Crítica
4.10.2013 | por Valmir Santos
Foto de capa: Alexandre Virgilio
Se o espectador experimentar fechar os olhos em algum momento da sessão de Myrna sou eu notará mais a fundo o quanto o trabalho de voz de Nilton Bicudo é matricial nos modos de escuta e apropriação do folhetim de Nelson Rodrigues.
O pseudônimo do título foi criado pelo autor para a coluna Myrna escreve, publicada durante o ano de 1949 no jornal carioca Diário da noite. Mais de seis décadas depois, aquele conselho sentimental impresso chega ao teatro mediado pelo veículo de massa da época, o rádio. O diretor Elias Andreato captura muito bem os aspectos orais e sonoros da escrita musical rodriguiana dramaticamente radiofônica em suas tonalidades trágicas e cômicas.
É pelo domínio da elocução que Bicudo diz a que veio nesse projeto. A clareza e a pausa nas falas tornam fluente a navegação pelo Nelson às vezes tido como verborrágico por aqueles que não o escutam nas entrelinhas dos textos, no caso, teoricamente não destinados ao palco. Mas o estilo se impõe independente do escaninho.
O espírito do rádio encaixa-se em plena era digital. Andreato concebe a adaptação, o roteiro e a cenografia que sugere o estúdio de uma estação. A incorporação dos reclames durante os blocos do programa torna o ambiente ainda mais inspirador. Idem para o cancioneiro típico na trilha assinada por Jonatan Harold. Há ainda as venezianas que ladeiam a mesa com o microfone e o mural de fundo estampando produtos cosméticos ou medicinais, além de cartazes de filmes clássicos de meados do século 20.
É por meio da voz que Bicudo emana a elegância dessa locutora, reverberando um gestual que exala feminilidade desde o modo de andar (nos raros momentos em que sai de trás da mesa) até o meneio da cabeça. E sem que a condição de um ator travestido seja evidenciada (no que o figurino de Fabio Namatame e o visagismo de Allex Antonio corroboram).
O comediante demonstra muita segurança ao interagir com seus ouvintes imaginários, a maioria mulheres, e ao mesmo tempo fixar-se na troca direta com o espectador à frente.
Um exemplo emblemático surge na resposta de Myrna à carta de Celeste. Segundo a colunista/apresentadora, o inferno não reside, necessariamente, na experiência da solidão até o fundo do poço, antes de encontrar o sujeito com quem se casar. O inferno pode morar na assepsia de uma família típica na sala de estar com os filhos e o tédio como companhia.
O humor jamais perde a mão para o registro grosso, sempre vem acompanhado das suscetibilidades em torno do ser humano nos movimentos da missivista, da conselheira, dos criadores do solo e dos homens e mulheres da plateia.
Além de propor esses planos desafiadores, o espetáculo atinge originalidade no modo como dá margem à abordagem da questão de gênero na obra de Nelson. O ator travestido no papel da mulher proporciona veredas para acessar livremente o imaginário e a estética do dramaturgo sem certezas definidoras. Uma das razões para o frescor dessa recriação.
>> Temporada no Teatro Eva Herz, em São Paulo, até 5/10.
Ficha técnica
Texto: Nelson Rodrigues
Adaptação, roteiro e direção: Elias Andreato
Diretor assistente: André Acioli
Interpretação: Nilton Bicudo
Cenário: Elias Andreato
Trilha composta: Jonatan Harold
Cenotécnico: Augusto Oliveira
Figurino: Fabio Namatame
Visagismo: Allex Antonio
Luz: Wagner Freire
Projeto gráfico: Vicka Suarez
Produção: Solo Entretenimento
Direção de produção: Andresa Lenzi, Daniella Griesi e Marco Griesi
Produção executiva: Gabriela Pimenta
Assessoria de imprensa: Morente Forte
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.