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Crítica

Brava revisita Tuov e contradições do futebol

17.7.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Jorge Etecheber

Eis quando o título já diz tudo: Corinthians, meu amor – Segundo Brava Companhia, uma homenagem ao Teatro Popular União e Olho Vivo. Mas há muito mais por trás do enunciado. O espetáculo do núcleo artístico da zona sul paulistana revisita o texto que nasceu como roteiro em 1966, jamais foi filmado e terminou convertido em peça publicada em livro no ano seguinte, sempre sob autoria do então estudante de direito César Vieira, que ainda teve o tema musical gravado pela cantora Inezita Barroso em disco de vinil compacto de 1970.

A seminal montagem de 1967, dirigida pelo também ator Sérgio Pimentel em temporada do grupo Teatro Casarão, em espaço de mesmo nome que funcionava num porão da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, região da Sé, é um dos embriões do que viria a conformar o Tuov no início da década de 1970 e até agora na ativa.

De largada, portanto, o projeto constrói uma travessia geracional sobre a via popular do teatro político em São Paulo. Em suma, um pêndulo entre uma periferia com mais poder de irradiação artística e cultural hoje do que a resignada recepção do passado.

Aos 15 anos de trabalhos realizados ao ar livre ou em espaços não convencionais, caso deste em análise, a Brava é paradigmática do quanto a militância pode abrir mão dupla nas geografias, culturas, classes sociais e linguagens.

Procedimentos criativos aplicados há 44 anos, sob ditadura militar prestes a recrudescer pelo Ato Institucional Número 5, evidentemente são distintos, vide a própria ação do tempo e da história. Mas permanece a essência da obra apresentada no FIT Rio Preto, o encontro internacional de arte cênicas focado em teatro de pesquisa e cuja edição acontece a reboque das manifestações populares de junho nos Estados e Distrito Federal, em meio à Copa das Confederações.

Márcio Rodrigues, o perspicaz Olho Vivo do boteco

A sintonia fina com a onda popular de indignação incide na dramaturgia como efeito visionário. O trabalho estreado no início de 2012 se passa no boteco de Olho Vivo, o perspicaz e carismático comerciante que serve a bebida e o rádio para os torcedores zelando em cooptá-los, sabiamente, para a tomada de consciência de seus direitos e a necessidade de mobilização coletiva para garanti-los.

Nestes meses que antecedem a Copa do Mundo de 2014, o questionamento de ideias, atitudes e alienações é elevado à enésima potência. Vem a calhar, sob todos os aspectos, o mote de um time de futebol fundado por operários que desbancaram a aristocracia branca e ruim de bola em partidas do início do século XX – o Sport Club Corinthians Paulista nasceu em 1910, nome inspirado numa agremiação inglesa em turnê pela cidade.

Na adaptação do texto de Vieira, por Fabio Resende, os diálogos e situações mantêm o nexo com o universo retratado na década de 1960. Porém, a realidade não se atualiza forçosamente. Afinal, os Brasis de primeiro e de terceiro mundos continuam em choque. Prato cheio para agitar mensagens diretas em que os espectadores teriam poucas lacunas a preencher.

Ao contrário, a Brava joga sobre as quatro linhas do campo, ou melhor, da peça, equilibrando a atmosfera realista e crítica sobre o arame ficcional, prospectando a memória do Tuov que ainda cultiva o jeito de criar e encampar trabalhadores de outras áreas, não atores, além de recortar narrativas em torno de fatos ou personalidades históricas.

Afinal, o que esperar de um espetáculo que oferece cerveja, churrasco e futebol? Teatralidades, responde a encenação de Rafaela Carneiro. O clima informal e a fuzarca do coro de torcedores não afrouxam a tensão flutuante com a plateia disposta em arquibancada bifrontal, com parte do público sentada em mesinhas dispostas no “gramado”.

Os códigos do esporte, como a divisão em dois tempos, primeiro e segundo atos, e os clichês do fanatismo sobre qualquer time, criam empatia e logo são subvertidos na disputa final entre os operários e a burguesia/Estado. Ápice da apresentação, quando a língua dos gestos e das imagens esfrega nos olhos dos presentes o palco das manipulações, os interesses econômicos, políticos e midiáticos gerados pela máquina da bola.

E o roteiro alude ainda a outro “ópio”, o da religião, na passagem surreal da aparição de Cristo diante do corpo de um jogador do povo torturado pelas “pessoas de bens” do time adversário, sem chance para milagres.

Sérgio Carozzi e seu Palhaço impagável

Uma torcedora número 1, uma líder comunitária politicamente articulada, uma estudante de jornalismo ensimesmada, um jovem pagodeiro ansioso pela fama que a televisão vende, um seminarista boêmio e um palhaço desencarnado desse arquétipo (Sérgio Carozzi capitaliza cada suor de sua performance ligadíssimo na tomada da comicidade sem ostentá-la) estão entre os personagens que complementam a galera do bar instigada pelo conselheiro Olho Vivo, entre um apagão, uma batida policial, uma transmissão e a eterna sobrevivência para comer, morar, trabalhar, estudar, ir, vir, etc.

São demandados 360º de presença dos atores para correr de um lado a outro do espaço cênico e ainda infiltrar-se constantemente nas arquibancadas. Tamanha exposição interfere no desempenho de parte do elenco. Para ficar no jargão futebolístico, o rendimento da equipe cai no miolo da apresentação – o  desafio físico de costurar personagem/figura/narrador/ator – e o ritmo volta a ser recuperado no segundo tempo. As intervenções musicais são bem sustentadas em arranjos, letras e interpretações corais que pontuam as cenas do início ao fim, quesito sob direção de Luciano Carvalho.

Na terra dos Itaquerões, Corinthians, meu amor é uma obrigação cívica e cênica diante dos estratagemas de associação do futebol ao individualismo e às marcas, esvaziando de sentidos, celebrações e prazeres essa arte eminentemente gregária e artesanal, como o teatro.

>> O jornalista viajou a convite da organização do FIT Rio Preto. Produziu textos para o catálogo e articulou parte das atividades formativas.

Livro da peça de Vieira montada em 1967

Ficha técnica

Criação: Brava Companhia

Texto original: Idibal Pivetta (César Vieira)

Dramaturgia: Fábio Resende

Direção: Rafaela Carneiro

Com: Ademir de Almeida, Cris Lima, Débora Torres, Henrique Alonso, Joel Carozzi, Luciana Gabriel, Márcio Rodrigues, Max Raimundo e Sérgio Carozzi

Direção musical: Luciano Carvalho

Músicas: Brava Companhia, Luciano Carvalho, Juh Vieira, César Vieira e Laura Maria

Cenários e figurinos: Joel Carozzi, Márcio Rodrigues e Ségio Carozzi

Iluminação: Débora Torres, Henrique Alonso e Fábio Resende

Vídeos: Brava Companhia

Voz das narrações: Fábio Resende

Treinamento de percussão: Hiles Moraes

Design gráfico: Ademir de Almeida

Produção: Kátia Alves

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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