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Reportagem

Novo festival ocupa dez palcos em São Paulo

7.3.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Bea Borges

São Paulo não precisa de um festival. Há uma infinidade de espetáculos em cartaz. E as produções internacionais nunca estiveram tão presentes. Essa era a percepção de produtores e gestores culturais da cidade. Mas Antonio Araujo, diretor do Teatro da Vertigem, e Guilherme Marques, diretor do teatro CIT- Ecum, não pensavam assim. “Fala-se que a cidade é grande demais. Dispersiva demais para um festival. Essas desculpas nunca me convenceram”, diz Araujo. A MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo nasce dessa percepção.

Com abertura marcada para amanhã, o evento delineia um perfil próprio, distinto do que se vê no País nos últimos anos. Passa longe dos nomes do ‘mainstream’. Investe em criadores consagrados, porém não canônicos. Ligados à experimentação e com proposições radicais, eles são artistas como o italiano Romeo Castellucci, que abre a grade com Sobre o conceito de rosto do filho de Deus: uma polêmica peça na qual crianças atiram granadas sobre uma imagem do Cristo.

Ainda que seja uma iniciativa nova, a MIT surge com um lastro. Tem como inspiração os antigos festivais de Ruth Escobar. Eles movimentaram a capital entre os anos 1970 e 90. Aproximaram grandes encenadores da plateia brasileira. E, vale lembrar, influenciaram toda uma geração de artistas. Robert Wilson esteve pela primeira vez em São Paulo em uma dessas mostras. Jerzy Grotowski, Mabu Mines e Philippe Decoufflé também desembarcaram aqui pelas mãos de Ruth.

“Um festival tem que ser um vulcão, um ponto de efervescência na cidade”, crê Araujo, que assina a direção artística. Para conseguir criar tal efeito em uma metrópole de porte muito maior do que o das localidades onde tradicionalmente ocorrem esses eventos – Paraty, Porto Alegre, Curitiba –, o curador buscou uma programação concentrada: durante nove dias, o público terá a oportunidade de acompanhar 11 espetáculos.

A quantidade é pequena se comparada a de outras mostras. O que importa neste caso, contudo, não são quantos, mas quais as obras escolhidas. Uma safra considerável do que se produz fora de nossas fronteiras.

Para definir a programação, o critério utilizado não foi temático. Não existe um mote em torno do qual gravitem os selecionados. Mas algumas linhas a nortear as escolhas. “Todos os artistas escolhidos são ligados à experimentação”, aponta Antonio Araujo. Seus espetáculos investigam ou relativizam a própria linguagem teatral.

'Cineastas', criação do argentino Mariano PensottiSem créditos

‘Cineastas’, criação do argentino Mariano Pensotti

Mais conhecido por seu trabalho como artista plástico, o sul-africano William Kentridge é o responsável pela encenação de Ubu e a Comissão da Verdade. Com seu background, ele é capaz de quebrar os limites entre as linguagens artísticas. Convoca animação, desenhos, bonecos e filmes para coexistirem em cena com os atores. Só que essas experimentações acontecem sem perder o vínculo com o que acontece no “mundo real”.

A peça se baseia nos depoimentos da Comissão da Verdade instaurada na África do Sul para investigar os abusos do apartheid. E pode servir ao espectador brasileiro como uma evocação da comissão atualmente em curso no Brasil.

Os anos de ditadura militar voltam a encontrar eco em Escola, do chileno Guillermo Calderón. Conta-se a história de um grupo de militantes de esquerda que, na década de 1980, recebe treinamento para lutar contra o regime do ditador Augusto Pinochet.

Em voga no Brasil, o teatro documental de viés autobiográfico também aparece com vigor entre os estrangeiros. Em Nós somos semelhantes a esses sapos, o grupo francês MPTA traz um bailarino que perdeu uma das pernas e expõe sua limitação física em cena. Já em Eu não sou bonita, a espanhola Angélica Lidell parte de uma experiência de abuso sexual na infância para mergulhar nas fissuras do modelo patriarcal ainda vigente.

A sofisticada programação tem todos os méritos. Mas não é o foco único de atenção dos organizadores da MIT. O acesso foi uma das preocupações: todos os espetáculos são gratuitos. E estarão em cartaz em salas próximas a estações de metrô. “É possível democratizar o acesso sem abrir da excelência artística”, pontua Araujo. A relação com o público também esteve no horizonte dos curadores. E não foi relegada à condição de programação paralela, como geralmente acontece.

Inúmeras atividades devem descortinar as produções, abrindo diferentes portas de acesso ao que é apresentado. “Isso para nós era tão importante quanto os espetáculos”, diz o diretor artístico. Na série Olhares Críticos, especialistas em outras áreas do conhecimento que não o teatro discutem ao que assistiram. Frei Beto, Vladimir Safatle, Ismail Xavier e Laymert Garcia dos Santos estão entre os debatedores convidados. Já o evento Pensamento em Processo convoca os próprios artistas para conversar e expor os meandros de seus processos de criação.

A atividade dos críticos teatrais será outro dos focos de discussão. Representantes de cinco blogs produzirão críticas que circularão no dia seguinte às estreias. Eles também participam de um encontro com profissionais veteranos sobre os limites, possibilidades e desafios de se produzir crítica teatral hoje.

Com formação em cinema, Mariano Pensotti tem se destacado como um dos mais interessantes diretores da cena de Buenos Aires. Da MIT, ele participa com Cineastas, mais recente de seus espetáculos, no qual discute os limites entre as duas artes: o cinema e o teatro. E, sobretudo, as frágeis fronteiras entre realidade e ficção. Na peça, ele mostra a vida pessoal de quatro cineastas e concomitantemente os filmes que eles realizam. O espectador assiste aos dois universos de maneira simultânea, em um palco dividido em dois cenários.

>> Entrevista com Mariano Pensotti

Nossas vidas são construídas pelo que vemos nos filmes’

Em Cineastas você está discutindo a relação entre realidade e ficção. Como vê esse tráfego?
Todos nós produzimos ficções em nossas vidas, todos narramos coisas que vivemos ou que aconteceram a outros e, ao narrá-las, as modificamos e ficcionalizamos. E há também algo que é ainda mais complexo: como nossas vidas são construídas por ficções. Relacionamos nossas experiências àquilo que vimos nos filmes, na televisão, nos livros. A ficção é uma grande formadora de nossa personalidade.

Você se formou inicialmente em cinema. O que isso traz para a sua prática no teatro?
Originalmente, estudei cinema e artes visuais. Como herança, me ficou o interesse pelo cruzamento entre disciplinas. Me interessa pegar recursos narrativos dos filmes e aplicá-los no teatro. Também em muitos casos a cenografia de minhas obras lembra instalações.

O teatro é fugaz. O cinema é uma forma de aprisionar o tempo. Como essas ideias contrastantes aparecem em uma mesma obra?
Essa contraposição era outro dos conceitos que me interessava desenvolver. Algo entre o efêmero e o duradouro. Tarkovsky dizia que, com o cinema, o ser humano pôde, pela primeira vez, deter o tempo e reproduzi-lo quantas vezes quisesse. O teatro, ao contrário, segue sendo efêmero, mais parecido com a vida.

Você está investigando a forma cinematográfica, mas não utiliza nenhuma imagem filmada em cena. Como vê a presença de recursos tecnológicos no teatro?
O desafio foi justamente esse. Representar quatro filmes. Mas sem utilizar nenhum formato cinematográfico. Tudo é representado e narrado. Gosto da mistura de linguagens, sobretudo quando não sabemos muito bem como categorizar uma obra, se é teatro, cinema, ou uma instalação. Se é algo que serve para ampliar o campo narrativo de uma obra, a mistura é positiva. Mas não me interessa quando isso é usado apenas agregar certa falsa contemporaneidade à obra.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. C5, em 7/3/2014.

● Sobre o conceito do rosto no filho de Deus
Amanhã e domingo
Nós somos semelhantes a esses sapos
Dias 9, ,10 e 11
Bem vindo à Casa – Parte 1
Dias 9, 10, 11, 12 e 13
Bem vindo à Casa – 2
Dias 10, 11, 12 e 13
De repente fica tudo preto de gente
Dias 11, 12 e 13
Anti-Prometeu
Dias 12, 13 e 14
Eu não sou bonita
Dias 13, 15 e 16
Escola
Dias 14 e 15
Gólgota picnic
Dias 14 e 15
● Hamlet
Dias 14, 15 e 16
Cineastas
Dias 14, 15 e 16
Ubu e a Comissão da Verdade
Dias 15 e 16

1ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp
De 8 a 16/3. Grátis – ingressos distribuídos 1h antes do espetáculo.
Programação no site: http://mitsp.org

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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