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Prefácio

Brincar com o vento Leste

3.3.2010  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Divulgação

[Prefácio ao livro Esumbaú, Pombas Urbanas! – 20 anos de uma prática de teatro e vida, da jornalista Neomisia Silvestre. São Paulo: Instituto Pombas Urbanas, 2009, p. 9-13; projeto gráfico Sato > casa da lapa; revisão Dórica Krajan; 144 p.]

 

Voar? Mas eu não sei voar. O que eu faço é brincar com o vento. (…)

Onde quer que eu caia,uma outra criança irá me colocar no céu,

porque aqui é o meu lugar. Solta a linha!

A personagem Pipa em Ventre de lona, de Lino Rojas

 

Num piscar de séculos, a aldeia indígena, uma terra boa para a agricultura nas várzeas do Rio Tietê, transformou-se em chão para milhares de migrantes nordestinos que viram o céu coberto pela fumaça amarela do enxofre da fábrica. Crescido às custas da industrialização, o bairro de São Miguel Paulista contava 367 anos de história oficial, pós-colonização e catequese pelos brancos, quando o Grupo Pombas Urbanas bateu asas ali, em 1989, como fruto da perseverança do ator, diretor e dramaturgo Lino Rojas. Filho de mãe descende justamente de índios do planalto peruano, ele vivia no Brasil havia 14 anos quando fora cativado pela disponibilidade nata de jovens da região em seus primeiros passos para jogar com essa arte. De fato, certa ancestralidade atravessa a formação do coletivo e serve de base às abordagens conceituais e temáticas dos seus espetáculos, além de orientar a lida e a vida em comunidade. Trata-se de um projeto artístico singular firmado na pororoca do Teatro de Grupo na cidade, a partir dos anos 1990, em paralelo a outros pares que descentralizaram a geografia cênica e redimensionaram a face social do Teatro em São Paulo e em outras partes do Brasil.

Os 20 anos ora celebrados culminam ¼ de morada em Cidade Tiradentes, uma ampliação contínua do horizonte da metrópole cultural em direção ao extremo Leste. Esse encontro foi decisivo para as fomes mobilizadas: de um lado, uma gente à margem do fazer artístico não pasteurizado; de outro, atores profissionais ávidos por trocar e irradiar o Teatro com foco no jovem do pedaço. Mas quem primeiro despertou esse chamado bairro dormitório para as artes cênicas foram as crianças de mulheres e homens trabalhadores que madrugam nos pontos de ônibus. Nem um pouco ressabiadas com a turma recém instalada no galpão antes abandonado, endereço de um antigo supermercado, elas se apropriaram do espaço aberto em 2004 e pautaram as diretrizes seguintes de Rojas e dos atores que ele forjou, adultos desafiados a provar o que sonhavam.

Pisar o Centro Cultural Arte em Construção é experiência fundamental para entender a biografia que a jornalista Neomisia Silvestre narra nas páginas que seguem. Entre as paredes externas grafitadas do caixotão de 1.600 m² erguido num barranco da Avenida dos Metalúrgicos, deparamos com uma vasta arena interna, de pé direito alto, propícia aos números circenses que por lá também se ensinam. À direita, fica o Teatro Ventre de Lona, nome simbolicamente sublinhado por luzinhas coloridas como a fazer jus ao título homônimo da montagem que pode ser considerada a obra-prima de Rojas, do final da década de 1990. À frente, avistamos as estantes de ferro de uma biblioteca comunitária. À esquerda, salas para os computadores do telecentro, para a administração, para ensaios e aulas. Respira-se arte, respira-se cidadania em atividades que passam a abrigar moradores de todas as idades.

Hoje, não temos dúvidas de que a iniciativa sociocultural – referência em Ponto de Cultura para o Ministério da Cultura e duas vezes balizada pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo – carrega influências da militância artística, política e humanística que Rojas vivenciou em sua Lima natal[1]. O diretor nasceu e foi criado num bairro considerado violento e periférico, o La Parada, onde os pais, tios e primos dividiam o mesmo teto de uma casa conjugada. A condição de margem lhe era familiar desde cedo. Frequentou cursos especiais no Instituto Nacional Superior de Arte Dramático, o INSAD. Evitou as disciplinas teóricas, preferiu os encontros práticos voltados a montagens do escritor russo Anton Tchékhov, dos autores que mais admirava. Sua formação resultou mais autodidata, informal. Contudo, foi por meio da escola e da circulação por festivais que Rojas travou contato com alguns mestres do teatro latino-americano e europeu, como o equatoriano Enrique Buenaventura (1925-2003), do Teatro Experimental de Cali, o TEC; o uruguaio Atahualpa del Cioppo (1904-1993), do Grupo El Galpón; o brasileiro Augusto Boal (1931-2009), idealizador das técnicas do Teatro do Oprimido, que incentivam repensar a realidade e reformulá-la; e o polonês Jerzy Grotowski (1933-1999), que cunhou o termo Teatro Pobre para designar extrema economia de recursos cênicos e valorizar o ator.

Estamos no final dos anos 1960, início dos 70. Nos campi de Lima ou nos próprios corredores da INSAD, os estudantes passam a cotejar a realidade lá fora, bombas e protestos de um mundo em ebulição política, social e ideológica. Maio de 1968 reverbera com mais rumor na Facultad de Medicina de San Fernando, na Universidad Nacional Mayor de San Marcos. Tocado pela certeza de que a transformação também passa pela política, ainda que jamais abdique da cultura, Rojas aproxima-se de alunos das áreas de humanas e biomédicas interessados em organizar um núcleo teatral. Mas era mais que isso.

Sob ditadura militar – general lidera golpe ao governo civil, já vimos esse filme -, um grupo composto por homens e mulheres, universitários e operários decide trilhar uma terceira via que não a da luta armada: uma espécie de guerrilha cultural. Surge assim em 1970 o agrupamento clandestino Cuyac – Cultura y Rebelión, que resistiu em atividade por nove anos. A expressão quéchua cuyac quer dizer “el que ama”, uma homenagem ao poeta e guerrilheiro limenho Eduardo Tello, executado pelo exército aos 23 anos. Apesar do clima pesado por causa do conflito armado e da violência política – precipitam o Movimiento de Izquierda Revolucionaria, o MIR, e o Sendero Luminoso -, o Cuyac navega na contramão. Adota ação estratégica afeita à contracultura para subverter a falta de caminhos a quem é jovem e acredita em outro mundo possível sem ter que explodir a cabeça do sujeito que muitas vezes tem a sua idade.

Rojas entrega-se à causa revolucionária cultural por cinco anos. Vistos com desconfiança tanto pela situação como pela oposição, ele e os colegas bolam exibições de documentários vietnamitas ou cubanos, recitam poemas, montam esquetes, rodam um jornal e tentam atrair principalmente os povoados, as famílias dos trabalhadores em bairros distantes do Centro. Quando o cerco institucional aperta, ele tem 33 anos e deixa o Peru acompanhado pelo ator e diretor conterrâneo Hugo Villavicenzio, com quem desembarca na Estação da Luz em outubro de 1975 para contracenar com outra ditadura e com outra realidade cultural. Eis o caráter visionário de um artista que transitará pelo Teatro Universitário e pelo Teatro de Rua com alunos da USP, pelo Teatro em Comunidade em interação com estudantes da UNESP de Marília e finalmente conseguirá depurar sua utopia rumo ao Leste paulistano.

A cidade entranhada

No hiato da fundação em São Miguel à fixação em Cidade Tiradentes, o Pombas Urbanas aportou vários lugares, como o Tendal da Lapa, o apartamento coletivizado da República, o Teatro Martins Pena, na Penha, a casa da Barra Funda, até que o destino acenou retorno à região de origem. A sobrevivência nas franjas da cidade não impediu que o Grupo carimbasse passaporte pelo circuito teatral de espaços antológicos, como o TBC, ou cumprisse roteiro de rua em pontos como Praça da Sé, Minhocão, Boulevard São João e Avenida Paulista.

Lino Rojas era um caminhante enamorado da cidade. Adorava flanar pelas ruas dos bairros onde morou, como Jaguaré e Itaim Bibi. Tinha dileção pelo Centro, onde as figuras errantes ou deslocadas costumam resultar seres invariavelmente mais francos e lúcidos em seus estados de alteridade. “Uma arte de mendigos superiores”, no dizer do dramaturgo francês Jean Genet (1910-1986), uma inspiração manifesta. “O teatro está na rua”, gostava de repetir o artista peruano, observador contumaz que encontrava interlocutores de toda sorte para nutrir sua escrita para a cena; para os poemas guardados que tratava por “elefantes”; para os esboços de roteiros cinematográficos que nem sempre pousavam no papel e eram transmitidos à roda de atores através da oralidade. Foi esse griot da urbe, narrador de histórias periscópico, quem encorajou seus discípulos a olhar para as ruínas de um galpão distante de tudo – a depender do ponto de vista míope – e enxergar o futuro em que se encontram.

O imponderável é uma constante na sua obra. Em peças como Os Tronconenses (1990), Funâmbulo (1994) e Ventre de lona (1998), o real e o imaginário colidem, contaminam-se, sobrepõem-se, retroalimentam-se. No primeiro, as crianças são os únicos moradores de uma cidade inventada. Nela, vivem os papéis de adultos ou delas mesmas em episódios ora líricos ora dilacerantes, como a brincadeira de pular cordas, a fome e a loucura. Já o segundo e o terceiro textos imprimem adaptações umbilicais de um ensaio de Genet, Le funambule (1957), no qual o dramaturgo marginal critica o pessoal do Teatro por sua “trivialidade”, “falta de cultura” [2], e põe em relevo uma ode à devoção do artista ao ofício, no caso, um equilibrista sobre seu arame. A dramaturgia híbrida de Rojas transpõe aquele universo para a história de uma criança abandonada à porta de um velho Teatro. Ela é cuidada pelos fantasmas dos atores e personagens que o habitam.

Uma das sínteses poéticas do diretor na conjunção de espaço, palavra e corpo desponta na cena em que Fu, o menino órfão e agora adolescente, empina a Pipa de dentro do Teatro. Impedido de sair do local pelos seres imaginários que alegam protegê-lo do mundo lá fora, ele pede à Pipa que busque por sua mãe e descreva o que a vista alcança além da claraboia, lá de cima. A Pipa são seus olhos. Sentado no meio do tablado, Fu como que descarrega a linha que ascende no lado superior direito, enquanto assistimos a Pipa/Personagem em suas costas movimentando soltamente a rabiola até que menino e brinquedo têm os planos alto e baixo tocados pela proximidade física dos respectivos atores, enquanto o desenho de luz acentua ao espectador a sensação de voar ao longe.

A circularidade é outro caráter perceptível em Rojas. Sua primeira encenação com o Grupo, Os Tronconenses, é matricial para os trabalhos sucessores. Os partos são recorrentes nas suas peças, talvez como território de uma esperança incondicional. O espaço da lembrança é cativo, revolve seu baú pessoal como se a invocação fizesse às vezes de motor do presente. A metalinguagem também constitui recurso comum no sentido de desvelar essa arte milenar e torná-la concretamente pública, acessível. Afinal, qualquer pessoa é capaz de fazer Teatro, insistia.

O diretor e dramaturgo se auto-definia, antes de tudo, ator. Era dessa perspectiva que mirava o Teatro. Posicionava-se ao lado da equipe, não salvaguardava hierarquia. Os insights vinham por meio de sonhos, de imagens transbordadas do dia a dia. Anotava as ideias em caderninhos, guardanapos. Partilhava tudo com o Grupo. Os atores o ajudavam a mediar a língua, por assim dizer. Em sua fala, Rojas não fazia questão de valorizar o espanhol de berço, tampouco se preocupava em aperfeiçoar o português do Brasil ao pé da letra. O “portunhol” era sua pátria e o Teatro, seu planeta guia. Em suma, um neologista de mão cheia, no que a corruptela “ésumbaú” do título deste volume assenta como luva. Ele acolhia de bom grado as sugestões de uma palavra, de uma frase; uma escrita permanentemente em colaboração. Estimulava os artistas do Pombas a conquistar autonomia não só nos quesitos organização e produção, mas no exercício mais apurado da dramaturgia, da direção, dos figurinos, do aprendizado de um instrumento. Era generoso na transferência do saber, nada de caixa-preta. Isso permite entender a força hercúlea que o Grupo descobriu  em si – além da solidariedade infinita da comunidade e dos amigos – ao vivenciar o luto e tocar em frente, com ímpeto e carinho, o projeto do Centro Cultural Arte em Construção inaugurado no ano anterior a sua morte.

As convicções artísticas, comunitárias e institucionais são alicerçadas com muita gana em Cidade Tiradentes. Não é fácil manejá-las. O núcleo desbravador do Grupo amadurece a cada etapa e enreda novos protagonistas. Um parâmetro recente foi o jogo de cintura demonstrado por Adriano Mauriz, Marcelo Palmares, Paulo Carvalho, Juliana Flory e Marcos Kaju na condução dessas três variantes  exigidas à beça durante a aventura do projeto El Quijote, em 2009, que envolveu uma centena de pessoas no marco de lançamento da Red Latinoamericana de Teatro en Comunidad. Aliás, o Pombas Urbanas atingiu uma confluência latina bastante singular, mão dupla anfitrião/visitante no espírito de uma época de mais escuta e abertura – por vezes demasiado lentas – aos países vizinhos, e vice-versa. Representantes de 16 coletivos vindos de dez países cumpriram residência artística de 20 dias no galpão. O compromisso: montar a versão do colombiano Santiago García (Teatro La Candelaria) para o clássico de Cervantes, sob direção de César Badillo, um ator magnetizante do lendário Grupo de García.

El Quijote foi um testemunho histórico, em plena primavera brasileira, da simbiose de culturas tão distintas em torno de Quixote e Sancho Pança, o cavaleiro e o escudeiro solidários no embate ideal versus realidade. Para o triunfo daquele sobre esta importa o meio, não os fins. E o Teatro não tem feito outra coisa ao longo dos tempos humanos entre o céu e a terra. Ele move os seus amantes como Dulcinéia ao Cavaleiro da Triste Figura. Donde intuímos que cada coletivo enfrenta as injustiças do mundo de acordo com o amor à arte e os desígnios que os trazem até aqui.

 [1] SANTOS, Valmir. Corpus alado: cultura y rebelión no teatro de Lino Rojas. Ensaio produzido pelo autor em agosto de 2009 como resultado do Programa de Bolsas de Estímulo à Produção Crítica em Artes/Teatro, iniciativa da Fundação Nacional de Artes, FUNARTE/Ministério da Cultura.

[2] WHITE, Edmund. Genet: uma biografia. Trad. Alves Calado, ed. Record, 2003.

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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