Crítica
22.8.2013 | por Valmir Santos
Foto de capa: Pedro Bastos/Solus
As virtudes técnicas, no campo da atuação, e as corrupções morais, seu eixo temático, colidem a favor da arte em Árvores abatidas ou para Luis Melo. Rosana Stavis carrega o piano com recursos vocais e presença radiosa no trânsito muitas vezes frenético entre a narradora e suas figuras. O pensamento crítico tem como fonte o ensaio de Thomas Bernhard, Árvores abatidas: uma provação, sorvido na mesma moeda pelo diretor e adaptador Marcos Damaceno, neste que é possivelmente a sua produção mais solar se levarmos em conta as montagens de peças de Sarah Kane, Jon Fosse e Gabriela Mellão.
Enquanto Bernhard expõe simulacros da burguesia intelectual vienense na relação com a arte e a cultura, a adaptação de Damaceno infiltra, de passagem, paralelismos com a produção cênica brasileira, em especial aquela que lhe é mais próxima, a que emerge de Curitiba, sede de sua companhia.
A estratégia é sutil, imprimindo o sarcasmo do escritor austríaco e, por outro lado, amainando a corrosão original. O lançamento de Árvores abatidas, em 1984, foi seguido do recolhimento dos livros por ordem judicial, tamanha a repulsa gerada. Não se tem notícia de levante afins no caso da versão cênica brasileira.
Como anotamos em análise de 2009 para o blog do Festival de Teatro de Curitiba, o alvo dileto de Bernhard é a mediocridade no campo da criação, o compadrio, as vicissitudes retratadas no meio artístico, na cobertura jornalística, na recepção crítica, nas afetações, nas idiossincrasias
A alusão a Luis Melo no título é ponderada no bordão do texto sobre o “grande ator do teatro nacional, e que faz até telenovelas”. Inescapável lembrar o curitibano projetado em montagens antológicas de Antunes Filho, no Centro de Pesquisa Teatral, e hoje um dos rostos mais conhecidos da TV aberta, o que o leva a incursionar pelos palcos com menos frequência do que merecia.
O que sustenta a dramaturgia não são as reminiscências paroquias, mas a exposição do mundano. Os ditos artistas da sociedade elitizada surgem na sala de estar de uma mansão, ciceroneados pelo casal anfitrião. Aguardam a chegada do renomado ator a quem renderão homenagem, bem como a uma coreógrafa que se suicidou e foi enterrada naquele mesmo dia.
Joana, como era chamada, pode ser lida como paradigma dos valores artísticos e humanistas da narradora. Esta, uma cantora lírica, andava reclusa da cena nos últimos anos. Ela evoca a amiga em vários momentos. Independente da mediocridade que a cerca naquela noite dita especial, sua cerimônia particular de adeus às utopias, em todos os sentidos, é confessada ao espectador.
A obra expõe seu travo com os meandros de uma sociedade que atrela arte e cultura à lógica do mercado e das instituições que dele usufruem. Inexiste horizonte diante da afasia explícita nas vozes de homens e mulheres empedernidos. Para além da ironia e da comicidade, Árvores abatidas solta um grito de espanto e ira no meio do salão, diante da falta de consciência crítica.
Para que esse Titanic de insensibilidades navegue, em vez de afundar, é preciso a força de um titã. Rosana Stavis a representa, o que significa construir sutilezas para um jogo de recursos minimalistas. Algumas evidências disso. O olhar muitas vezes contradiz a fala, faceiro. Entoa trechos de árias acompanhadas ao violino por Filipe Pinheiro, sob composição e arranjos de Gilson Fukushima. Faz a caracterização vocal de pelo menos uma dezena de figuras imaginárias. E é hábil ao transformar uma poltrona branca em eixo de sua rotação espacial e temporal, sob o tapete e o vazio absoluto do palco.
A memória da sessão de cinco anos atrás, no espaço da companhia em Curitiba, não é compatível com a frontalidade do palco italiano em Ipatinga, no teatro mastodonte do Centro Cultural Usiminas. A boca de cena escancarada engoliria a poltrona e a atriz. Ledo engano. A apresentação no Solus – Encontro de Solos Verbais e Não Verbais não ofuscou uma vírgula ou um gesto das tantas virtudes características dos trabalhos dessa atriz e cantora que circunscreve a arquitetura invisível daquela mansão vienense e suas almas sebosas.
O jornalista viajou a convite da organização do Solus – Encontro de Solos Verbais e Não Verbais, de Ipatinga (MG)
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.