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Artigo

Azeredo, João das Neves, Vianinha e os Benevides

16.4.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Gal Oppido

O ano de 2014 foi pródigo em atos evocativos do golpe que implantou a ditadura civil-militar no Brasil. A trágica lembrança dos 50 anos daquela guinada antidemocrática e suas sequelas na vida de todos os cidadãos mereceu análise da Comissão Nacional da Verdade e de suas correlatas em níveis municipal e estadual. Infelizmente, o relatório final trazido a público em dezembro não mobilizou o país em termos de consciência crítica como as sociedades civis da Argentina, Chile, Uruguai e Peru o fizeram ao tocar e reconhecer suas feridas. O debate ainda não irradiou firmemente na nação.

No plano da arte e da cultura, outra efeméride relacionada ao teatro e aos conflitos no campo merece ser evocada pelo que suscita de drama, resistência e sincronia no imaginário e na realidade dos brasileiros. No fim de março de 1964, estudantes, artistas e militantes do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o CPC da UNE, no Rio de Janeiro, intuíam a ruptura institucional enquanto preparavam a estreia de um espetáculo criado especialmente para inaugurar o teatro no edifício-sede da Praia do Flamengo, número 132. Fundada em 1937, a entidade tinha implantado seu braço cultural, o CPC, em 1961, sob o governo João Goulart (1919-1976). E na madrugada de 1º de abril de 1964, em plena precipitação dos generais golpistas, o prédio foi invadido e incendiado por agentes de segurança.

A peça que estava sendo escrita sob a estrutura de um musical e produzida para aqueles dias era Os Azeredo mais os Benevides, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (1936-1974). Seria dirigida por Nelson Xavier, sob pelo menos uma composição de Edu Lobo, que já havia concebido a letra de Chegança em parceria com o autor, canção também gravada por Elis Regina: “Estamos chegando daqui e dali/ E de todo lugar que se tem pra partir/ Trazendo na chegança/ Foice velha, mulher nova/ E uma quadra de esperança”.

Antes da quebradeira e do incêndio, alguns cepecistas perceberam a movimentação externa para a invasão da UNE e pularam o muro dos fundos que tinha cerca de dois metros. Primeiro foram o diretor Armando Costa (1933-1984) e o advogado Luiz Werneck Vianna (1938). Em seguida, seus colegas, o ator Francisco Milani (1936-2005), o ator Carlos Vereza (1939), o diretor João das Neves (1935) e Vianinha. Eles cumpriram igual performance diante das ameaças, escalando e escapando em direção à rua do Catete. Jamais vieram à tona as causas daquela ação criminosa, tampouco seus protagonistas foram processados.

Na biografia Vianinha, cúmplice da paixão (Record, 2000), o autor Dênis de Moraes recorda o episódio: “João retirou os fusíveis da caixa de força, pensando que assim evitaria um curto-circuito. A essa altura, muita gente se aglomerava nas janelas para presenciar a fuga dos últimos cepecistas. (…) Os quatro pularam o muro e alcançaram a rua do Catete, onde tomaram um táxi em direção ao centro. Lívidos, humilhados. Não demorou e invadiram o prédio, iniciando-se o quebra-quebra. Os atos de vandalismo prosseguiram do lado de fora, com os golpistas jogando tochas acesas, estopas com gasolina e coquetéis molotov. Os fusíveis no bolso de João das Neves pareciam peças de museu. (…) Pediram ao motorista que desse a volta pelo Aterro do Flamengo e, chorando, viram o espetáculo mais deprimente de suas vidas: a UNE pegando fogo. Junto com ela, o teatro recém-construído se transformava em cinzas. A utopia confundia-se agora com as nuvens negras de fumaça.”

Testemunha e vítima do regime de exceção – cuja truculência já era visível, como comprovado nos 21 anos seguintes –, o diretor e dramaturgo fluminense João das Neves driblou o aborto artístico de 1964 e reatou aquele projeto à linha de tempo dos 80 anos recém-completados. Em maio do ano passado ele estreou em São Paulo o espetáculo Os Azeredo mais os Benevides, no teatro da União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (UMES), no bairro da Bela Vista, o popular Bixiga.

“É muita responsabilidade essa peça cair em minhas mãos. Mas não deixa de ser emoção demais, uma homenagem ao Vianinha”, afirma Neves em entrevista realizada às vésperas da temporada depois prorrogada. “Há o lado prazeroso de retomar aquele material em outras circunstâncias. E há o lado mais duro e sofrido de deparar, no transcorrer da vida, com uma série de perdas irreparáveis. É um processo muito doloroso reavivar dentro de si questões que estavam lá adormecidas. Não dá para não deixar de se comover com tudo isso. Revolver as cinzas do passado não é brincadeira.”

Recurso da sombra na criação com atores do CPC-UmesGall Oppido

O teatro de sombra é um dos recursos da criação

Trata-se de aplacar certa tristeza por constatar que a maioria dos companheiros do CPC e mesmo do Grupo Opinião (1964-1982) não está mais viva. Neves e o poeta Ferreira Gullar (1930) são os nomes mais expressivos remanescentes daqueles núcleos. “O Denoy de Oliveira [1933-1998] e o Vianinha morreram jovens, poderiam ter produzido muito ainda em suas vidas. Assim como o [dramaturgo] Paulo Pontes [1940-1976] e o Armando Costa, eles se foram cedo porque estavam estressados e aí a doença pega de jeito. Foi um atrás do outro”, diz João das Neves. “Perda não só pela ausência deles, mas pelo que a cultura do teatro brasileiro deixou de ganhar.” Não por acaso, o cine-teatro da UMES é batizada com o nome do ator, diretor e cineasta paraense Denoy de Oliveira.

Texto que venceria em 1966 o concurso de dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro, o SNT, que o editou em 1968, Os Azeredo mais os Benevides denotava fase de transição na escrita de Vianinha, conforme João das Neves. Refletia claramente uma tentativa de aproximação ao teatro épico de Bertolt Brecht (1898-1956). Como lançar mão do efeito do personagem comentar as ações durante as passagens musicais, fazendo às vezes de narrador ou coro. Há algumas passagens eminentemente dramáticas e um roteiro pontuado por canções. “São personagens humanamente bem construídos, não só em termos de estrutura dramática. Uma obra que permanece com sua força, mesmo com o recorte daquele momento histórico.”

No livro A hora do teatro épico (Graal, 1996), a pesquisadora Iná Camargo Costa observa “o silêncio unânime que cerca esta obra-prima da dramaturgia brasileira”, desde o incêndio na sede da UNE. De fato, não se conhece outra produção profissional à altura, um hiato de 50 anos. Consta a iniciativa do diretor paulista Marco Antonio Rodrigues com formandos do então Teatro-Escola Célia Helena, em 2001.

“Incorporando as lições de Brecht, principalmente as aprendidas em Mãe coragem [citada na epígrafe], o dramaturgo resolveu tratar seu assunto indiretamente, isto é, de forma distanciada. Com isso, abandonando tópicos mais incandescentes de política partidária, obteve um ângulo a partir do qual pôde configurar com a serenidade própria do gênero épico, uma espécie de marca registrada da história do Brasil, dando ênfase ao papel desempenhado por suas vítimas”, sustenta Camargo Costa.

A peça trata do conflito entre latifundiários e trabalhadores rurais, tema também abordado no texto anterior do autor, Quatro quadras de terra (1963). Das peças menos conhecidas de Vianinha (mesmo autor das referenciais Rasga coração e Moço em estado de sítio), Os Azeredo mais os Benevides remonta ao início do século 20, com o casamento arranjado entre o filho de uma família aristocrata (em crise financeira) e a filha de um banqueiro.

“Uma funda amizade/ Aqui começou./ Um doutor de verdade/ E um camponês meu amor.” Assim canta Lindaura, a mulher do camponês Salustiano Alvimar, sublinhando o início da amizade entre o marido e Esperidião, um jovem e empreendedor senhor de terras. Uma amizade que vai sendo desmontada com o passar dos anos, duas décadas, por mais que os dois homens se obstinem em preservá-la.

O enredo inclui exploração de camponeses pelo proprietário de uma plantação de cacau na Bahia, a degradação por causa da seca, a promessa falaciosa dos políticos para a construção de uma barragem que revitalizaria o plantio, as manobras para eleições e a revolta de trabalhadores rurais em um vilarejo. O desfecho é o assassinato do filho de Alvimar, também batizado Esperidião, como o patrão e padrinho que ordena sua morte aos capangas. No velório, o camponês sofre pela tragédia, mas, submisso, aceita dinheiro do latifundiário para “reparar o dano” e segue amigo do algoz na “história de uma amizade errada”, como definiu Vianinha.

O elenco domina canto e música na narrativaGal Oppido

Elenco do CPC-Umes narra, canta e toca

Ao analisar o perfil do protagonista Alvimar, Neves o percebe como uma pessoa “de espinha quebrada”, que não sabe separar a amizade pelo patrão devotado e as ações objetivas de classe. Os interesses dos dois – camponês e latifundiário – são diametralmente opostos, independente do entrosamento de fachada. “Vianinha constroi as contradições. Acho isso rico na peça, vindo da parte de uma pessoa que tinha uma visão revolucionária”, diz Neves. Para o diretor, a realidade se impõe. “Está aí até hoje a escravidão [em muitas regiões do Brasil], os afrodescendentes ainda com postura subalterna… Como o Alvimar, não tem consciência. No fundo ele é um joguete. Não que seja pelego ou mau caráter, simplesmente não reage às circunstâncias.”

“Diferentemente de ontem, hoje o nível de organização [dos trabalhadores rurais] é obviamente muito maior. Na época, mal estavam começando as ligas camponesas. Era um embrião”, afirma João das Neves.

Basta lembrar que em 1962 o documentarista Eduardo Coutinho (1933-2014) aportou na divisa da Paraíba com Pernambuco para registrar a vida de João Pedro Teixeira, líder camponês assassinado em 1962. Em razão do golpe de 1964, as filmagens foram interrompidas. O engenho da Galileia, em Vitória de Santo Antão (PE), foi cercado por forças policiais. Parte da equipe foi presa sob a alegação de “comunismo”, e o restante se dispersou. O trabalho foi retomado 17 anos depois, sob o título Cabra marcado para morrer (1984), recolhendo-se depoimentos dos camponeses que trabalharam nas primeiras filmagens e também da viúva de João Pedro, Elisabeth Teixeira, que desde dezembro de 1964 vivera na clandestinidade, separada dos filhos. Reconstruiu-se assim a história de João Pedro e das ligas camponesas do Galileia e de Sapé (PB).

“Muito disso se reflete nos personagens da peça, a reação da classe dominante, a intervenção sobre a vida dos trabalhadores. É como se Vianinha fizesse uma fotografia do passado para compreender o presente, de onde saímos para saber onde estamos chegando”, afirma Neves.

Encenar Os Azeredo mais os Benevides tem a ver com atualizações das memórias pessoal e pública. “O Brasil tem contas a prestar. A gente sempre fecha os olhos para a história, os arquivos queimados da escravidão, a postura diferente dos países sul-americanos. Não é espírito de vingança, mas de justiça mesmo. Há coisas que são imperdoáveis. Tortura é imperdoável. A Anistia foi imposta, não proposta. Vá para a Alemanha e veja como a cada instante o nazismo, o holocausto, são lembrados. Porque senão tudo se repete. Voltando pra gente, ninguém sabe o que foi a ditadura no Brasil. Os jovens não sabem, dizem que não foi bem assim, voltam as costas para a própria história. O Exército sairia engrandecido se colocasse os fatos a limpo em vez da visão tacanha, retrógrada, de que não se pode dizer a verdade. Isso precisa ser enfrentado.”

Trabalhador incansável das artes cênicas e da música, é assim que João das Neves diz exorcizar essas questões que o inquietam e jamais o paralisam. “Não sei se teatro transforma. Ele forma. Em todos os níveis. Não o teatro [estritamente] político, mas que diga respeito a seu tempo, às suas inquietações, sejam elas quais forem. Se ele transforma ou não, eu não sei. Sei que o teatro é absolutamente inútil e absolutamente necessário… Essa a utilidade da arte. O teatro torna os seres humanos mais sensíveis naquilo que a gente resolveu chamar de humanidade, aliás, cada vez mais menosprezada. Respeito mútuo, amizade real, fazer com que todas as pessoas tenham uma vida digna, que não haja violência, tudo isso a arte ajuda na medida em que forma seres humanos mais sensíveis.”

.:. Publicado originalmente na revista Cavalo Louco, número 15, 2015, páginas 61-63, editada pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.

Ficha técnica:
Texto: Oduvaldo Vianna Filho
Direção: João das Neves
Música: Edu Lobo (Chegança) e Marcus Vinícius
Atuação: Chico Américo, Danilo Caputo, Emerson Natividade, Erika Coracini, Ernandes Araujo, Graça Berman, Guilherme Vale, João Ribeiro, Junior Fernandes, Leonardo Horta, Leo Nascimento, Marcio Ribeiro, Mariana Blanski, Paula Belaguarda, Pedro Monticelli, Rafaela Penteado, Rebeca Braia, Ricardo Mancini, Telma Dias e Zeca Mallembá
Cenografia e figurinos: Rodrigo Cohen
Direção musical: Leo Nascimento
Assistente de direção: Alexandre Kavanji
Cenotécnico: Edson Freire Vieira
Iluminação: Leandra Demarchi
Assistente de figurino: Arieli Marcondes
Preparadores de corpo: Alício do Amaral Mello Junior e Juliana Teles Pardo
Produção: CPC-UMES
Temporada: De 9 de maio a 8 de junho de 2014 (a primeira), no Cine-Teatro Denoy de Oliveira do CPC-UMES, em São Paulo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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