Reportagem
18.3.2014 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Otávio Dantas
Cada palavra carrega em si uma determinada maneira de ver o mundo. Em japonês, o termo ‘komorebi’ serve para descrever o momento em que a luz do sol é filtrada pelas folhas. Para os alemães, ‘waldeinsamkeit’ é o modo preciso de se nomear o sentimento de solidão que uma pessoa experimenta quando está em contato com a natureza. Na Itália, ‘pentimento’ quer dizer arrependimento, mas é também o jeito de se falar da alteração em uma pintura. Aquela situação em que um quadro é restaurado e ficam evidentes seus rascunhos, mostrando que o artista mudou de ideia enquanto pintava.
A cia. Hiato tomou emprestada essa noção de outro idioma para organizar 2 ficções, que entra em cartaz hoje, no Sesc Pompeia, em São Paulo. Nesse novo espetáculo, o grupo mantém evidentes todos os vestígios de sua criação. Abre a possibilidade de entrevermos os elementos que foram descartados, as ideias que mudaram de lugar, os rastros de memória e também de obras literárias que foram amalgamados nessa construção.
Ao espectador, são oferecidas duas maneiras de conhecer a obra. E, em cada uma delas, há diferentes pistas para entender o intrincado jogo de realidade e ficção proposto. Para a plateia A, o percurso começa em uma espécie de museu, que recompõe a casa de infância do diretor, Leonardo Moreira. Por meio de um audioguia, os atores conduzem o público nessa visita ao passado. Trata-se de um espaço em ruínas, com amontoados de tijolos, fios expostos e móveis quebrados. Lugar onde jazem lembranças do quarto de criança, das brincadeiras em família, do velório do pai. Ao visitar a “exposição”, esse grupo tem acesso ao material que subsidiou o espetáculo. E, quando finalmente estiver assistindo à peça, terá a chance de entender qual a origem daquilo que aparece em cena. “Esse espectador se torna um cúmplice do nosso processo”, comenta o encenador. “É como se ele visse a obra de dentro da coxia.”
Caberá à segunda plateia vivenciar uma experiência que começa de outra maneira, mais próxima do que usualmente ocorre em salas de espetáculo. Acomodada diante do palco, essa parcela dos espectadores acompanhará a encenação de Mir. Ouvirão dos intérpretes tratar-se de uma peça inacabada, um texto deixado pelo diretor (que supostamente já estaria morto a essa altura) e que eles nunca teriam conseguido encenar. É preciso imaginar que dez anos se passaram desde sua concepção até o presente. Eles falam como se estivéssemos em 2024.
Não importa em qual das duas plateias se está. De qualquer ponto de vista, a morte (ou sua perspectiva) aparece no horizonte. “Toda história é a história de alguém que vai morrer”, diz uma das atrizes. Mas não se sabe nunca de qual morte exatamente se está falando. Da que já aconteceu ou da que vai acontecer? De verdade ou brincadeira?
As camadas de metalinguagem se multiplicam para embaralhar o jogo. Contribuem ainda para sublinhar um questionamento sobre o caráter essencialmente efêmero do teatro e uma reflexão sobre o poder da ficção: Teria ela a capacidade de reparar um dano verdadeiro?
2 ficções descende intimamente do projeto anterior da companhia. Ficção, que estreou em 2012, era um conjunto de seis solos no qual os integrantes da Hiato se detinham sobre episódios de suas próprias vidas. O caráter autobiográfico, portanto, era um dos aspectos centrais da obra. Assim como a proposital confusão entre verdade e invenção.
“Ficção nos colocou em um lugar que precisava ser problematizado”, pontua Moreira, duas vezes vencedor do Prêmio Shell de autor. “Surgiram vários questionamentos éticos sobre essa autoexposição. Até que ponto interessa para o público um assunto privado? Isso não é exibicionismo ou vaidade?”, pergunta ele.
Outro aspecto desse trabalho prévio que permanece na nova montagem é a busca por uma simplicidade cênica. Em Ficção, não havia cenografia, trilha sonora ou iluminação. Para compor 2 ficções, todos esses elementos são trazidos de volta. Mas seus procedimentos precisam ser expostos. O cenário é construído pelo atores diante do público. Os contrarregras estão permanentemente expostos e chegam a tomar parte no que acontece no palco.
Autobiografias incitam produções
A confusão entre a obra e a intimidade de seu criador sempre existiu.Avida privada dos artistas não teriam tanto interesse se fosse diferente. Mas o que o teatro vivencia hoje é uma explosão de espetáculos que tomam aspectos autobiográficos como matéria-prima.
O gênero documental tem merecido novos matizes. Na recente MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a espanhola Angélica Liddell expunha no espetáculo Eu não sou bonita a situação de abuso sexual da qual foi vítima.
Em Luís Antônio – Gabriela, o diretor Nelson Baskerville enveredava por caminho semelhante. Recuperava o passado familiar, a trajetória do irmão que se tornou travesti e acabou expulso de casa – empurrado para a prostituição. Do mesmo diretor, depois veio a público o espetáculo Lou & Leo, no qual o transexual Leo Moreira Sá expunha sua trajetória de transformação.
Sob o título de Memórias, arquivos e (auto)biografias, um conjunto de 12 artistas – oriundos de diferentes grupos – criou espetáculos tendo acontecimentos de suas vidas como inspiração. Expõem-se, dessa forma, relacionamentos conjugais, brigas familiares, mortes e descobertas pessoais. A coordenadora do projeto era Janaína Leite, atriz que já criou a peça Festa de separação, na qual expunha o próprio divórcio.
Serviço:
2 ficções
Onde: Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo, tel. 11
3871-7700).
Quando: Plateia A: terça a sáb., às 20h30; dom., às 18 h. Plateia B: terça a sáb., às 18h30; dom., às 21 h.
Quanto: R$ 40.
Memória da Hiato
>> No espetáculo Ficção (2012), a Cia. Hiato usava
episódios biográficos de seus seis atores e confundia o
público ao misturar fatos reais com elementos de ficção
>> Em Escuro (2009), o grupo trazia personagens que sofriam de diversos tipos de disfunções e deficiências. Pela criação, Leonardo Moreira recebeu o Prêmio Shell de melhor
Autor (2010)
>> O jardim (2011) contava a história de uma família em três momentos diferentes: 1938, 1979 e 2001. O público também
acompanhava o espetáculo dividido em três plateias
.:. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. C3, em 18/3/2014.
Ficha técnica:
Uma criação da Cia. Hiato
Direção e dramaturgia: Leonardo Moreira
Com: Aline Filócomo, Fernanda Stefanski, Mariah Amélia Farah, Thiago Amaral e Paula Picarelli
Assistência de direção e produção: Aura Cunha
Cenário e Luz: Marisa Bentivegna
Musica original: Marcelo Pellegrini
Figurinos: João Pimenta
Assessoria de comunicação: Pombo Correio
http://vimeo.com/81156333
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.