mas o “rabo” lhe traz mui­tas revelações quanto a concei­tos como amor e amizade.

Mesclando ingredientes como a antropofagia e a animilização do ser humano, a dramaturgia de Fernando Nieva faz um corte deste fim de século com­ uma crueza impressionante. Tudo se move a partir da pulsão interior dos personagens.

A montagem dá conta do re­cado. O elenco tem fôlego para se revezar nas três histórias. Virginia Jancso, Lia Armelin, An­tonio Peyri, Melissa Vettore e Cesar Ribeiro fazem interpretações viscerais, desenhando personagens bizarros, como convém ao autor

Marcos Azevedo também não fica atrás na direção. Retrata muito bem a atmosfera dos textos, o estranhamento gestual dos personagens, verdadeiros tipos. Com exceção da voz em off, faz pouca concessão ao tea tro de Gerald Thomas. Este o influencia, sim, mas Azevedo relê a cena a seu modo, num traba­lho que reflete um intercâmbio efetivo com o elenco. “Trilogia da Danação” é um espetáculo surpreende por conciliar equilíbrio cênico e interpretativo com demasiado caos humano.

Trilogia da Danação – De Fernando Nieva. Direção: Marcos Azevedo. Com A Companhia dos Lobos. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro João Caetano (rua Borges Lagoa, 650, Vila Mariana, tel. 573-3774). R$ 10,00. 100 minutos. Até 14 de setembro.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.