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Crítica

Do sagrado e do profano

9.8.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Vilmar Carvalho

Escrita por Luís Alberto de Abreu, a peça Sacra folia, apresentada nesta edição da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, é tributária de muitas tradições e formas teatrais consagradas. Em sua composição, observamos a estrutura dos autos natalinos, o lugar do metateatro, os apelos farsecos. Além disso, talvez o mais forte vínculo que se possa perceber nessa peça lançada em 1996 é com a obra de outro grande dramaturgo brasileiro: Ariano Suassuna.

Assim como fez o autor de Auto da Compadecida, Abreu recorre nesse texto à confusão entre o sagrado e o profano – confunde as duas dimensões e as aproxima. Também traça personagens de linhagem semelhante: Assim como o João Grilo e o Chicó, do escritor paraibano, a figura do nordestino Teité é capaz de insurgir-se contra as injustiças, valer-se da esperteza para enfrentá-las e ainda reivindicar milagres divinos que ponham em ordem a desregulada balança do mundo.

Por todas essas características, pode-se considerar que Sacra folia foi pródiga em sobreviver ao tempo e às mudanças sócio-políticas dessas quase duas décadas desde sua criação. O mesmo, contudo, não se pode dizer da montagem da Cia. Stravaganza di Teatro, de Porto Alegre (RS).

Desde 2002, o grupo apresenta o espetáculo. Conforme o seu próprio depoimento, registrado no programa da Mostra, Sacra folia já atravessou diversos momentos na trajetória desse coletivo e foi várias vezes recriado. Evidentemente, sem ter presenciado o percurso da Stravaganza ao longo desses 12 anos, seria  impossível afirmar que a encenação tenha perdido predicados que possuía previamente. Mas as formas de transpor o texto para o formato de rua e o apelo ao riso fácil, e por vezes despropositado, deixam a impressão de uma proposição envelhecida.

O enredo dá conta de uma fábula de grande apelo popular. No lugar do idílico nascimento de Jesus, Abreu prefere focalizar a história por outro aspecto, mais lúgubre: a sanha assassina de Herodes, no episódio que ficou conhecido como matança dos inocentes. Aqui, contudo, no lugar de fugir para o Egito, a Sagrada Família termina por errar o caminho e vem parar no Brasil.

As muitas confusões e reviravoltas propostas no texto dão movimento a uma dramaturgia que é também de reflexão: Os massacres infantis que se colocam como manifestação da mais incompreensível crueldade em todos os tempos, inclusive no nosso. As divisões sociais arbitrárias que impedem Teité de ter acesso ao pão, que o fazem desejar “comer com a boca e não apenas com os olhos”. Ainda que com falhas e esgarçamentos, a Stravaganza alcança esse sentido de comunicação.

.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Julia Guimarães, do Horizonte da Cena, aqui.

.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura dos espetáculos, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.

Ficha técnica:
Texto: Luis Alberto de Abreu
Direção: Adriane Mottola
Com: Duda Cardoso, Fernando Kike Barbosa, Geórgia Reck, Janaina Pelizzon, Kiko Mello, Lauro Ramalho, Marcelo Adams, Sofia Salvatori e Vinicius Petry
Cenografia: Stravaganza
Figurino: Coca Serpa
Trilha sonora original: Gustavo Finkler

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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