Crítica
2.4.2014 | por Valmir Santos
Foto de capa: Jorge Mariano/Clix/FTC
Mário Bortolotto comete alguns espetáculos surpreendentemente adoráveis. São 22h de domingo, última sessão do espetáculo e do Fringe naquela noite. Palquinho de um auditório escolar. A garrafa de uísque (cênico?) em punho. Enésima citação jocosa a um best-seller (sobrou para Paulo Coelho). Desprezo por uma banda ou cantor de época (dos aos 80, no caso). Adoração pelo blues e pelo rock na trilha, música na veia do também vocalista. A codependência das histórias em quadrinhos. O andar balangante (dessa vez pés no chão, o coturno ficou na coxia). E ainda assim, ou por tudo isso, o espectador afeito ao trabalho do Grupo Cemitério de Automóveis sai de Whisky e hambúrguer (título difícil de engolir) com a plena sensação de que o teatro acontece, aconteceu naquela uma hora.
Quando o ator, dramaturgo e diretor deixa a cadeira ao fundo e caminha “tartarugadamente” à boca de cena para repetir logo de cara, à guisa de prólogo, as alusões ao destilado e à carne moída arredondada parece que tudo já está dado. Não. Patrícia Vilela entra em cena e os diálogos e pausas trocados por esses personagens amigos e recém-separados de seus parceiros logo desafogam a alma espectador incrédulo.
Roberto dobra-se da estilização machista apressadamente associada à dramaturgia do ator e aos poucos se revela portador de achados da sensibilidade feminina colocando-se no lugar daquela que lhe dá um pontapé no traseiro, razão dos dias sem banho, empanturrando-se para preencher o vazio. Sua amiga, Priscila, chega para dar uma força e acaba compartilhando a mesma dor da perda, abandonada pelo marido há três dias.
Diante desse quadro elementar, resta aos diálogos e aos respectivos intérpretes contornar o iminente movediço dramático de fim de relação. O fio da meada, afinal, começa pelo fim.
As palavras são as redes firmes por meio das quais Bortolotto se garante. É a partir delas que expressa o domínio dos fatos e dos efeitos da arte ao vivo para não desandar as situações aparentemente soltas. Patrícia Vilela, por sua vez, não abre mão do eixo ao contracenar. A postura e o semblante não relaxam por qualquer tirada, exceção aos momentos que assim o pedem. Sua personagem tem o que dizer e contra-argumenta à altura ou para além do anfitrião de coração partido.
Cada estreia de Bortolotto indica o quanto ele não é personagem de si. Antes, um autor de si. Um agente diletante. A condição autoral captura todos os signos do espetáculo, da atuação à atmosfera poética desenhada como só ele sabe, sem rubricar as elaborações formais em termos de encenação. Os recursos são mínimos. A cena não discursa: canta a palo seco independente da dimensão etílica de fundo no texto.
Gradação distinta daquela conduzida em Kerouac, monólogo em que é dirigido por Fauzi Arap, morto em dezembro. Um registro dramático de outro quilate, assim como na memorável Santidade (1997), obra de José Vicente abraçada pela mesma dupla.
Kerouac reestreou no Teatro Cit-Ecum enquanto Whisky e hambúrguer inicia hoje temporada no Teatro e Bar Cemitério de Automóveis, ambos na capital paulista.
Trechos:
“Ela então me disse que tava me deixando, definitivamente. Que tava indo embora e não ia voltar mais. Eu não disse nada. Eu não ia pedir pra ela ficar. Ela não queria ficar, E eu não ia implorar. Um homem abandonado tem que ter o seu orgulho. Mesmo se ele estiver cheirando whisky e hambúrguer.”
“Porque as pessoas querem tanto um carro grande, uma mulher bonita ou um vestido caro? Porque elas não querem parecer insignificantes. O maior temor do homem é a insignificância.”
Ficha técnica:
Whisky e hambúrguer
Texto, direção e sonoplastia: Mário Bortolotto
Com: Mário Bortolotto e Patrícia Vilela
Iluminação: Mário Bortolotto e Walter Figueiredo
Assistência de direção: Guilherme Junqueira
Operação de luz: Walter Figueiredo
Operação de som: Guilherme Junqueira
Serviço:
Whisky e hambúrguer
Onde: Teatro e Bar Cemitério de Automóveis (Rua Frei Caneca, 384, Consolação, São Paulo, tel: 11 2371-5744).
Quando: Quarta, às 21h. Estreia hoje.
Quanto: R$ 20.
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=4tok-M8SX9A
Ficha técnica:
Kerouac
Texto: Maurício Arruda Mendonça
Direção: Fauzi Arap
Com: Mário Bortolotto
Iluminação: Mário Bortolotto e Fauzi Arap
Sonoplastia: Mário Bortolotto
Operação técnica: Marcelo Montenegro
Contrarregra: Régis Santos
Produção: Guilherme Junqueira
Foto: Grima Grimaldi
Serviço:
Kerouac
Onde: Teatro Cit Ecum (Rua da Consolação, 1.623, Consolação, São Paulo, tel. 11 3255-5922).
Quando: Terça, às 21h. Até 20/5.
Quanto: R$ 40.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.