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Entrevista

A crítica segundo Barbara Heliodora

5.5.2014  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Carlos Reis

Uma das maiores autoridades em Shakespeare no Brasil, tendo traduzido quase todas as suas peças exceto duas, Barbara Heliodora, 90 anos, recebeu a reportagem de Zero Hora em sua casa, no bairro Cosme Velho, no Rio. No final de 2013, a crítica teatral mais respeitada do país anunciou a aposentadoria do ofício que exercia há mais de 50 anos – os últimos 23 anos no jornal O Globo. Agora, passará a escrever críticas apenas ocasionalmente e se dedicará à tradução de textos para teatro. Nesta entrevista, ela fala sobre a recepção no Brasil da obra do grande autor inglês, que teve seus 450 anos de nascimento celebrados em 23 de abril.

Herdeira de uma tradição de rigor e sinceridade, ela também elogia a nova geração de dramaturgos brasileiros, critica a obra do gaúcho Qorpo-Santo (1829–1883) e lamenta o sucesso de público de espetáculos que oferecem mais do mesmo.

O público brasileiro ainda vê Shakespeare como um autor distante e difícil?

Barbara Heliodora – Acho uma pena. Houve um grande erro em toda a educação brasileira. Os professores pensavam assim: “Isso é muito difícil. Eu entendo, mas vocês (os alunos) não”. Mas esses professores esquecem uma coisa básica: Shakespeare era um autor popular. Em uma cidade que tinha 300 mil habitantes, ele escrevia para um teatro com 2 mil lugares que estava sempre lotado. Tinha uma comunicação muito fácil com o público. Não conheço todas as traduções para o português, mas conheço algumas que são muito pomposas, que traem o que Shakespeare queria dizer. Ele não é pomposo, é muito fluente. Foi isso que tentei fazer nas minhas traduções: um Shakespeare acessível, como ele é no original. Ben Jonson (dramaturgo e crítico inglês, 1572–1637) dizia que Shakespeare era apelativo. O Ben Jonson acreditava nas regras das coisas, de maneira que ele criticava Shakespeare por ser um autor de concessão. Estou traduzindo uma peça do Marlowe (dramaturgo inglês, 1564–1593) e vejo como é muito mais intelectualizado, com citações em latim e deuses da Antiguidade. A grande maioria das imagens shakespearianas são tiradas do dia a dia. Ele faz coisas lindas, mas com elementos simples.

Como têm sido as encenações brasileiras de Shakespeare?

Não quero falar disso. São muito ruins. Acho que as montagens de que não gostei foi porque, na realidade, o diretor não estava querendo fazer Shakespeare, mas uma outra coisa. Isso me chocou no espetáculo do (diretor) Ron Daniels, que já fez vários Hamlet e de repente faz um que não tem nada a ver com nada (Hamlet, com Thiago Lacerda, apresentado em Porto Alegre em 2013). A direção estava errada. E é uma pena, porque acho que o Thiago podia perfeitamente fazer o papel. Botar o Hamlet no intervalo se maquiando? O que é isso? São gracinhas do diretor que não têm nada com Shakespeare. Então, muitas vezes há uma preocupação menos na peça de Shakespeare do que no espetáculo do diretor. Isso que é o problema. Eles (os diretores) acham que é feio o diretor servir ao autor. E realmente sai uma porcaria. Se você brinca com uma peça fraca, de repente pode criar coisas e ficar muito divertida. Mas quando a peça é realmente boa, não mexa, porque atrapalha.

Thiago Lacerda no ‘Hamlet’ de Ron Daniels

As pessoas veem a senhora como uma crítica temida. Essa fama é justificada?

Não é questão de ser temida. Isso veio das décadas de 1950 e 1960, em que houve uma renovação radical da crítica. Havia um grupo formado por Paulo Francis, Gustavo Dória, Henrique Oscar, eu. Fundamos o Círculo Independente de Críticos Teatrais. Era um grupo que olhava de uma nova forma para o teatro. Os antigos críticos da Associação Brasileira de Críticos Teatrais eram quase divulgadores. Não havia uma exigência maior de qualidade. Esse grupo novo que apareceu de repente encarava o teatro de outra maneira. Então, realmente, éramos muito mais exigentes do que era até então. Por outro lado, fizemos coisas que talvez aqueles outros críticos não tenham feito. Fizemos curso de formação de plateia, curso de história do teatro universal, história do teatro brasileiro, série de conferências sobre os vários aspectos do teatro: o que é direção, interpretação, cenografia. Para o público ficar mais informado. Porque acreditávamos que um público mais informado ficaria satisfeito apenas com coisas de melhor qualidade. E eu sou dessa linhagem. O que acontece é que os outros pararam (risos).

Desta experiência do Círculo Independente de Críticos Teatrais, vocês concluíram que é possível formar uma plateia?

Quanto mais informada a plateia, melhor. A falta de tradição de teatro em Portugal veio para o Brasil. Os americanos foram tão colonizados quanto nós, mas eles herdaram Shakespeare e companhia com os colonizadores. Há uma grande tradição teatral de várias épocas. Em Portugal não. No Brasil, pode ser que apareça um nome de autor teatral em uma coletânea (de leitura) para o 1º e o 2º graus. Se não, você pode fazer todo o ensino fundamental e médio sem jamais ouvir a palavra “teatro”. Isso é horrível. Hoje, talvez se fale em Nelson Rodrigues e em Ariano Suassuna, que são os dois clássicos da renovação do teatro brasileiro, mas ninguém vai ao teatro. Os professores não vão. São poucos os que vão. Então, eles não transmitem. A falta de informação ajuda a não haver um maior critério de qualidade por parte da plateia. Brasileiro não dá boa bilheteria para um jogo de futebol que todo mundo sabe que vai ser uma pelada. Por quê? Porque todo mundo sabe a respeito de futebol. Aliás, os milhões de brasileiros são todos técnicos. Mas as pessoas não têm essa informação sobre o teatro. Então, você tem uma plateia difusa que às vezes gosta de uma coisa apelativa. O que eu chamo de preparar a plateia é isso: conhecer mais a história do teatro, os autores. O teatro, na realidade, é uma arte preciosa porque é a única que se dedica exclusivamente ao ser humano.

Qual o papel do poder público no financiamento de espetáculos?

Uma vez, fui ver uma soi-disant comédia que era uma coisa tão ruim, uma porcaria, uma coisa horrorosa. Vejo o programa e está lá assim: “Ministério da Cultura”. Aí encontrei um rapaz da Funarte (Fundação Nacional de Artes, vinculada ao Ministério da Cultura) e perguntei: “Como uma coisa como essa tem a chancela do Ministério da Cultura?”. E ele me respondeu: “O Ministério não pode escolher qualidade”. Eu disse: “Então, devia se chamar Ministério Assistencial”. Qualquer pessoa que preencha o formulário direitinho pode captar pela Lei Rouanet (sistema que permite investimento por meio de renúncia fiscal), não há qualquer critério.

O que a faz aplaudir de pé?
O que é bom (risos), o que é bem feito. Tanto posso aplaudir tragédia como comédia. Desde que eu sinta uma dedicação ao teatro que faça com que ele diga alguma coisa. Agora, por exemplo, está aparecendo uma série de autores brasileiros. Claro que nem todos vão fazer carreira. Muitos serão o que eu chamo de bananeira de um cacho só. Mas já começam a aparecer aqueles que estão na segunda, terceira, quarta peça, que a gente sente que vão continuar.

A que autores a senhora se refere?

Jô Bilac, Julia Spadaccini, Pedro Brício. Tem uma porção de gente que está escrevendo. O Nelson (Rodrigues) foi um fenômeno. O Jorge Andrade foi um fenômeno. Silveira Sampaio também. Eram talentos isolados. Agora, finalmente, estamos tendo uma série de autores. Já havia, claro, autores brasileiros que faziam comédias muito divertidas, como o Gastão Tojeiro. Mas agora temos uma série de novos autores escrevendo. Isso é a coisa que mais me gratifica. Acho que o fenômeno é semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos na década de 1930. A dramaturgia americana amadureceu no último século.

Cacilda Becker em ‘Anjo de Pedra” (1950), no TBC

Vamos falar de atores. Quais foram os maiores que a senhora viu no palco?

Foi a geração que apareceu em 1960, 1970. Cacilda (Becker), Walmor (Chagas), Tônia (Carrero), Paulo (Autran), Fernanda (Montenegro), Fernando (Torres), Ítalo (Rossi). Essa geração se beneficiou, e muito, dos diretores estrangeiros que vieram com a Guerra, como Ziembinski, (Gianni) Ratto, (Adolfo) Celi. Mais do que diretores, eles foram professores. Trouxeram uma experiência teatral. Então, quando pegavam gente de talento, e sabiam muito bem reconhecer os talentos, eles moldavam. Essa geração aprendeu a fazer teatro com muita seriedade. Temos atores ótimos hoje em dia, como o (Marco) Nanini, tem muita gente boa. Mas aquela geração foi privilegiada por isso. E porque os textos montados na época eram muito bons. Hoje, no Rio, quando uma peça tem três atores, digo que já é superprodução. A quantidade de monólogos é de endoidecer. Monólogo raramente é teatro. É muito mais uma coisa de showman, e não de ator. É muito mais explorada a personalidade de quem faz do que a interpretação do personagem de uma trama.

Dizem que a senhora não gosta de peça experimental. A senhora concorda?

Quando é boa, eu gosto. Não gosto quando o autor nunca escreveu e está experimentando, quando o diretor nunca dirigiu e está experimentando, e os atores nunca representaram e estão experimentando. Acho que isso não é experimental. O experimental tem uma proposta. Fico pensando: “O que estão tentando fazer?”. O programa fala em pesquisa de linguagem teatral, mas você chega lá e vê um diálogo paupérrimo. Ficam pensando que, ao chamar de experimental, é obrigatório que todo mundo diga que é bom. E um dos desconhecimentos teatrais do Brasil é aquele que acha que teatro experimental pode ser grande sucesso de bilheteria. No resto do mundo, não é. No resto do mundo, teatro experimental é feito para experimentar realmente alguma coisa, então é dirigido a um grupo reduzido de pessoas que já viu muito teatro e então tem a curiosidade de ver essa nova experiência. Aqui, não. Querem que o experimental seja um grande sucesso de bilheteria.

No seu site, há uma crítica de 2006 da peça gaúcha Dr. QS – Quriozas Comédias, com texto de Qorpo-Santo. A senhora escreveu: “É impossível descobrir qualquer intenção de forma ou conteúdo que justifique a bagunça, a apelação, a chatice e o mau gosto do espetáculo…”

(Interrompendo) Acho que aí o culpado, em primeiro lugar, é o Qorpo-Santo. O mito de que ele é bom é um engano total. Ele não existe. Dizer que ele é um precursor do teatro do absurdo? Não. Ele é um louco. O que ele faz não tem pé nem cabeça. A insistência das pessoas em querer dizer que aquilo é bom é um fenômeno. E não sou só eu que digo isso.

Queria chegar no seguinte ponto: esse espetáculo foi muito premiado em Porto Alegre em 2005. A crítica é objetiva ou subjetiva?

Acredito. De repente, as pessoas acham que isso é maravilhoso. Porque não entendem, porque não sabem. Então, acham melhor dizer que é maravilhoso. Quando há um mito como Qorpo-Santo, é preciso certa coragem para dizer que não é teatro. Sobre a questão da isenção: qualquer pessoa que diga que é totalmente isenta não está dizendo a a verdade. Quando você chega para ver um espetáculo, traz tudo que já viveu até então. Traz experiência de vida, intelectual. Você pode tentar ser o mais isento possível, mas dizer que sua formação não pesa naquele momento é ilusão. Cada um traz sua experiência para aquele momento e vê aquele momento à luz de sua experiência prévia. Claro que um crítico profissional tem que fazer um esforço para ser o mais isento possível. Não haveria nada mais ridículo do que fazer uma crítica que começa assim: “Ontem, fui ver uma tragédia, mas só gosto de comédia”. O público não tem nada a ver com isso. O importante é como a proposta chegou (ao espectador), para você ter uma ideia do que estavam tentando fazer e até que ponto houve sucesso na transmissão do conteúdo.

Como fica a questão da isenção quando está em cena um profissional que é seu amigo?

É terrível.

Por exemplo, a Fernanda Montenegro é sua amiga.

Mas eu já falei mal da Fernanda também, já fiz restrições. O pior é que a Fernanda diz: “E ela tinha razão” (risos). É sempre doloroso. Mas acho que não pode pesar o fato de ser minha amiga.

A senhora já perdeu amizades?

Uma grande amizade esfriou um pouco, mas não perdi. Para mim, foi muito doloroso. Eu só me lembro desta vez.

Arrependeu-se de ter escrito?

Não. De jeito algum. Infelizmente, essa era a verdade mesmo.

Já foi impedida de entrar em um teatro por um artista ofendido?

Foi muito engraçado. Certa vez, eu estava chegando para um espetáculo de um diretor paulista que eu nem conhecia. Ele parou na minha frente e disse: “Se a senhora não gosta do meu trabalho, o que veio fazer aqui?”. Eu disse: “Prefere que eu vá embora?”. Ele: “Prefiro”. Dei até logo e fui. Quando cheguei em casa, a produção da peça estava me telefonando desesperada para eu não deixar de ir. Fui no dia seguinte ou algo assim.

E a peça era boa?

Não. Era muito ruim (risos).

Por falar em desentendimentos, não teve uma vez em que o Gerald Thomas tentou lhe enganar com uma peça em que os atores fingiam que tinham errado a cena?

Não. Ele queria que eu morresse. Disse em uma entrevista que queria me ver morta. Depois, em Curitiba, ele veio, ajoelhou-se e beijou minha mão, pedindo perdão. Ele é meio louco, mas acho que é um bom diretor. É mau autor. Ele querer escrever é que atrapalha tudo.

A senhora já esteve em uma comédia que provocou risos no público do início ao fim, mas da qual a senhora não achou graça alguma?

É possível. De repente, estão achando graça em uma coisa que eu já vi pelo menos umas cem vezes. A mesma piada, a mesma situação. Chega um ponto em que não dá mais para achar engraçado. É um déjà-vu terrível. No tempo em que o teatro custava oito cruzeiros – não lembro qual era a moeda –, todo mundo reclamava que o teatro era muito caro. Nesse momento, o Chico Anysio fazia um one-man show e cobrava 10 cruzeiros. E ficava um ano em cartaz. O despreparo do público faz com que ele prefira ouvir a mesma piada por 10 cruzeiros do que ter que pensar por oito. Porque o Chico Anysio fazia uma série de coisas que ele fazia muito bem, claro, todo mundo sabe, mas que na realidade não eram muito novas. Todo mundo já sabia aquelas coisas que ele ia fazer, mas iam porque queriam rir daquilo, porque gostavam daquilo que ele fazia sempre. É o que se chama, nos Estados Unidos, de dramaturgia para o tired businessman (“homem de negócios cansado”). É para quem quer ir ao teatro só para rir, para se distrair. Não é para pensar. Mas existe outro tipo de teatro também, e o que nos falta é esse outro.

.:. Publicado originalmente no jornal Zero Hora, caderno Cultura, páginas 2 e 3, em 26/4/2014.

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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